Imperfeitas escrita por Isadora Nardes


Capítulo 8
Harold.


Notas iniciais do capítulo

Sim, esse capítulo é sobre nosso bicha enrustida. Mas acho que vão curtir, embora seja um pouco menor que os outros. Eu botei bastante de mim nesse capítulo, especialmente no final.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/596947/chapter/8

Parecia que aquelas garotas simplesmente não entendiam.

Eu jurei que Talita tinha engordado alguns gramas a mais, mas resolvi não discutir. Estava cansado demais pra isso. Tudo o que eu queria era ficar sozinho. Ou com alguém que compreendesse minha solidão.

Resumindo: eu estava ansiando pelos braços de alguém.

Qualquer um.

Qualquer homem.

Como “reparador” das competidoras, o estereótipo de gay pode ser evidente. Só que, quando entrei nisso, eu não esperava, então eu me comportei como sempre tive que me comportar: como homem. Hétero. Ou melhor, assexuado. Porque eu não sou afetado, por mais que realmente queira soltar a franga às vezes.

Não é questão de querer ser mulher. Eu nunca quis ser mulher. Alias, parece horrível ser mulher. Mijar molho de tomate todo mês. Ter cólicas. Dor de parto. Ter que tomar pílula. Ser homem é mais fácil, embora para os héteros tenha toda uma novela de conquistar mulher e parecer macho.

Vendo por esse lado, ser uma mulher no corpo de um homem parece bem fácil, né? E ser um homem gostando de homens parece moleza, certo?

Errado.

Porque eu não me assumi pra família, nem para os amigos, nem pra ninguém. Quando Yolanda gritou, eu não fiquei nervoso, porque todo mundo ia encarar como uma piada. Afinal, eu tinha cara de hétero, me comportava como hétero, parecia um hétero. E todo mundo ia encarar na prateleira. E assim seria até o resto da minha vida.

De vez em quando, eu ia a baladas gays, bem afastadas da cidade. Com meu cabelo cor de mel e os olhos castanho-escuros, não era muito difícil pegar alguém. E, mesmo assim, eu ainda não me sentia completamente eu. Como se eu fosse alguma outra pessoa, interpretando algum outro papel.

* * *

Depois de pular do ônibus, vasculhei na mochila por uns bons 5 minutos, até achar a chave. Entrei em meu apartamento, sem acender as luzes. No escuro, as coisas pareciam melhores. As luzes da cidade entravam pela minha janela – fora a fora na sala – e iluminavam o chão de madeira.

Eu havia mobilhado meu apartamento com alguns móveis que meus pais me deram. Uma mesa de centro, uma geladeira, e só. O resto eu comprei. Sofá cinza, televisão, estantes, livros (a maioria que eu não li).

Sentei-me no beiral da janela. Inclinei a cabeça pro lado e olhei pela janela. Já passava um pouco do horário de rush, mas aquela avenida não descansava. Quantos gays teriam ali? E lésbicas? Bis? Trans? Quantos seriam assumidos? Quantos colocavam a mesma máscara que eu, que parecia se multiplicar em quantidade inacreditável?

Eu arranquei fora minha jaqueta, e joguei-a no sofá. Se, pelo menos, eu tivesse alguém me esperando em casa... Bem, eu podia ter. Uma esposa de fachada. Já havia cogitado, mas o que é uma relação fria, sem brilho nem afeto, sem conexão, quando tudo o que se deseja é alguém que faça seu dia valer a pena?

Mas não havia ninguém naquele apartamento.

Eu sabia que não era o único a estar sozinho e, mesmo assim, me permiti ser pessimista. Porque parecia que aquilo não ia acabar. Eu podia me assumir, mas não de fato. Não podia ser quem eu queria e simplesmente não conseguia ser eu mesmo. Ser espontâneo parecia fora da minha realidade. Da minha vida. Do meu planeta. Galáxia, universo.

Muito distante.

Mas diziam que só bastava você acreditar em algo pra isso ser real, né? Quer dizer, nunca se podia provar que algo não existe. Não se podia dizer que eu não estava aqui, porque eu estava. Estava pensando. “Penso, logo existo”. Sentia pena dos que não pensavam, porque não existem realmente, mas tinha ainda mais pena dos que pensavam.

Porque eles sabiam da realidade.

E a encaravam.

E sofriam por isso.

Como eu.

Ser um babaca o tempo todo era difícil. Não sei se eu ia ser um babaca se fosse eu mesmo, mas seria melhor ser um babaca verdadeiro do que ser como eu era naquele momento. Porque essa sensação de simplesmente não ser o bastante... Era sufocante. Parecia muito mais do que falta de ar: parecia que algo mais invadia meus pulmões. Eu estava me afogando naquela rotina de fingimento, me afogando nas sombras do dia-a-dia, me afogando em meio a névoa da inexistência.

Talvez fosse melhor assim.

De certa forma, eu sempre abominei a rotina. A rotina de fazer a mesma coisa, dia após dia, até o fim de seus tempos. Que patético. Mas, talvez, fosse uma coisa boa. Porque suas preocupações eram banais, e não se precisava pensar muito pra resolvê-las. Logo, não se precisava pensar, por um todo. Logo, não se existia.

Inexistência.

Uma palavra que parece perdurar pela minha vida.

Inexistência de afeto. Inexistência de companhia. Inexistência de aceitação. Inexistência de pensamento. Pura e simples inexistência. Um breu, um vazio, como se alguém tivesse pego uma colher de sorvete e tirado um pedaço da realidade.

Um pedaço dolorosamente ausente.

Porque, apesar da inexistência, eu tinha sentimentos, e eu os sentia. Eu sentia o mundo à minha volta e reagia a ele. Reagia as coisas dentro de mim. Reagia a coisas diferentes, em diferentes partes. Afinal, uma máscara não faz inexistir as coisas dentro de você.

Talvez essa palavra não exista. “Inexistência”. Talvez todos nós tenhamos algo dentro de nossa mente – enterrado, submerso, emaranhado, trancado, mas está lá. Talvez todos existam, e essa massa de inexistência não seja nada. Talvez nossa rotina tenha retirado a forma dessa existência dentro de nossa mente, mas a essência não pode ser destruída. Senão, o que sobra de nós?

O que sobrou de todos nós?

O que sobrou de mim?


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Gostaram? Eu me senti muito Gaardner nesse capítulo. Adoro escrever sobre filosofia -- sobre o dia-a-dia, o conhecimento, os pensamentos. Se tiverem dúvidas, me avisem. Sugestões, também.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Imperfeitas" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.