Desistências escrita por Isadora Nardes


Capítulo 1
Frenéticos




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Olivia Katcer era uma mulher estranha.

Sentada numa cadeira de hospital era mais estranha ainda. Ainda mais uma cadeira de espera. Se ela estivesse numa maca, você poderia concluir que ela estava ali fazendo uma cirurgia de redução de peso, ou que estava ali para fazer um transplante de coração, ou uma cirurgia de varizes, ou qualquer coisa para consertar os mil defeitos físicos que ela tinha ou poderia vir a ter.

Mas não. Olivia não estava ali por ela. Quer dizer, não diretamente. Se ela foi quem acudiu a filha, Holly, como poderia dizer que não estava ali pela filha, mas sim por si mesma? Complicada essa filosofia.

Olivia não estava montando frases coerentes. Sua cabeça era apenas um turbilhão de todos os sentimentos existentes. Seu rosto era uma mistura dos sentimentos mais recorrentes: raiva, confusão e indignação.

Ela estava nervosa na cadeira. Não se conformava de ficar ali, enquanto um bando de pessoas estranhas enfiava a mão no estômago da filha para tirar todo o veneno que havia lá dentro. Claro, eram pessoas estranhas que tinham diploma em medicina que sabiam exatamente o que dar e o que não dar para Holly. Mas ainda assim eram estranhos.

Olivia sabia que Holly não ia se importar em deixar os médicos cuidarem da mãe, se a situação fosse ao contrário. Mas o problema é que nunca seria ao contrário. Nunca, nem em um milhão de anos, Olivia faria aquilo consigo mesma.

Afinal, essa não é à base do narcisismo?

* * *

O doutor Thomas Levy estava quase desmaiando.

Não por causa do sangue, nem por causa do querosene, nem por causa do cheiro horrível de ferro que aquela mistura deixava no ar. Mas porque a mínima hipótese do que a pequena Holly Katcer havia feito consigo mesma já o deixava doente.

A precisão de seus movimentos não se alterava, é claro. As mãos eram absolutamente controladas por algo além da força dele. Os instrumentos pareciam se mover sozinhos. Ele apenas havia aberto um buraco de três centímetros no estômago da garota, e suava frio enquanto passava os olhos da tela do computador para o rosto pálido e desacordado da menina.

Se ela estivesse apenas com câncer! Se ela tivesse sido quase assassinada, se fosse um acidente, não o deixaria tão abalado... Mas não fora outra pessoa. Fora ela, Holly, a fazer aquilo consigo mesma.

A tela do computador estava conectada, por um pequeno e quase invisível fio preto, uma câmera, presa no aparelho que retirava um líquido sem coloração do corpo da menina. A tela exibia passagens cor-de-rosa ou vermelhas, com o líquido que fluía diretamente do corpo pálido na maca para um vidro onde se comportavam até dois litros de qualquer coisa.

700 ml.

Deus permita que não chegue até um litro, Thomas pensou.

Se chegasse, de nada adiantava todo aquele suor que corria pela têmpora do doutor.

720 ml.

* * *

Morgannah Tawier não conseguia olhar para a tela do computador.

Ela apenas fitava Holly Katcer. Apenas fitava o corpo da menina. 13 anos, 60 quilos e 1,50cm de puro veneno correndo em suas veias. E o que Olivia havia feito? Nada. Ou melhor, tudo. Tudo e nada, no sentido mais literal da frase.

A única coisa que Morgannah sabia é que, se o líquido não parasse de jorrar quando chegasse a cerca de 900 ou 950 ml, já era tarde. Os bipes do coração de Holly diminuiriam, e ficariam cada vez mais lentos, até não passarem de um eco do que um dia já foi à vida de uma menina de 13 anos.

Morgannah jamais esqueceria aquele rosto. O nariz um pouco grande demais. Os olhos castanho-claros. A boca fina. O cabelo preto, liso e curto. Como Morgannah poderia esquecer?

Seu colega, Thomas, estava inquieto demais para poder olhar para o rosto de Holly por mais de cinco segundos.

730 ml.

Morgannah trincou os dentes.

* * *

Jason Gally batia o pé freneticamente no piso de lajotas.

Thomas e Morgannah não podiam ouvir o pequeno barulho que seu sapato fazia contra o piso. E Jason não conseguia parar. Ele batia o pé em no ritmo de suas batidas cardíacas – o que era realmente muito rápido.

750 ml.

Jason podia sentir sua garganta se fechando cada vez mais. O ar já não passava por ali, de modo que ele teve de começar a inspirar e expirar pelo nariz. Nem Morgannah nem Thomas perceberam, e Jason ficou muito grato por isso.

Só não ficava grato pelo sangue que jorrava mais constantemente.

770 ml.

Jason sabia que, se aquele pote chegasse a 950 ml, ele ia começar a chorar intensa e interruptamente. Talvez chorasse mais que Olivia. Mas também sabia que não conseguiria explicar a razão de estar chorando. As palavras se entocariam em sua garganta, como sempre se entocavam.

800 ml.

* * *

Thomas Levy fechou os olhos. Era a hora que Morgannah começaria a anunciar a quantidade de mililitros. Thomas não queria ouvir. Mas era necessário, é claro. Assim como era necessário que ele não vomitasse no meio da sala de operação.

-- 810 ml – Morgannah disse, com a voz falhando.

Agora o líquido não passava de pingos pequenos e incessantes.

Thomas pensou ter ouvido o ritmo diminuir.

-- 830 ml – Morgannah anunciou.

Thomas, pela primeira vez nos últimos 40 minutos, olhou pra ela. Os olhos da enfermeira estavam arregalados, e se fixaram no vidro. Thomas olhou para Jason, que tinha os lábios comprimidos e os dedos batendo incessantemente na ponta da maca.

Thomas tentou relaxar o corpo. Se Holly morresse? Morreu. Se não morresse? Ótimo. Ninguém ia ficar mais rico ou mais pobre por conta daquilo.

-- 850 ml – Morgannah disse.

Thomas viu Jason fechar os olhos. Viu Morgannah abaixar a cabeça.

Mas Thomas não havia perdido a fé.

-- Anjo do Senhor – Thomas murmurou, com a palma da mão a poucos centímetros da testa de Holly. – Meu zeloso guardador. Se a ela concede a piedade divina. Sempre a rege, a guarde, a governe e a ilumine. Amém.

Que essa adaptação não enfureça ao Senhor, Thomas pensou.

-- 870 ml – Morgannah disse, mordendo o lábio inferior.

Thomas fechou novamente os olhos. Continuou a orar.

-- Anjo do Senhor. Meu zeloso guardador. Se a ela concede a piedade divina. Sempre a rege, a guarde, a governe e a ilumine. Amém.

-- 880 ml – Morgannah disse. Dessa vez, a voz não passou de um sussurro.

-- Anjo do Senhor. Meu zeloso guardador. Se a ela concede a piedade divina. Sempre a rege, a guarde, a governe e a ilumine. Amém.

Jason parou de bater os dedos na maca. Ele apertou os olhos e desviou o rosto.

-- 890 ml – Morgannah disse.

-- Anjo do Senhor. Meu zeloso guardador. Se a ela concede a piedade divina. Sempre a rege, a guarde, a governe e a ilumine. Amém.

Passaram-se dois longos minutos.

-- Doutora Tawier? – Thomas perguntou, abrindo os olhos e olhando para Morgannah. – Por que você não continua a falar?

-- Porque não caiu mais nada, senhor – Morgannah disse, com os lábios trêmulos.

Jason abriu os olhos. Estavam úmidos. Thomas fixou seu olhar no pote onde estavam os 890 ml de querosene.

Apenas 890 ml.

Nem um pingo a mais.


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