Sala branca escrita por Kinark


Capítulo 3
Galeria




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A eterna manhã. O lugar mais antigo que existiu acabara de receber a própria visita. As janelas, do tamanho das paredes, eram intercaladas pelos pilares que sustentavam o céu, o inferno ou qualquer outra projeção que fosse necessária. A Galeria era um punhado colossal de histórias, vidas e mato. O constante som das cigarras fazia jus aos arredores na qual se situava tal dimensão. Túmulos eram distribuídos organizadamente pelos largos corredores, dando espaço para qualquer apressado correr ou sentar, se preferisse.

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Primeiro túmulo

Por hora, o mundo não era mais como antes. Desta vez havia lhe dado a chance.

Dividiu-se a realidade uma vez mais. Relutando contra a própria verdade, encontrava-se ele, jogado num canto. Refém da loucura, denegria-se em pensamentos hipócritas já praticados há muito tempo. Confundia-se ao pensar no que havia lhe acontecido, delirando sobre as plumas da mentira enquanto fugia do intenso ferrete imaginário.

As paredes do quarto já não aguentariam muito tempo, tendo sido bombardeadas pelos músculos de quem lá dentro cambaleava. Os pedaços de carne eram remexidos ao redor do cubículo pela pequena quantidade da inquilina sanidade. Tendo adotado os filhos da solidão, colocava-os para queimar os frutos da evidência. Mas destruí-los talvez não fosse o mais correto à ser feito. Colhe-los talvez fosse. Ingeri-los.

As consequências sempre foram aceitas como mal necessário, o problema é quando são geradas a partir de fatos, e não atitudes. Uma desilusão amorosa, a perda de um filho ou até mesmo o ato de observar o que está ao seu redor. Não importa o modo ou o motivo de como o gatilho é acionado, o que importa é o estrago que a bala faz.

Irritava-se ao não conseguir arranjar uma explicação para toda aquela turbulência. Sonhos mortos, ideias reprimidas e, acima de tudo, felicidade apodrecida. Os insetos geravam-se, vindos do útero ímpio. Estavam por toda a parte, inclusive dentro do quarto, entrando pela janela, alta.

Pelos subúrbios de um vale mal explorado, encontrava-se o sem nome. A calmaria repentina travava uma intensa batalha contra a chuva de conflitos, vencendo desde agora. Caminhou o suficiente até onde achava que deveria caminhar. Até encontrar o diabo. Deu-se a situação numa conversa equilibrada, onde cada um fala por vez. Iniciou o demônio, com suas grandes asas:

— Olá.

— Você é Lucifer?

— Te responderia com prazer, mas não há uma resposta correta.

— Basta responder sim ou não. Você é a quem chamam de Satanás?

— Você é a quem chamam de humano? Você me chama de Satanás? Tem medo de mim? Decida.

O silencio berrou na escuridão do quarto, impulsionando a chuva de conflitos que encerra a batalha com um corte nas costelas.

Criaram-se asas. Conseguiu voar, misturando-se com o resto dos insetos.

— O universo dividiu-se. Schrödinger.-

Encontrou a porta, fechou a janela, colonizou o mundo da terra firme.

 

 

Segundo túmulo

— Vamos, homens! Animem-se! Brindemos nós sob a luz adocicada dessa lua pela última vez! — Incentiva a tristeza.

As libertações triunfavam, destiladas. A reinvenção da sugestão da audácia morre nas faringes. Como sempre acontece — mas nunca se sabe — anéis tintos acumulam-se ao redor dos pés das taças

— Não entendo como pode estar tão animada para morrer — questionava a ansiedade.

Pequenas folhas desabavam sobre a mesa envernizada, repousando as insânias de um passado outono.

Delirando sob o fardo do esquecimento, no canto de uma mesa circular, relembrava a racionalidade seus dias de glória. Seus tempos de existência.

— Já estava cansado, de qualquer jeito. Tem andado muito repetitivo. A graça de sua comida preferida está na sua baixa frequência. — Desabafava o medo.

Carregando as mágoas dos mortos, apressava-se o vento, escasso. Sem desrespeitar o silêncio, pequenos grãos de terra refletiam resquícios mal tropicalizados, insistindo no sonho do qual poderiam revolucionar o mercado funerário.

— Por que nada fazemos? — Pergunta o pessimismo, sem os velhos brilhos que sempre habitaram suas lagrimas.

Investindo em um plano perverso, persistia a selva em invadir as ruínas que protegiam a mesa. Eco. Sobre tudo, o eco.

— É Verdade! Vamos tomar de volta o que é nosso! — Cobiçava a memória, revivendo o que já não era mais real.

Rebelando-se contra a rebeldia, debatia-se no caixão o arquiteto da construção, afinal esqueceu da porta. Abençoado seja o dia em que criou Deus o esquecimento, pois sem ele não poderíamos esquecer sua existência, e nem de ter colocado a porta.

Sem se importar com consequências lembra-se o relâmpago, assassinando o céu e doando mais alguns segundos de vida ao pai.

Resumindo fulgores e séculos em não mais que intervalos, concretizou a racionalidade:

—Nós compomos humanos e nada mais. Humanos e nunca mais.

 

 

Terceiro Túmulo

O vento bate e elas se movem. Como escravas, as partículas de poeira fazem ecoar a quieta sugestão de uma memória ruidosa e incerta. O fluxo que entrava pela pequena janela da recepção dirigia-se ao corredor, sendo interrompido pelas paredes de cada quarto onde se dividia. Tal percurso vem sendo cumprido desde 1902, quando construíram a janela. Antes disso era só vento.

A placa, por desgraçada coincidência, foi pendurada no mesmo dia que o buraco, digo, janela foi construída.

— Seja bem-vindo ao Branca Serra, o mais novo hotel da cidade! — Dizia a grande atendente.

— Ãhn... obrigado. Gostaria de alugar um quarto, por favor. Quatro noites. — Requisitava o número 1.

— Sim, claro, aqui sua chave. Você paga quando sair.

— Obrigado.

— Obrigado eu! Aproveite a estadia.

— Obrigado, novamente!

Mais 152 obrigados foram ditos no mesmo dia.

20:52

A porta se abre. Não novamente, mas pela primeira vez. Finalmente abriu.

—Quero alugar um quarto.

Chaves. Escadas. Quarto.

21:52

A porta se abre, novamente.

— Me dê a última chave.

— Mas... o se...

— Sem teimosias ou relutâncias, vou pagar por isso.

Noite terminada. Portas fechadas.

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—E a nova bola é...

O que se definia como correto sob os tetos de Fortuna? O que fazia sentido ou deixava de fazer? Não havia regras, ordens e muito menos sanidade. O grande casino havia capturado sua última bola, mas, por falhas dos operantes, esta não estava morrendo.

O ser olhou ao redor, centenas de olhos escancarados e fixados em alguma parte do seu macio suéter. Algo lhes pesou as pernas e, de repente, centenas de demônios desabaram diante do fim, diante do abismo. A grande construção também não foi forte o suficiente, curvando-se como se fosse feita dos mais manipuláveis humanos. O ruído se retirou do local, assim como o silêncio. As portas se abriram, dando as boas-vindas para o desespero e a tragédia. Como de costume, a garota sem olhos entrou andando, carregando nos braços o garoto sem pernas. O guia fez o favor de lamber as lágrimas de sua irmã, as gotas de sangue que sempre corriam pelo inocente rosto da menina.

— Está salgado, irmã. — Reclamou o desespero, provocando arritmias nos corações de todos os ouvintes.

— Não vai acontecer de novo. — Declarou a tragédia, fazendo fluir pelos ouvidos da plateia o tom frio e morto de sua voz. Ao longo da história registraram-se apenas 3 falas da garota... 4...

As crianças deram meia volta e se retiraram do funeral.

Mais algum tempo indeterminado não foi notado.

—Devorem as paredes. Devorem o chão. Devorem as estruturas. Devorem as engrenagens. Devorem os motores. Quando não restar mais nada, devorem a si próprios, começando pelas mulheres e crianças. — Sussurrou.


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