Eu Odeio A Comida Mas Eu Gosto De Você escrita por ohhoney


Capítulo 7
30%


Notas iniciais do capítulo

Alguém falou em angst?



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Está frio. Acho que estou usando 5 blusas hoje. Esse cachecol pinica meu pescoço, mas nem quero me livrar dele.

Quase não sinto minhas mãos.

A rua não tem muita gente, mas consigo ver um bolinho de pessoas ali do outro lado. O que está acontecendo?

Ah.

Ah.

Óbvio. Tinha que ser ele. Eu reconheceria aquele cabelo em qualquer lugar. Aquela risada também; é meio impossível não associar essas coisas com o Kise. Ele simplesmente se destaca.

Conforme vou me aproximando, o grupinho de pessoas se dispersa e somente vejo Kise e mais outra garota do outro lado da rua. Parece que ele não me viu ainda. Não quero falar com ele.

Meio que estou negando meus sentimentos agora, então encontrá-lo fora do ambiente escolar não faz muito bem. Não quero que isso passe de uma quedinha - talvez penhasco -, pelo amor de Deus. Já tenho problemas demais na minha vida. Tenho que entrar na faculdade, por favor.

Ele fica tão bem de roupa casual. Melhor do que de uniforme. Ele assina alguma coisa e entrega para a garota do seu lado, e ela vai embora também.

Ele finalmente me vê, e abre um sorriso que simplesmente ilumina as coisas.

–Oi, senpai! Oi! - ele acena pra mim e vem na minha direção.

–Ei, Kise, tom-

Mas eu nem vi direito o que aconteceu - só sei que no segundo seguinte Kise estava atravessado contra o para-brisas daquele carro, e eu continuei com a mão erguida, paralisado no lugar.

Tinha muito vidro quebrado, e gritos, e acho que aquilo era sangue.

Ah. Era sangue mesmo.

Meus joelhos tremeram e me lançaram para frente. Quase vomitei ali na rua. Parece que só agora o barulho do freio do carro alcançou meu cérebro, e eu acho que consegui conectar as coisas.

Kise nem olhou a rua antes de atravessar e veio um carro e ele agora tem metade do corpo dentro e a outra metade do corpo fora do carro. Nem existe mais para-brisas. A frente do carro está destruída. Uma mulher grita com alguém no celular. Eu continuo tentando me mover.

–Kise.

Oh, meu Deus do céu.

–Kise. Kise, Kise, Kise, Kise.

Jogo-me contra o capô, cortando as mãos no vidro quebrado. A motorista parece desmaiada contra o airbag, e Kise não responde quando chamo. Seguro em uma das mãos dele e não sei se puxo ou não. Puxo ou não.

Puxo ou não.

–Não morre. Não morre. Não morre.

Alguém tenta me puxar mas meu corpo parece uma pedra.

–Kise, não morre, por favor. Por favor. Não faz isso comigo.

Caio sentado no chão e rasgo a calça nos cacos. Minhas mãos sangram. Arrastam-me para a calçada e eu fico jogado lá, a ponto de vomitar, revendo Kise quebrar o para-brisas com a cabeça pelo menos mais vinte vezes.

Vomito nos meus sapatos.

Umas luzes vermelhas e azuis não me deixam enxergar muita coisa, mas consigo ouvir várias vozes apressadas e gritos, e eu, de algum jeito, acabo enfiado numa ambulância. Falam comigo mas eu nem consigo ouvir direito.

Eu nem consigo ouvir direito.

.

.

–Ele tá com saudades.

Kasamatsu só enterra a cabeça nos braços e permanece em silêncio.

–Ele fala toda hora que quer te ver, e que sente saudades, e que quer que você vá lá.

–Eu não posso...

–Kasamatsu, o Kise precisa de você.

Eu não consigo.

E se ele for lá e Kise tiver um treco e morrer bem na frente dele? Ele quase morrera uma vez. Kasamatsu não ia aguentar ter que ver isso de novo.

Kobori, Hayakawa e Moriyama iam ao hospital todos os dias para fazer companhia a Kise. Mas Kasamatsu não tinha coragem. Não depois de ter visto Kise semi-morto na sua frente, e ter que passar por interrogatórios no hospital, e ter as mãos costuradas. Não depois de ter que jogar fora a roupa manchada de sangue porque ele nunca mais iria conseguir vestir aquilo. Não depois de tantas noites de insônia que as olheiras já pareciam permanentes em seu rosto.

Não depois de ouvir que Kise tinha morrido, mas voltado à vida dois minutos depois.

Mesmo sem pedir, seus amigos o deixavam atualizado sobre o estado de Kise.

"Ele acordou."

"Ele parece bem."

"A motorista do carro bateu a cabeça muito forte contra o volante e morreu na hora..."

"Ele já está falando e soltando piadinhas."

"Ele perdeu o movimento das pernas e nunca mais vai andar."

Como doía.

"Um dos braços dele não se mexe direito, mas o médico disse que é possível que volte ao normal."

"Ele está cego de um olho."

.

.

Fazia mais de três meses que Kise estava no hospital. Ele parecia estar se recuperando bem.

Kasamatsu ainda não tinha ido uma vez sequer. Não tinha coragem.

Certo dia, durante o intervalo das aulas, Kobori enfiou seu celular na cara de Kasamatsu e apertou o play.

Kise apareceu na tela, aparentemente sem saber que estava sendo filmado. Ele tinha uma faixa tapando o olho esquerdo, vários fios saindo de si, bandagens na cabeça, o braço engessado. Estava sentado naquela cama imaculadamente branca, e ria com alguma coisa que Hayakawa dizia.

–Ah, Moriyama-senpai! E o Kasamatsu-senpai? Ele disse quando vinha?

–Não. Já falei que ele tem andado bem ocupado, Kise, mas não se preocupa, quando ele arranjar um tempinho...

–Ah... - Kise abaixa os olhos e se encolhe um pouco - Queria muito que ele viesse... Queria tanto ver ele. Acho que ele sente como se a culpa fosse dele, sabe? Queria dizer que tá tudo bem comigo. Eu vou ficar, ahn, melhor. Eu... Eu só... - a voz dele fica embarganhada - Eu só tô com tantas saudades... Fala isso pra ele, Moriyama-senpai. Fala que eu quero muito ver meu senpai e dizer que tá tudo bem. Que vai ficar tudo bem. Que a gente vai ficar bem.

Kasamatsu se trancou no banheiro e ficou lá até o horário da saída.

.

.

O dia da formatura do terceiro ano chegou, e Kise ainda estava no hospital.

A formatura foi uma tortura para Kasamatsu. Queria sair dali o mais rápido possível e voltar a se esconder embaixo das cobertas.

Era impossível não pensar em Kise, e isso deixou o ex-capitão do time em um estado extremamente vulnerável. Queria, mais do que tudo, entregar o segundo botão de seu uniforme pra ele.

Mas Kise ainda estava no hospital, e Kasamatsu não tinha mais coragem de encarar aquele problema.

.

.

Hayakawa bateu em sua porta no dia seguinte, chorando os olhos pra fora.

–Kasamatsu-senpai, por favor, o Kise precisa de você. O Kise precisa saber que você tá bem. O estresse tá fazendo mal pro corpo dele. Os médicos disseram que pode ser perigoso...

Kasamatsu bateu a porta e voltou pra cama.

Três horas depois, estava parado na frente da porta número 223 com a mão na maçaneta e o terror no peito. Fazia silêncio dentro do quarto, exceto pelo barulho suave da TV.

Kasamatsu aperta mais o botão na mão esquerda e bate na porta três vezes.

–Já falei que não preciso de ajuda pra pegar água! Meu braço está-

A cor some do rosto de Kise quando Kasamatsu aparece na porta, e a máquina grande ao seu lado começa a emitir bipes mais frequentes.

–Se-

"Ele tá vivo."

Uma grande parte da ansiedade de Kasamatsu simplesmente evapora ao ver Kise abrindo um sorriso largo e brilhante.

Senpai.

–Oi, Kise. Desculpe pela demora.

Kise precisa colocar uma mão sobre o peito e começar a respirar fundo. A máquina faz bipes enlouquecidamente. Seu sorriso não vai embora. Kasamatsu senta na cadeira preta ao seu lado.

"Ele tá vivo e bem."

–Você veio.

–Eu vim. Des-

Kise puxa a gola da camisa de Kasamatsu com uma das mãos e abraça-o meio sem jeito.

–Senti tanto a sua falta, senpai.

–Também senti, Kise.

Kise cheirava a sabão e a hospital. Não tinha mais o cheiro de desodorante e basquete. Isso deixou Kasamatsu triste.

Ele volta ao banco e encara o garoto a sua frente.

Kise tem muitas cicatrizes no rosto e no braço, e seu olho esquerdo pisca mais lentamente do que o direito. Sua mão esquerda permanece parada sobre seu colo. Suas pernas não se mexem.

–Como você tá?

–To ficando melhor. Acho. Não sei se te contaram, senpai...

Kasamatsu respira fundo.

–Mas eu não vou mais poder andar. E meu braço esquerdo não se move muito bem. E eu... Fiquei cego de um olho. Foi um caco de vidro que perfurou minha pupila.

Kasamatsu sentiu uma coisa gigante tomando conta de si, mas desapareceu em um segundo.

–Tudo bem. Tudo bem, Kise, pelo menos você tá vivo.

–Hehe, é verdade. - Kise ri um pouquinho e encara a mão parada em cima da perna - Me desculpe, senpai... Desculpe, eu acho que a gente nunca mais vai poder jogar basquete juntos.

–Eu não ligo, Kise. Toma.

Kasamatsu estica um lenço para Kise, mas sua mão passa longe do papel.

–Desculpe, tô sem muita profundidade de campo. - Kise pega o papel com dificuldade e seca os olhos - Pelo menos meu braço tá muito melhor. Já consigo abrir e fechar a mão e até subir e descer. Olha só.

O braço dele tremia muito ao tentar subir, e seus dedos pareciam lutar contra algo invisível pra tentar fechar a mão. Mas ver como Kise estava orgulhoso de seu progresso fazia tudo ficar bem.

–Parabéns.

–Obrigado.

O silêncio que caiu naquele quarto era tão pesado que parecia haver pelo menos 10 atmosferas em cima deles. Kasamatsu não conseguia parar de ver todas as cicatrizes pelo rosto e braços do rapaz. Conseguiam ser piores do que aquelas gigantes em suas mãos. O cabelo dele não estava tão brilhante, e ele parecia cansado.

–Me falaram que a formatura foi ontem. Queria muito ter ido.

–Foi um saco, você não iria gostar.

–Eu queria ver meus colegas de time se graduando. Queria ver você se graduando, senpai.

Kise sorria tristemente. O botão começava a machucar a mão de Kasamatsu, mas ele continuou apertando-o.

–Foi chato. - foi tudo o que conseguiu falar.

Um aviso sonoro soou por todo o quarto, seguido de uma voz:

–Caros visitantes, o horário de visita chegou ao fim. Lembrem-se de que o horário vai das 14 às 16 horas, de segunda a sábado.

Kasamatsu fez menção de se levantar, mas Kise o segurou no lugar com a mão boa.

–Espera. Não vai.

–Eu tenho que ir.

Senpai.

Os grandes olhos de Kise estavam cheios de água, e ele parecia no mínimo desesperado.

Volta.

–Volto. Amanhã.

–Promete, senpai. Promete que volta. Promete que vem me ver todo dia. Promete que não vai me deixar aqui sozinho de novo.

–Prometo, Kise.

Kise sorri, e volta a colocar a mão no peito. A máquina continua fazendo bipes altos. Kasamatsu abre a porta e coloca o pé pra fora.

–Ei, senpai, faz um favor? Chama a enfermeira?

–Ok.

Kasamatsu fecha a porta atrás de si, fala com uma mulher no corredor, e segue para casa, onde finalmente pôde gritar por uma hora no travesseiro.

.

.

Moriyama apareceu no dia seguinte. O rosto dele estava mais do que péssimo e era evidente que ele tinha chorado muito.

–O Kise...

Pronto. Era isso. Kasamatsu já estava começando a se sentir tonto.

–O Kise teve que fazer uma cirurgia de emergência ontem. Parece que ele teve uma infecção generalizada. Ele tá em coma induzido agora. Kasamatsu...

Aquela pausa deixou o coração do outro na boca.

–Acho que é muito provável que ele não vá sobreviver. Tipo 30% de chance.

Kasamatsu encosta na parede e escorre para o chão.

–Ele vai ficar bem. Eu vou ficar bem. Ele vai ficar bem. Eu também vou ficar bem.

Não existia mais ar na atmosfera que pudesse recobrar o fôlego de Kasamatsu. O botão no seu bolso pesava trinta quilos.

–A gente vai ficar bem. Kise, eu prometo que a gente vai ficar bem.


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Notas finais do capítulo

Eu: щ(ಥДಥщ)