Mulher de Retalhos escrita por PepitaPocket


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

_ Imagem não me pertence, foi pega do google imagens, apenas para fins ilustrativos.

— História original.

— É o primeiro original que eu escrevi, há um bom tempo atrás, eu era só uma adolescente tentando ocupar as aulas chatas de física, então perdoem qualquer incoerência.



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Retalhos

Eu podia sentir a pressão da água em minha pele, o ar escapava por entre minhas narinas a cada braçada, e no alto os raios de sol incidiam na superfície fazendo-me um convite singelo para que submergisse.

Contudo, quanto mais esforço eu fazia, mais longínqua a luz se tornava, até eu houve um momento em que a escuridão começara a me tragar, bem no instante que o ar começava a me salvar. Eu olhava para todos os lados, mas eu enxergava apenas a água azul e cristalina, como se eu estivesse numa piscina.

E então, depois disso o desespero. A sensação de que sua vida esta escapando por entre seus dedos é em momentos assim que um filme passa em nossa cabeça, inevitavelmente, então meu coração se apertou: eu detestei a maior parte do que eu vi.

No inicio uma linda garota loira de olhos azuis, com tudo tamanho PP, seios, bundas, coxas, ainda assim tudo proporcional ao biótipo herdado de seus pais. No fim uma mulher, digna de capa de revista da revista Playboy, loira, com seios fartos, coxas bem torneados, barriga tanquinho, glúteos para dar e vender, só havia um inconveniente, eu me sentia uma estranha vendo-me daquele jeito, se não fossem aqueles olhos, na mesma coloração dos de minha avó eu jamais teria me arrependido.

De meus dezenove aos trinta anos, foram vinte e cinco plásticas. Começou com uma prótese no seio. Depois uma remodelagem do nariz. Depois um procedimento para aumentar os lábios. Depois para aumentar o bumbum. Fiz lipoescultura e ainda insatisfeita mandei retirar duas costelas.

A cada operação eu ia me aproximando do corpo que eu almejava, mas também meu olhar crítico se aguçava, e instigada pela vaidade alimentada por todos os estereótipos implantados de forma inconsciente, quase subliminar em minha mente, pelos mais diferentes meios sociais, eu ia à busca de novos recursos de melhoramento estético, fossem cirúrgicos ou não.

Quando um cirurgião me dizia não, eu batia na porta de outro. Em clínica em clínica, nos mais diferentes estados, eu não me preocupava em certificar se a mesma estava autorizada pela SBCP, por exemplo. Ou se aqueles profissionais eram confiáveis através de outros clientes, pois até minha noção de sorte parecia ter sido distorcida, eu acreditava que uma operação, era um procedimento tão simples quanto obturar um dente.

A ciência havia evoluído ao ponto de permitir que nós simples mortais, mexesse na escultura única que deus criou e jogou fora para que ninguém copiasse. Quem iria querer copiar uma criação divina imperfeita? Se nós podemos ir ao mais novo “doutor” da cidade, e simplesmente trocar o que achamos que veio com defeito, afinal nós sabemos melhor do que esse autor desconhecido, que até hoje os filósofos, religiosos, poetas, curiosos, obstinados, céticos (ávidos para desmentir qualquer teoria), tanto se esforçam em identificar.

E eu nascida Maria Fernanda, no interior do Rio Grande do Sul, estudante de uma escola rural, uma garota que começou trabalhando aos treze anos não para custear os estudos, e sim para juntar dinheiro e tentar a sorte grande na cidade grande, como modelo, atriz, ou qualquer profissão que me desse uma vida similar as que eu via na TV, e nas revistas que eu afanava nas bancas de revista.

Eu queria ser uma daquelas mulheres, lindas e bem sucedidas. Não tive sorte é claro. Nunca fizera um curso. Nunca abri um livro. Sempre tive um jeito um tanto moleca, apesar de meus esforços para imitar a caminhada de Gisele Bündchen na passarela, tem coisas que precisam ser autenticas para ter seu efeito. Mas, eu não levei a sério... Acabei voltando-me para os estudos.

Cursei pedagogia unicamente por que era o curso mais fácil de entrar, e também relativamente o mais fácil de sair. Passei num concurso, ganhava quase nada, e só agora trancada nesta piscina sem praticamente respirar admito que mesmo pouco, meu salário fazia jus ao trabalho que eu desempenhava.

Ainda assim, era funcionaria pública, e a estabilidade me fez cair em tentação de logo cedo, contrair os primeiros empréstimos tudo para investir em meu corpo. No começo eram apenas detalhes que me incomodavam, coisa pouca.

_ Você precisa tomar cuidado com estas coisas, menina. – Sua mãe lhe alertara mais de uma vez.

Mas, quem disse que eu escutava? O resultado me fascinava. A injeção em minha autoestima permitia que eu tivesse mais autoconfiança, na vida amorosa também. Logo conheci Osvaldo. Um advogado de porta de cadeia, sem muitos atrativos físicos, mas que ainda assim ganhava três vezes o meu salário.

O aumento da renda me fez buscar novas intervenções, em um único ano foram cinco. Numa delas tive uma difícil recuperação, ainda assim... Eu continuava indo atrás. Os olhares cobiçosos dos homens, com inveja contida das mulheres, a sensação de poder ter algo que a maioria das pessoas tinha, não tanto por falta de dinheiro, mas por falta de coragem, me fazia sentir a mais ousada das criaturas.

Osvaldo queria muito ter filhos. E eu jamais iria deformar meu corpo perfeito para abrigar outro ser. O casamento se foi, e depois deste vieram outros dois, que definharam pelo mesmo motivo.

E assim, eu ia levando minha vida. Até a inegável crise dos trinta. Eu já havia deixado minha vida de professora interiorana. Agora eu vivia, na maior capital do país. Como modelo, celebridade instantânea, aquele tipo de pessoa que quando perguntada sobre o trabalho, apenas responde: eu trabalho com eventos.

É um meio bacana, você conhece gente interessante, mas também como é de se esperar da índole humana, você também encontra muita competitividade. Você sempre precisa ser melhor, e isto não envolve só o intelecto, e sim o status quo, como eu estou. Eu estou bonita. Eu estou gostosa. Eu estou bem vestida. Então eu estou bem.

O amanhã? Isto eu respondo só depois que o relógio passar o número doze.

Assim, eu vivi minha vida, até naquela fria tarde de setembro, era véspera de meu aniversário, e eu estava sentada buscando desesperadamente alguém para conversar. Mas, estranhamente todo mundo parecia tão ocupado naquele dia, à medida que eu me sentia mais e mais sozinha.

Até que finalmente o telefone tocou, era a Barbara. Minha melhor amiga por fora, mas por dentro minha maior rival. Barbara trabalhou muitos anos nos Estados Unidos como stripper, tinha apartamento em condomínio de luxo, carro importado, roupa de grife, não que eu tivesse nenhuma dessas coisas, mas aquela mulher era uma sensação por onde passava.

O corpo dela era lindo. Seios realmente fartos, bunda turbinada, cintura finíssima. Céus, perto dela eu era apenas um espeto. Comecei indagar como ela fizera para ficar bem, ela falou de seu último procedimento, um cirurgião renomadíssimo no mercado, mas com um preço que naquele momento eu não podia pagar.

Vendo minha aflição, ela disse que uma prima muito distante fizera o mesmo procedimento com outro médico, que fazia um preço bem popular. Eu queria fazer uma segunda lipoescultura e turbinar os seios também. O preço era bem abaixo de mercado, ainda assim eu tive de raspar minhas economias e ainda contrair empréstimo com um amigo, para quem eu menti dizendo que precisava pagar a hipoteca da chácara de minha família que nem existia mais.

Era uma segunda-feira cinzenta quando compareci na clínica. Eu já havia estado em muitas destas. Mas, nunca vi uma que se assemelhasse tanto com uma casa comum. Tudo era muito pequeno, mal ventilado, o piso era de madeira, as paredes tinham uma tinta amarela desbotada, os móveis eram classes de escola amontoadas uma a outra, mas num ponto bem visível da parede, havia o alvará de funcionamento, além do diploma do médico e também o registro deles em seus respectivos conselhos.

É que segundo eles, além de cirurgia plástica, ali havia fisioterapeuta, esteticista e outra especialidade que agora eu não me lembro.

A secretaria era muito simpática. Explicou que aquele era um espaço provisório, que eles estavam em reforma à medida que testavam uma nova fórmula de oferecer o serviço, em um ambiente mais caseiro e confortável, que não lembrasse o hospital.

Eu não tinha problemas com isto. Mas, talvez outros se importassem.

Enquanto esperava pela consulta, me deparei com Odete. Uma dona de casa que me confessou que havia sido traída pelo marido, e precisava de uma repaginada se não iria enlouquecer.

A mulher usava uma tintura amarelo pálido no cabelo. Tinha um rosto cheio de marcas de expressão, por conta da idade e dos problemas que provavelmente enfrentou com o divórcio. A boca era grande e carnuda. O nariz era borrachudo. As sobrancelhas eram grossas. Assim como eu fora na juventude, era bastante magra, com poucos atrativos femininos, de certo ela precisava de uma repaginada mesmo.

_ Por que esta aqui, você é tão bonita! – Ela perguntara com um sorriso gentil, mas seus olhos me diziam outra coisa.

_ Ficar um pouco mais bonita. – Eu disse sabendo que aquela não era a resposta. Havia uma voz no fundo de minha mente, dizendo para eu não ir em frente, ainda assim eu fui... Estava beirando os trinta, num momento de baixa na minha profissão, ou melhor, nos meus constantes quebra galhos e ainda precisando desesperadamente chamar a atenção.

Curiosamente a cirurgia foi marcada para o dia de meu aniversário.

Eu havia combinado de almoçar com minha mãe e minhas irmãs, mas deixaria para surpreendê-los logo que o processo de recuperação passasse.

Já sorria internamente com a cara que elas fariam quando me vissem.

No dia marcado estava lá. Odete entraria no bloco cirúrgico na parte da manhã. Enquanto eu seria à tarde.

Por um instante tive a impressão de que a secretaria de nome Andréia, tão gentil no dia anterior estava tensa, por alguma razão.

_ Você quer fazer o procedimento hoje? – Andreia perguntou seus olhos tão azuis quanto os meus pareciam assustados.

Eu deveria ter feito perguntas. Deveria ter desconfiado de que alguma coisa estava errada quando vira uma agitação no fundo do corredor, uma mulher que chorava desesperadamente ali, mas eu só conseguia pensar no dinheiro que eu havia depositado e no tão longe eu havia ido para estar ali.

_ Eu já depositei o dinheiro, se não fiz hoje você terão de me devolver cada centavo. – Eu disse de um jeito que sempre funcionava com esta gente, você podia mexer com tudo menos com o bolso deles.

Fui encaminhada para um quarto muito pequeno. Era azulejado sim, mas os azulejos me lembravam de os de uma cozinha do tempo de minha avó.

Ali deitada na cama de colchão muito parecido com um colchonete, eu me lembrara daquelas noticias de clínicas clandestinas, em que mulheres iam à TV todas retalhadas, eu logo afastei estes pensamentos, eram apenas pobre coitadas, comigo isto não aconteceria, eu fizera tantos procedimentos e nunca nada de ruim acontecera além do mais eu vi o alvará de funcionamento, também pensei em Odete, ela também estava ali, provavelmente indicada por uma amiga que tivera êxito na operação.

O que eu não sabia naquela hora era que Odete estava morta.

E que quando a moça viera por o soro, ela seria a última pessoa que eu viria em muito tempo.

#

Na piscina o filme rodara ocupando o tempo que eu tinha de ar. Eu estava cada vez mais longe da superfície.

Mas, eu ainda era um ser humano. Mesmo querendo ser uma boneca eu continuava tendo um coração humano batendo dentro de mim.

Eu não conhecia o que era o amor pelas pessoas, por que nunca soube o que era amar a si próprio.

Eu vivi uma vida vazia, em busca de uma perfeição que só tangia a parte mais externa de meu ser, por que no fundo eu tinha medo de descobrir o que havia escondido dentro de mim.

E eu nunca dei uma oportunidade real para as pessoas a minha volta, por que eu estava ocupada demais as enquadrando, num modelo de certo e errado que só existia em minha mente fechada.

E eu não vivi a vida que eu tinha tão perto por que me concentrei em buscar a vida que estava tão longe e era apresentada pela tela da televisão por intermédio sem saber que aquela nada mais era do que a forma de ver o mundo de gente que eu não conhecia.

E de gente que nunca iria fazer a diferença na minha vida.

Será que ainda havia tempo para uma segunda rodada? E foi quando eu pela primeira vez unira as mãos e fizera uma prece a todas as formas de Deus que eu fui apresentada durante a vida, implorando, suplicando, para que eu não fosse tragada pela água, que eu não caísse naquela escuridão.

E então como se uma mão invisível me empurrasse meu corpo se fora para cima, como se um sopro de vida invadisse meus pulmões trazendo o fôlego que me faltava e então eu finalmente atravessara a superfície em busca de uma vida.

No lugar do sol, do ar fresco, do céu, da natureza abençoada, eu me deparara com as paredes brancas do hospital, do silencio cadenciado pelo bip dos aparelhos que mantinham outra dezena de corações batendo ao meu redor, uma espécie de toldo azul circundava a cama, e eu não via nada além de...

_ Uma UTI. – Eu estava numa UTI, céus há quanto tempo?

#

_ Seis meses de coma. – Foi o que me disseram.

Uma parada cardíaca em decorrência de uma hemorragia causada pela perfuração de uma veia durante a operação.

_ O que importa é que você está de volta. – Minha mãe dissera enquanto penteava meus longos cabelos.

Meus olhos estavam fixos na imagem do espelho.

Por conta da infecção as próteses tiveram de ser removidas, contudo boa parte de meu tecido mamário se fora no processo, restando-me apenas dois pequenos caroços que lembravam vagamente que um dia eu havia tido seios ali.

Os pontos da minha última lipoaspiração infeccionaram, os médicos tiveram de refazer duas vezes a cirurgia, mas não no mesmo lugar, o que me deixara com linhas necrosadas, que seguiam as mais diferentes direções.

E havia aquela espécie de buraco bem na linha de meu baixo ventre onde uma crosta de pus se formara meses antes. Várias camadas de tecidos se formaram ali em volta deformando o formato de meu abdômen.

Nas costas eu tinha feridas pelo tempo em que ficara na UTI, e ainda tinha aqueles hematomas nos braços do soro e transfusões de sangue.

_ Não sou mais nada do que uma mulher em retalhos. – Eu disse com a voz vazia.

_ Sim, mas mesmo uma mulher em retalhos pode refazer sua vida e continuar sua história.

_ Com que pedaço mamãe? – Eu perguntei fitando os olhos azuis, dela os mesmos que me restavam, tão semelhantes os de minha avó.

Então, eu soube a resposta. Ou melhor, a ausência dela.


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