Sala branca escrita por Kinark


Capítulo 5
Morte




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A garota se fascinava pelo frio. Nascera afinal em um dos mais gelados lugares, por sorte. Completava, naquele ano, seu décimo inverno vivido. Vede, pois, que acidentes ocorrem nas situações mais inesperadas, mas, muitas vezes, apropriadas. Em uma das brincadeiras de seus primos, foi esquecida do lado de fora de uma das várias casas que formavam o clima natalino agendado da família.

                — Não era você que gostava do frio, Annie? — Questionava um dos dois garotos, enquanto se esforçava para manter os braços desnudos da menina para fora da linha em que porta percorreria assim que fosse fechada pelo seu irmão.

                — Vamos te deixar aí pra ver o quanto você aguenta — desafiava o mais velho ao passo que forçava violentamente a porta vazada de metal.

                Ora, crianças são crianças. O susto tão almejado pelos jovens se demonstrava inocente, mas distraíram-se. O desespero — evidenciado nos murros mais fortes que Annie podia aplicar sobre o metal — não vencia metade da altíssima ópera gloriosamente cantada pelas vozes dos fortes ventos que dançavam e bailavam sob as nuvens daquele dia de enterro.

A criança não sentia parte das pernas — muito menos percebera os enormes rasgos nas laterais de suas duas delicadas mãos. Ainda que se esforçasse, não conseguia ouvir os sons dos próprios urros. Passados alguns minutos exposta —  desagasalhada e descalçada —  às temperaturas negativas que contemplavam seu aniversário, pôde sentir a maior das calmarias. O frio já não mais prejudicava, o vento deixara de uivar, as queimaduras não podiam ser mais sentidas e a neve — outrora nociva — se tornara tão macia quanto ao chão que formava todos os sonhos lúdicos e oníricos que sempre estiveram presentes.

Eis que sentiu alguém a observar por trás. Ao tornar-se para o foco da presença, vislumbrou um idoso corcunda — do outro lado da ponte. Se recostava sobre o parapeito, analisando meticulosamente os centímetros que compunham o lago congelado. A garota, atônita, tomou como sábio se aproximar do senhor. A caminhada foi curta, mais do que o comum, aludindo uma clara alteração no modo em que o tempo se demonstrava.

— Qual é cor do lago, Annie? — Disse, num tom tão calmo quanto as brisas de outono.

— Ele é vermelho, senhor. Não pode ver?

— Infelizmente nunca tive a oportunidade de enxergar. Sou cego. A senhorita sabe o motivo da cor tão particular?

— Meus pais sempre contaram que, antigamente, quando as temperaturas não eram tão baixas, as ondas do rio eram furiosas. Nenhuma ponte era capaz de se sustentar. Ela dizia que uma moça foi morta enquanto chorava sobre as tábuas de uma das pontes que tentaram construir e desde então as águas ficaram manchadas com o sangue dela.

— Eu adoro histórias. Desde sempre admirei os admiráveis contos que ouvi através de todos estes anos de vida. A senhorita saberia me dizer se há alguém morando naquela casa junta ao mar?

— Não tem não. Eu brinco lá de vez em quando. Aliás, por que não está mais frio?

— Sabia que é graças à curiosos como você que temos esta ponte? Para tudo existe uma resposta. Mas, para te responder essa pergunta, gostaria de te contar uma história. Se importaria de me guiar até a casa velha de madeira da qual estávamos conversando?

— Ah… tudo bem — respondeu, hesitante.

Andaram então alguns poucos metros. 44, mais especificamente. Mas, infelizmente, são poucos os que se apegam aos detalhes. Entre uma pegada e outra, podia-se ouvir os cochichos do rio que, sob a espessa camada de gelo, corria veloz e imparável.

Ao adentrar a casa de madeira, o cenário surpreendeu a menina. Desobedecendo todas as leis físicas que ouvia aqui e ali, não havia mais casa, nem neve, parede ou inverno. Viu a si mesma, menor, brincando com seus pais. Depois disso, pôde acompanhar um resumo sobre sua vida escolar. Não podia se mover e nem era de sua vontade. Algumas dezenas de memórias se apresentaram para a mente fraca de Annie, torturando-a. Como num teatro, ao final de cada conto, os atores olhavam para a plateia. Infelizmente o show não se repetiria, transparecendo a mais profunda tristeza nas faces dos que fitavam a criança.

O rito de passagem era bem redundante quando apresentado a crianças. Mas nada podia o idoso fazer, conjeturando o fato de que era obrigatório para humanos com idades acima dos seis.

A morta não tinha mais capacidade de raciocinar. Todos concordavam sobre a insensatez de fazer com que crianças sejam expostas daquele modo. Alguns dizem que a tristeza se dá em etapas, sendo que apenas em duas delas apresentam-se o choro — e não são as últimas.

Após o encerramento do espetáculo mórbido, as paredes tomaram forma novamente. Estarrecida, a garota não se moveu por mais alguns minutos — se é que podia-se contar o tempo — mas foi o suficiente para que o senhor de idade completasse o ritual. Apanhou uma foice enferrujada que repousava ao longo dos anos, imperceptível, em um dos cantos do cômodo e, sem hesitar, decepou a criança — com aterradora prática — sem nem mesmo poder ver o que fazia.

Como de praxe, não lhe respondeu a dúvida sobre a ausência do frio. Para que a esta permaneça na humanidade, foi decidido que todos devem morrer sem alguma resposta.

O resto do dia foi como qualquer espectador esperaria. Não se apresentaram reviravoltas. Pranto, desespero e o suicídio do pai, depois do velório. Preferiram o enterro a cremação.

Entretanto, veja que houve, naquele dia de enterro, uma inconveniência. Em algum ponto do homicídio — talvez no momento em que o fio da lâmina terminara de atravessar a fina pele da velada — o maior assassino da história sentiu pena… e esse foi o princípio da ruína.


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