Felizes para sempre? escrita por Zangada Bond


Capítulo 1
Amigas com beneficios...




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DANNY BOND ESTÁ DEITADA de bruços, virando a página de seu livro. Ela sente o cheiro reconfortante do papel quando relê o parágrafo. Anaïs Nin descreve uma dançarina brasileira que pinta seu sexo com batom. A mulher está rodeada por admiradores e nenhum deles pode tocá-la, apenas observar. A imagem penetra na imaginação criativa de Denise. Anaïs Nin se empolga na descrição dos sedutores lábios vaginais da dançarina, pintados de vermelho como uma flor tropical em esplendor, e Danny não consegue deixar de se impressionar. Começa a se contorcer em cima do cobertor, cruzando as pernas com força, mas ainda assim se sente esquentar. Tem um desejo quase irresistível de se pintar.

Ouve um ruído de papel quando sua parceira vira a página de seu livro. Então se vira para olhar para ela, debruçando-se sobre a cama.

— O que você está lendo? — ela pergunta.

— João Ubaldo Ribeiro — Leticia responde, piscando para ela por trás de seus óculos. — “A casa dos Budas ditosos”.

— Ah, já li — diz Denise, lembrando que esse era um dos favoritos de Marilia. — Dizem que esse livro faz ‘Cinquenta tons de cinza’ parecer literatura infantil, não acha?

Leticia concordou, levantando a cabeça.

— Como está indo com Anaïs Nin?

— Quente.

Ela balança a cabeça, com os olhos levemente entretidos.

— Só isso?

Ela vê que ela está olhando seu corpo, contemplando seu bumbum. Leticia já disse mil vezes que ela tem a bunda perfeita para uma submissa: redonda, mas firme, volumosa e ideal para levar umas palmadas. Ela sabe que ela está tentando provocá-la, mas a verdade é que ela aprendeu a adorar os jogos que fazem juntos. Isso a ajuda a esquecer-se de Marilia.

Faz apenas cinco meses que Marilia e Denise estiveram juntas em Veneza; apenas cinco meses após aquele encontro apaixonado. No entanto, no dia seguinte, tudo ruiu.

Lembra-se do quão perto ela esteve de se entregar totalmente a ela, de admitir que a amava. Marilia tinha passado meses mostrando que a amava, que a aceitava como ela era e que não queria que ela mudasse nunca. Claro, precisava que ela desse algo em troca, era o justo. Ainda assim, algo a impediu de dizer que a amava. Até agora, ela não entende por quê. Esse momento de hesitação foi o suficiente para destruir a vida das duas juntas. Porque, apesar da insistência dela em não querer sequer ser chamada de sua namorada, elas tinham compartilhado uma vida no Brasil.

Até Marilia ir embora, ela não tinha percebido o quanto ela fazia parte dela.

Quando ela terminou a relação, em Veneza, Denise decidiu que iria reconquistá-la. Só que, quando ela voltou para Brasília, ela já tinha partido. Como conseguiu? Fez as malas e foi embora em menos de vinte e quatro horas, deixando as chaves do apartamento em um envelope branco selado na sua caixa de correio. Não deixou uma linha sequer escrita. Teria ido para os Estados Unidos? Tudo o que ela sabia era que os pais dela moravam no Brooklyn, em Nova York.

Não tinha nenhum endereço ou telefone.

Evidentemente, Leticia sabia onde Marilia estava. Eram amigas de longa data. Para surpresa de Denise, ela contou que Marilia tinha, de fato, deixado o Brasil. Porém, em vez de voltar para sua terra natal, ela estaria morando e trabalhando em Londres. Primeiro, ela ficou furiosa. Marilia não deu nenhuma chance para que ela a reconquistasse. Tinha desistido no final.

Ela disse que a amava, mas como foi capaz de fazer o que fez? Será que não poderia ter tentado mais um pouco, então? Porém, lá no fundo, Denise sabia que Marilia tentara de tudo, menos implorar. Ela tinha seu orgulho, afinal. Certamente, é por isso que ela se sentiu atraída por ela no início: autoconfiança e força. Ela nunca iria apelar.

Durante aquelas primeiras semanas miseráveis, Leticia disse para ela ir atrás de Marilia. “Você a ama; ela te ama. Vocês estão esperando o quê?”, questionou.

No entanto, Denise estava inflexível: “Não, vai acabar mal. Deixa assim. Nunca daria certo. Ainda que tentássemos por um tempo, pra quê? Nenhum relacionamento pode durar pra sempre”, continuou explicando para Leticia. Sabia que estava ecoando as palavras de sua mãe. Ela que tanto quis não ser como ela, mais parecia uma cópia: uma mulher incapaz de se comprometer com qualquer pessoa.

— Você realmente acredita nisso, Denise? — perguntou.

— Claro! Você não?

Leticia olha para ela, pensativa.

— Sou como você, Denise. Somos iguais. Amigas com privilégios.

É assim que Denise e Leticia se chamavam. Nenhum laço entre elas. Para começar Leticia tem Raquel — sua namorada glamourosa com corpo de violão, que já tinha convidado Danny para um ménage à trois com elas em diversas ocasiões. Denise não se excita com a ideia. Apesar de Raquel e Leticia terem um relacionamento aberto, não consegue deixar de pensar que uma pertence a outra, por assim dizer. Ela pensa em um triângulo diferente: ela, outra mulher sem nenhuma ligação — como a nova amiga, a dançarina Sabrina — e Leticia. Os três significam a mesma coisa uns para os outros. Sem laços.

Essa transa já estava prometida havia muito, mas Sabrina estava em turnê pelos Emirados Arabes e levaria algumas semanas para voltar.

Leticia faz círculos em forma de caracol com a ponta dos dedos no ventre de Denise e vai descendo. Ela segura a mão dela e a encara.

— Não — diz com firmeza.

— Tem certeza? — ela pergunta.

Ela beija seus lábios delicadamente.

— Você é uma amiga tão atenciosa, mas não. Já deveria ter me levantado.

— Por quê? Hoje é domingo.

Leticia tem razão, mas ela não consegue mais ficar na cama. Domingo era o dia em que ela e Marilia ficavam vadiando o dia todo — transando muito, saindo apenas para comer e beber, e voltando para baixo das cobertas. Ela sabe que Leticia precisa ir embora logo. Ela é esperada em casa,a família de Raquel vem passar o dia com elas. Ela não suporta a ideia de ficar sozinha na cama o dia todo, lendo Anaïs Nin e se sentindo mais e mais frustrada.

— Você vai ao clube amanhã? — ela pergunta.

Denise tem passado cada vez mais tempo no esconderijo noturno de Leticia — o exclusivo clube de sadomasoquismo que ela dirige em Milão, frequentado apenas por sócios. Ela vai lá, sobretudo, por razões profissionais: desenvolver composições fotográficas eróticas com alguns dos membros que assim consentirem. De vez em quando, nas noites em que ela mais sente falta de Marilia, a culpa e a raiva a levam a tentar bloquear seus sentimentos por ela e a divertir-se com jogos S&M. Mas ela só jogava com Leticia e mais ninguém. Ela era a única em quem confiava.

Leticia senta na ponta da cama e calça a meia. Ela olha para a nuca dela, o cabelo escuro e encaracolado está tão comprido que quase chega aos ombros. Leticia usava o cabelo curto e estiloso.

— Você precisa cortar o cabelo — diz ela, tocando a nuca dela com o dedo.

— Raquel gosta dele comprido.

— Bom, graças a ela, você está parecendo uma daquelas gigolôs sujas!

Leticia se vira rapidamente e, com um movimento certeiro, a imobiliza na cama.

— Você está me chamando de repugnante, Signorina Denise? — ela começa a fazer cócegas embaixo dos seus braços.

— Não, não… Como poderia dizer isso… — ela segura o riso, olhos arregalados simulando inocência — você é a mulher mais gostosa de Milão.

Leticia se apoia sobre os calcanhares e, por um segundo, Denise vê um lampejo de desapontamento em seus olhos.

— Só de Milão? Não do mundo todo? — ela desafia.

Ela balança a cabeça. E se olham em silêncio. Por um momento, ela se pergunta se estariam fazendo a coisa certa, sendo tão amigas e transando.

— Então — Leticia tenta outra vez. — Você vem?

— Amanhã? Com certeza. Anitta quer vir comigo.

Leticia resmunga.

— Meu Deus, ela é uma maníaca.

— Sim, parece que descobriu seu lado dominatrix — Denise provoca.

Leticia está na porta, vestindo seu casaco. De repente, ela é tomada por uma necessidade de não a deixar partir. Ela não quer ficar sozinha o dia todo. Não de novo.

— Você gostaria de tomar café antes de ir? — diz, vestindo seu quimono e indo em direção a ela.— Desculpe, querida; tenho que ir.

— Tem certeza? Posso preparar um espresso rapidinho.

Leticia dá um passo adiante e a abraça rapidamente.

— Não posso. Raquel está me esperando.

Após ela ter ido, Denise vaga pelos corredores de seu apartamento. Às vezes, pensa em deixar esse lugar. Ela passou a vida toda lá. Pertencia à sua mãe. Quando ela se mudou para os Estados Unidos, disse para Denise que ela podia ficar com ele — até mesmo vendê-lo. Ela sabe que vale uma fortuna. Poderia comprar um lugar incrível em outro lugar, em outro país.

Não era obrigada a morar em Milão. Ela é fotógrafa, poderia trabalhar em qualquer lugar do mundo. Ainda assim, as memórias que a perseguem também a sustentam e, às vezes, ela imagina que ainda consegue ouvir Marilia em seu estúdio, restaurando seus quadros. Denise para na frente da porta do estúdio e abre-a lentamente. Passa pela soleira e observa as paredes descobertas, os vãos nas estantes de onde Marilia retirou seus livros, uma escrivaninha vazia.

Ela sente doer o coração, mas cerra os dentes e entra no cômodo. Não vai chorar. Tem de esquecer Marilia, seguir adiante. Ela é uma pessoa de espírito livre e Marilia queria comprometimento. Mas, apesar das suas necessidades, ela a compreendeu. E fez tudo o que pôde para mostrar isso. Ela anda pelo estúdio, sente o chão de mármore gelado sob os pés descalços. Aproxima-se da escrivaninha, senta-se de frente à ela, levanta as pernas e gira vagarosamente. O perfume dela ainda está no ar: aquele cheiro penetrante, doce e revigorante de Channel – N5 que trava a garganta e ainda a deixa excitada. Denise fecha os olhos e vai parando de girar. Coloca a sola dos pés de volta no chão e afasta as pernas. Primeiro, ela se imagina como a dançarina de Anaïs Nin, se pintando e se exibindo para seus admiradores. Então, aos poucos, os olhares vão se dissipando até restar apenas uma mulher olhando para ela: Marilia. Ela escorrega o dedo para dentro de si. “Marilia”, ela sussurra. Aqui, na intimidade do estúdio dela, ela pode dizer o seu nome. Nessas horas ela se vê pegando um avião para Londres para reconquistar sua mulher. Usa a ponta dos dedos em movimentos circulares, cada vez mais intensos, imaginando que é Marilia que a toca.

Nunca esqueceu o toque dela. Ela se contorce na cadeira e chama por ela.

“Volta. Por favor, volta”, geme enquanto se inclina para a frente, gozando.

Em uma fração de segundo, vai da leveza para a desolação. Ela se ajeita na cadeira, abraçando os joelhos. Sabe o que é isso. É sofrimento — diferente da desilusão com Virginia porque era uma dor vingativa e perversa. Não, esse sentimento era diferente — como se ela tivesse deixado escorregar a coisa mais valiosa que já teve na vida. Está quebrado para sempre, irreparável.

Ela se senta totalmente reta, fecha os punhos com força e se levanta. Precisa se recompor e seguir em frente. Marcha para fora do estúdio, batendo a porta atrás de si, e vai para a cozinha preparar um chá. Tem que tirar Marilia da sua cabeça. Acabou.

Ela não ligou nem escreveu nesses cinco meses. Ela tem que reencontrar a Denise que existia antes dele. Pensa em ligar para Anitta para um passeio atrás de pechinchas no Canal Navigli. Tem passado muito mais tempo com ela, já que Mary se mudou para Nova York e Gaby está esperando um bebê.


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