A Segunda Lua escrita por Karol Mezzomo


Capítulo 1
Minha mãe vem se despedir


Notas iniciais do capítulo

Senti saudades da Gabrielle, então resolvi escrever uma continuação para a nossa heroína. A história terá poucos capítulos, no máximo quatro. É como um especial. Um desfecho da série. Espero que gostem :)*Recomendo lerem antes: A FILHA DE ÁRTEMIS, para entendermelhor a história.



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Acampamento meio-sangue, três anos após o ocorrido em: A Filha de Ártemis.

Gabrielle.

Jake sorriu e me estendeu a mão.

– Vamos, Gabrielle. – incentivou ele. – Você nunca vai ganhar de mim sentada aí no chão.

Revirei os olhos. Olhei para cima e vi um sorriso debochado brincar nos olhos dele. Concentrei-me nesse fato, tentando desesperadamente deixar de lado a regata branca que ele estava usando, o que servia apenas para ressaltar seus músculos obtidos através de meses de treino pesado na arena do acampamento.

Parecia impossível para mim que uma pessoa alta e musculosa como Jake pudesse correr tão rápido. Bom, pensando bem, acho que o fato de ele ser filho de Hermes ajudava bastante nesse quesito.

Estendi a mão e ele me puxou para cima. Havíamos apostado uma corrida novamente, e como de costume eu havia perdido. Veja bem, ser filha de Ártemis me confere alguns privilégios, como ser a meio-sangue mais ágil do acampamento, mas não deixe isso enganar você, aprendi da pior maneira que nem sempre agilidade significa rapidez. Tratando-se de uma corrida em campo aberto eu era sempre vencida pelos filhos de Hermes, deus dos viajantes e mensageiros. E Jake não media esforços para jogar esse fato na minha cara.

Limpei os joelhos sujos de barro enquanto ele caia na gargalhada.

– Se estivéssemos no meio da floresta, você já era. – me defendi. – Bateria na primeira árvore que encontrasse em seu caminho.

Jake suspirou.

– Desculpas e mais desculpas. Quando você vai aprender a perder?

Fitei seus olhos de cara feia.

– Quando você vai aprender a ganhar sem ficar se gabando toda hora?

Ele abriu um meio sorriso e ergueu um braço em direção ao meu rosto. Recuei um passo.

– O que está fazendo? – perguntei relutante.

– Tem um pedacinho de grama na sua bochecha. – respondeu ele, ainda com a mão erguida em direção ao meu rosto.

Levei a mão à bochecha, mas deve ter sido a do lado errado, pois senti a mão de Jake roçar minha outra bochecha com cuidado.

– Aqui. – disse ele.

A mão dele continuou parada junta à maça de meu rosto. Sua expressão séria de repente.

Meus olhos encontraram os dele. Era fim de tarde no acampamento, alguns poucos campistas passavam por nós em direção aos chalés.

Eu odiava o jeito como Jake me afetava. Como se não bastasse minhas tentativas diárias de avitá-lo no acampamento, ele ainda conseguia me atormentar em meus sonhos. Como acontecia naquela noite.

Sonhar com um menino me deixava nervosa. Talvez fosse o fato de eu ser filha de Ártemis e ter herdado da deusa certa desconfiança para com os garotos. Mas de qualquer forma a maneira como Jake invadia meus pensamentos durante a noite me incomodava.

Eu nunca havia me preocupado quanto a minha aparência, mas quando Jake olhava para mim no pavilhão de refeições, era como se de repente tudo o que eu mais quisesse fosse fugir daquele lugar para esconder meu cabelo suado do treino ou meu rosto sujo de terra da parede de escalada.

Ou quando os olhos azuis dele encontravam os meus e... Bom, acho que estou fugindo um pouco da história.

Continuando.

Lá estava o insuportável filhos de Hermes, novamente perturbando minhas noites tranqüilas no chalé 8, invadindo meus sonhos e perturbando meu sono.

– Saiu? – perguntei.

Ele piscou sem entender. Então, rapidamente se recompôs, como se antes estivesse pensando em outra coisa, longe dali.

– Hã? – ele pigarreou. - Sim! Saiu.

Sua mão tomou meu rosto e ele se aproximou mais. Eu podia sentir sua respiração muito perto. Sem que eu percebesse meu rosto inclinava-se para o dele.

– Se você me deixar te beijar, deixo você ganhar a próxima corrida. – sussurrou ele.

Sorri.

Nossos lábios estavam a centímetros de distância. Sua mão desceu para o meu pescoço e eu senti um calafrio. Nossos lábios estavam prestes a se tocar e...

De repente o sono mudou.

Eu me encontrava em frente a uma casa abandonada. Era noite e estava frio, muito frio. Olhei para o céu e vi a lua cheia brilhando, o que me aqueceu e me confortou um pouco. Tentei olhar para frente, do outro lado da rua deserta um poste de luz piscava fracamente. Um vento cortante entrava por brechas em minha roupa e me fazia tremer.

Eu precisava achar um lugar para me abrigar do frio. Fumaça saia de minha boca conforme eu respirava. Olhei para os dois lados da rua em busca de abrigo, quando ouvi passos apressados vindos da escuridão. Alguém corria na calçado do outro lado da rua. Apertei os olhos tentando enxergar na escuridão e vi um vulto passar rapidamente pelo poste que ainda piscava lançando uma luz fantasmagórica ao longo da rua.

Atravessei correndo e segui o som dos passos. O vulto continuou pela calçada, e então virou a esquerda em direção a um beco. Aproximei-me devagar. Levei a mão instintivamente ao bolso, a procura de minha caneta.

O vulto parou. Era um beco sem saída. Aproximei-me mais e percebi que o vulto era na verdade uma garota. Uma menina de aproximadamente 15 anos. Seu cabelo estava solto e coberto por um capuz, os fios que ficavam para fora acompanhavam as ondulações do vento. Ela usava um casaco preto, jeans e coturnos. Sua roupa estava rasgada e ela respirava rapidamente, fumaça saia de sua boca em direção ao ar frio enquanto ela recuperava o fôlego da corrida.

Dei mais um passo em sua direção.

– Fique longe de mim! – gritou a menina.

Parei.

Ela parecia perturbada. Sua respiração estava pesada e descompassada. Havia pânico em sua voz.

– Está tudo bem. – tentei acalmá-la. Retirei as mãos do bolso e ergui as mãos como se estivesse me rendendo. Dei mais um passo a frente, devagar. – Eu não vou machucar você.

Olhei mais atentamente para ela. Sua roupa rasgada estava molhada e suja de lama. Parecia que ela havia passado dias fugindo de alguma coisa. Seu rosto era puro medo.

– Não vou deixar que me pegue. - continuou ela. Ela tentava soar corajosamente, mas sua voz tremia.

– Eu não vou lhe fazer mal. – falei. – O que houve com você? Quero ajudá-la.

Dei mais um passo, mas parei rapidamente quando a menina encolheu-se junto à parede e começou a soluçar.

– Vá embora! – gritou.

Corri até ela desesperadamente e me ajoelhei a sua frente. Pousei uma mão sobre seu braço, mas ela pareceu nem sentir o toque.

– Eu só quero ajudar. Alguém machucou você? O que aconteceu?

Ela voltou seu rosto para mim, mas quando falou seus olhos inchados de tanto chorar fitavam um ponto a cima de meu ombro direito.

– Por favor, me deixe em paz!

Percebi tarde de mais que ela falava com alguém às minhas costas, e que provavelmente nem sequer podia me ver. Em um movimento rápido virei-me com o arco prateado e carregado já em mãos.

Um vulto encontrava-se na entrada do beco.

– Quem é você?- gritei. Uma flecha apontada para o seu peito.

O vulto fez um rápido movimento com a mão e senti meu corpo ser jogado de encontro à parede do beco.

– Você vai me ajudar a voltar a ser o que eu era. – falou uma voz de mulher. Percebi que ela não se dirigia à mim, mas sim à menina encolhida contra a parede.

A menina gritou quando, rápido de mais para ser visto, o vulto pulou sobre ela. Me pus de pé em um salto e tentei correr para ajudá-la, mas algo mais forte me puxava para trás. A menina contorcia-se. Gritei em protesto. Eu precisava ajudá-la.

A cena foi consumida por uma densa escuridão e tudo silenciou. Tudo menos o chalé 8, onde o silêncio do início da manhã foi preenchido pelo meu próprio grito de terror. Sentei-me na cama com as mãos cobrindo o rosto.

Minha roupa estava encharcada de suor, e minha respiração tão rápida e pesada quanto a da menina no beco. Eu não sei quando parei de gritar, só sabia que ainda podia ouvir o grito da menina ribombando em meus ouvidos.

Respirei fundo ao abrir a porta do chalé para a manhã que se iniciava.

– Foi só um sonho. – murmurei a mim mesmo. – Só um sonho.

Mas eu não conseguia me iludir, não quando você é um semideus. Com semideuses, sonhos nunca são simples sonhos.

Eu precisava de algo para me distrair. Após o café da manhã no refeitório, me dirigi ao campo de arco e flecha à procura de algo para resfriar a cabeça e me fazer esquecer a expressão de terror da menina no beco, que insistia em invadir minha mente. Para minha sorte a distração não demorou a aparecer.

– Por que você treina se sabe que nunca vai errar? – perguntou uma voz às minhas costas.

Congelei. Era Jake. Contentei-me em ajeitar outra flecha no arco e atirar. Bum. No alvo.

– Eu não sei se nunca vou errar. – respondi, ainda de costas para ele.

Estava preparando outro tiro quando de repente ele surgiu à minha frente. Ótimo, ele estava conseguindo me fazer esquecer o pesadelo da noite passada, mas ao mesmo tempo fazendo-me lembrar, muito mais do que eu gostaria, de fatos em relação ao sonho anterior.

– Eu sei. – disse ele.

Suspirei e baixei ao arco ao ver que ele não sairia da frente.

– Não deveria fazer isso sabia? Quíron nunca lhe alertou para ficar longe do campo de tiro quando há pessoas treinando nele?

Ele enrugou a testa, como se estivesse tentando se lembrar.

– Sim! Mas suas exatas palavras foram: “Fique longe da linha de tiro enquanto os filhos de Apolo estão treinando.” – então ele apontou para mim. – Você não é filha de Apolo.

Sorri.

– Você está aqui há mais tempo que eu. A ideia de uma filha de Ártemis existir na época em que ele lhe disse isso era loucura.

Ele concordou.

– Verdade, bons tempos. Eu era apenas um jovem e ingênuo semideus novato. Mas tenho certeza de que as regras não mudaram. Logo, não estou infringindo nenhuma delas.

Revirei os olhos.

– Você é insuportável.

– Vindo da filha de Ártemis acho que não devo levar seu comentário a sério, já que a própria deusa acha isso de todos os homens. – brincou ele.

Fechei a cara.

Ele estendeu a mão.

– Posso tentar?

Franzi o cenho.

– Está brincando, não é?

Quando ele viu que eu não lhe daria o arco, correu até o arsenal e voltou com um em mãos, carregado com uma flecha.

– Não deve ser difícil. – continuou.

Ele puxou a corda e mirou. Observei-o, imediatamente notando pequenos detalhes cruciais para um tiro perfeito. Falta de postura, o braço que segurava o arco tremia levemente, respiração rápida de mais, ele puxava a flecha e não a corda.

– Não vai avisar para ele que está faltando o protetor de braço? – sussurrou uma voz ao meu lado.

Era Nathalie, filha de Apolo, uma velha amiga. Sorri cruelmente e me virei para responder.

– Ele merece.

Nathalie deu de ombros.

Antes de atirar Jake olhou para mim e piscou.

– Olhe e aprenda.

Então tudo ocorreu muito depressa. Ele largou a flecha, que passou voando a uns dois metros de distância do alvo, a corda do arco atingiu como chicote a carne macia do seu braço, ele gritou e jogou o arco com força no chão.

– Ha! Estige!

Um trovão iluminou o céu sem nuvens.

Nathalie sorriu enquanto eu, sem me conter, atirei a cabeça para o alto, olhando para o céu, e cai na gargalhada.

Então ela escolheu uma flecha de sua aljava.

– Olhe e aprenda. – repetiu ela, olhando para Jake.

Em menos de 10 segundos, três flechas de ouro encontravam-se cravadas no centro de cada respectivo alvo.

Jake bufou.

– Arqueiras exibidas.

Nathalie murmurou alguma coisa sobre o nível surpreendente de idiotice que alguém podia atingir, e depois desceu o campo em direção a arena de treinamento.

– Você é uma pessoa muito má! – ralhou Jake com a mão agarrando o braço machucado.

Mas então parou ao perceber minha expressão. Meu rosto ainda estava voltado para o céu em uma expressão séria.

– O que houve? – perguntou ele com a voz preocupada enquanto aproximava-se de mim. O vergão em seu braço agora totalmente esquecido.

– A lua. – murmurei.

Ele acompanhou meu olhar.

A lua aparecia tímida no céu azul da manhã, mas havia algo entranho. Era como se eu estivesse olhando para uma imagem da lua em 3D, mas sem os óculos apropriados para isso. Havia uma leve projeção saindo dela, como uma segunda lua sobreposta à verdadeira, não completamente separada da mesma, mas levemente grudada a ela.

– O que é que tem? – perguntou Jake com a mão em aba sobre a testa para proteger os olhos dos raios do sol.

Olhei para ele. Como assim, “o que é que tem?”

– Não está vendo? É como se houvesse uma segunda lua se sobrepondo! – expliquei.

Ele voltou seus olhos para mim, olhando-me como se eu fosse louca.

– Do que é que você está falando? Ela está normal para mim.

Fitei sua expressão. Ele não parecia estar mentindo e isso não me deixava menos preocupada. Será que eu estava vendo coisas?

– Eu não entendo. – continuei.

Ficamos em silêncio por um tempo. Até que Jake falou.

– Olha, eu vou esquecer que você está dando uma de maluca para cima de mim, e não vou cair em sua pegadinha.

– Mas... – protestei. Como ele podia dizer aquilo? Eu não tinha tanto senso de humor.

– E. – cortou ele. – Vou esquecer que me fez ficar com um vergão roxo que provavelmente demorará um mês para sair, se não contar a ninguém sobre minha tentativa fracassada de te impressionar.

– Espera um pouco. Você é que estava pedindo por aquilo, e além do mais eu... – parei quando suas últimas palavras penetraram em minha mente. – Você estava tentando me impressionar?

Meu rosto estava tão quente e vermelho quanto o carro de Apolo. E acredite em mim, porque já vi o carro de meu tio pessoalmente.

– Idiota, não é? – falou ele. – Talvez Nathalie tenha razão. – confessou um pouco envergonhado.

Eu não sabia o que dizer. Por sorte não precisei, porque ele continuou.

– Vamos fazer assim. Você fica com o arco e eu com a velocidade, pronto.

Eu continuei calada. Devia estar parecendo uma idiota. Então respirei fundo e criei coragem, mas eu estava tão nervosa... Pelos deuses, como os meninos são complicados, eu preferia mil vezes enfrentar uma das fúrias de Hades. Todo esse tempo eu tentei evitá-lo, tentando fugir do que eu sentia, enquanto ele sentia o mesmo por mim.

– Porque você nunca falou nada! – gritei com ele. O mistério da dupla lua, por um segundo, totalmente esquecido. – Eu tentei esconder o que eu sentia enquanto... – eu ainda gritava como louca quando senti ele se aproximar e seus lábios encostarem nos meus, fazendo-me calar.

Super sentidos idiotas. Conseguiam fazer com que eu fosse invulnerável a qualquer ataque, mas eram completamente inúteis contra semideuses lindos que me pegavam de surpresa com um beijo intenso e demorado.

– Me desculpa. – disse ele enquanto nos separávamos. – Mas sou filho de Hermes. Pegar as pessoas de surpresa é minha especialidade.

– Seu.... – comecei, mas antes que eu pudesse terminar a frase, ele já corria de volta aos chalés.

A noite chegou, e entre beijos roubados (malditos filhos de Hermes, deus dos ladrões) e luas duplas, eu passei a manhã e a tarde com a cabeça funcionando a mil.

Quando eu sentei ao redor da fogueira para a cantoria com os outros chalés, foi um alívio perceber que aquele dia maluco estava finalmente chegando ao fim.

Eu havia conversado com outras pessoas a respeito da lua, mas todos achavam que eu estava ou maluca ou zombando deles. Quíron não se encontrava no acampamento, portanto não havia ninguém a quem eu pudesse expor minhas preocupações. No fundo também estava com medo de que ele me achasse louca.

Mas eu não conseguia desgrudar os olhos da lua. Agora à noite, enquanto ela brilhava fortemente, o fenômeno da segunda lua aparecia ainda mais nítida. Duas luas grudadas, eu não entedia como os outros não enxergavam aquilo.

Suspirei e olhei ao redor. Meus olhos caíram sobre a figura de Jake, sentado ao lado de seus companheiros de chalé. Nós não havíamos nos falado mais desde o acontecimento surpreendente daquela manhã, mas também não havíamos tido tempo para isso. Nosso treino pesado no acampamento todos os dias, cuidava para que isso não acontecesse.

Inclinei-me para pegar um marshmallow na fogueira, quando uma voz dentro de minha cabeça me fez paralisar.

– Gabrielle, preciso falar com você. Encontre-me na entrada para floresta.

Senti uma pontada de medo. Reconheci a voz, e se ela precisava falar comigo, as notícias não deveriam ser as melhores.

– Estou indo mãe. – sussurrei em resposta.

Levantei devagar e disfarçadamente me dirigi à escuridão da floresta, do outro lado dos chalés. Os olhos de Jake me acompanharam, mas ele não me seguiu.

Senti Ártemis antes de vê-la. Sua aura de deusa expandia-se como o calor que irradia do sol. O poder dela tomava conta do lugar.

– Mãe? Aconteceu alguma coisa? – perguntei relutante.

Ela usava um vestido de seda prateado, às suas costas uma aljava e um arco, e uma tiara com uma lua circundava sua testa.

– Infelizmente sim, minha filha. – respondeu ela, com a expressão séria. – Não sinto mais a presença da Corça de Cerinéia, temo que esteja morta.

Mudei o peso do corpo, impacientemente.

– Mas como isso é possível? Quero dizer... Ninguém é capaz de achar a Corça sem a sua permissão. – lembrei.

Há três anos, capturar a Corça de Cerinéia tinha sido um dos trabalhos ao qual Zeus havia me incumbido de realizar, mas eu só havia conseguido encontrar o animal após notificar á Ártemis o meu desafio. O mesmo havia acontecido com Hércules nos tempos antigos. Ele havia precisado da autorização de Ártemis para levar a Corça à Euristeu.

– Ninguém, a não ser um deus. – respondeu Ártemis.

Balancei a cabeça sem acreditar.

– Por que um deus faria isso?

Ártemis mordeu o lábio inferior, pensativa.

– Você não sebe da importância da Corça? Tenho certeza que Quíron já deve ter lhe dado essa aula.

Franzi a testa. Não estava a fim de passar vergonha na frente de minha mãe, mas a verdade é que eu não prestava muita atenção nas aulas teóricas de Quíron.

Ártemis sorriu.

– Tudo bem. Você prefere estar em ação nas aulas práticas, e não trancafiada em uma sala de aula. Acho que tenho culpa nisso, a natureza não gosta de ser contida.

Sorri também, mas eu gostaria de poder me lembrar daquela aula. Deuses, se Annabeth estivesse aqui...

– O sangue da Corça... – começou Ártemis.

E de repente eu me lembrei.

– Sim, é claro! O sangue da Corça é a única arma capaz de matar um deus. – completei, mas então me retesei, pois havia interrompido o que Ártemis estava falando. – Desculpe.

Ártemis ergueu uma sobrancelha.

– Exatamente. E por esse motivo ela é quase impossível de ser capturada. Hércules apenas conseguiu por causa de sua força, e você, pelo fato ser minha filha, o que possibilitou que você a entendesse.

Imaginei se esse era mais um dos motivos pelos quais Ártemis não tinha filhos. Um filho de Ártemis teria poder sobre a Corça, e isso poderia ser um perigo para os deuses.

– Mas isso não faz sentido. – falei. – Se é a única arma capaz de matar um deus, porque exatamente um deus a mataria para pegar seu sangue?

A expressão de Ártemis se endureceu.

– Creio que não seja um deus qualquer. – respondeu ela.

Escutei passos atrás de mim. Virei-me e vi Jake vindo em minha direção.

– Gabrielle, eu fiquei preocupado. Você estava demorando e... – ele parou ao ver Ártemis. Então se recompôs. – Lady Ártemis.

Jake fez uma pequena reverência.

Ártemis o olhou como se ele fosse um inseto. Então de repente seus olhos se estreitaram e ela voltou seu rosto para mim com uma expressão interrogativa.

Essa não. Pensei. Ela sabe sobre o beijo.

– Está tudo bem Jake. – falei. – Pode ir.

Ele não se mexeu. Acho que podia perceber a tensão no ar.

– Isso mesmo Jake Rubber, se não se importa eu gostaria de falar a sós com minha filha.

Ártemis falou calmamente, mas era possível perceber o tom duro em sua voz. E a maneira com a qual ela havia dito o nome completo dele... Nem eu sabia disso. Ele não tinha escolha. Era uma ordem.

Jake engoliu em seco.

– Tudo bem então... Hã... Se precisar eu estarei lá atrás.

– Ela não vai precisar. – respondeu Ártemis, secamente.

Comecei a tremer. Era melhor Jake dar o fora, e rápido.

Fiz um gesto com a mão indicando que ele fosse embora. Eu sabia por que ele estava preocupado, um encontro com nossos pais era algo com o qual devíamos tomar cuidado. Cada palavra que disséssemos poderia fazer com que se zangassem e tudo poderia acabar muito mal.

Por fim, Jake virou-se e sumiu na escuridão.

Um silêncio constrangedor se abateu entre eu e Ártemis.

– Você tem certeza de que é isso que quer para você, minha filha? – perguntou a deusa.

– Mãe, eu não estou a fim de falar sobe isso. – respondi.

– Você o beijou. – disse ela. Não era uma pergunta.

Olhei para Ártemis.

– Não fui eu, foi ele. – me defendi.

– Você gosta dele. – continuou ela, sem ligar para o meu comentário anterior. Novamente, não era uma pergunta.

– Eu não sei direito o que eu sinto. – confessei.

Ártemis suspirou.

– Ele tem um bom coração... Para um garoto... – observou ela. – Vou ter uma conversa com Hermes.

Revirei os olhos.

– Mãe!

Ela tornou a sorrir. Aquilo era reconfortante. Percebi há quanto tempo eu não a via, e o quanto eu sentia sua falta. Também estava gostando do jeito com o qual ela me chamava de filha mais frequentemente, e não mais apenas pelo meu nome, Gabrielle.

Desviei meu olhar para o céu procurando esconder minha expressão. Foi então que reparei na lua. Não havia alguém melhor do que Ártemis para me explicar o que estava acontecendo com o nosso satélite natural.

– A lua. – comecei. – Está estranha, eu contei isso aos meus amigos, mas...

Parei ao olhar para Ártemis. Sua expressão era de frustração, quase tristeza.

– O que houve? – perguntei, aproximando-me mais.

Ártemis olhou para mim. Havia mágoa em seu olhar.

– Como eu lhe disse, tenho quase certeza que não foi um deus comum que matou a Corça. – disse ela.

– Como assim?

– Selene. – contou ela. O nome saiu de sua boca com amargura, como se lhe doesse pronunciá-lo.

Ri de nervosa.

Selene havia sido a deusa da lua há milhões de anos atrás, junto com Hélio, deus do sol e também seu irmão. Isso havia acontecido muitos anos antes de os deuses se quer terem erguido o Olimpo. Com o passar do tempo os mortais pararam de adorar os deuses antigos e eles perderam força, sendo totalmente esquecidos e por fim morrendo. Então vieram os olimpianos, tomaram seus lugares e por conseqüência, algumas de suas tarefas.

Minha mãe tornou-se a nova deusa encarregada da lua, e Apolo o novo deus sol, no lugar de Hélio.

O que Ártemis me contava não podia ser possível. Os antigos deuses haviam desaparecido há milhares de anos, em um tempo em que nem mesmo a raça humana havia sido totalmente estabelecida.

– Mas Selene está morta! – disse eu.

Ártemis suspirou, como se tudo o que ela mais quisesse fosse acreditar nisso.

– De tempos em tempos os deuses antigos voltam, minha filha. Não totalmente reconstruídos, mas sim em forma de uma fraca sombra. Eles tentam reerguer-se para tornarem-se poderosos novamente. Possuem o corpo de algum mortal para poderem ter uma forma, e nos causam problemas até que sejam banidos novamente. – explicou Ártemis.

Eu lembrava-me de Percy ter me contado certa vez sobre seu pai, Poseidon, ter lutado contra Oceano, o antigo deus do mar, que havia governado na mesma época que Selene. Eles haviam duelado na grande batalha de Nova York, e por fim Poseidon derrotou Oceano, mandando-o para o Tártaro.

– Então quer dizer que Selene está de volta. Por isso há duas luas no céu? – perguntei, tentando entender.

Ártemis concordou com um aceno de cabeça.

– Não pode haver duas luas, como não pode haver duas deusas da lua. Eu preciso encontrá-la e mandá-la de volta para o lugar do qual ela nunca deveria ter saído.

Senti um aperto no peito quando me dei conta de suas palavras. “Não pode haver duas deusas da lua.” Se Selene estava de posse do sangue da Corça, única arma capaz e matar um deus então...

– Mãe, você não pode! É perigoso! – as palavras saíam aos tropeços. De repente tudo fez sentido. Selene queria matar Ártemis, e já até possuía a arma necessária para isso. Meu sonho fez sentido. O vulto da mulher no beco, “você vai me ajudar a voltar a ser o que eu era.”. Selene planeja voltar a ser a deusa da lua. E as palavras de Ártemis: “eles possuem o corpo de algum mortal para poderem ter uma forma, e então causam problemas...”

Comecei a tremer de raiva.

– Meus deuses, aquela pobre menininha. Selene possuiu o corpo dela.

Ártemis franziu o cenho, sem entender. Então seus olhos se arregalaram de terror ao ler minha mente e visualizar meu sonho.

– Eu preciso ir. – disse ela. Seu corpo todo tremia com uma luz prateada, raiva estampava seu rosto. Ela estava prestes a assumir sua forma divina.

Forcei-me a olhar para ela.

– Mãe, por favor. É perigoso demais, convoque outros deuses. Não pode ir sozinha, ela quer você.

Meus olhos começaram a arder.

Ártemis acalmou-se um pouco e olhou para mim. Sua expressão de raiva substituída por preocupação. Ela se aproximou e tomou minhas mãos.

– Eu preciso saber o que aconteceu. Seguirei o rastro da Corça e ela me levará direto à Selene...

– Mas é isso o que ela quer! – interrompi.

– Shh. – fez Ártemis. – Não se preocupe comigo, eu sou a deusa da caça. – ela abriu os braços, como se isso explicasse tudo. – E até agora nenhuma presa jamais fugiu de mim.

Comecei a chorar.

– Por que os outros não vêem o que está acontecendo com a lua? – perguntei.

Ártemis secou uma de minhas lágrimas, delicadamente.

– Porque não possuem uma conexão com ela do jeito que nós possuímos, minha pequena criança. – explicou ela.

Eu não queria deixá-la ir. Selene a estava esperando em algum lugar, se a antiga deusa possuía o sangue da Corça e conseguisse capturar Ártemis... Não, eu não queria pensar naquilo.

– Ao menos me deixe ir com você. – implorei.

Em um ato impulsivo abracei minha mãe. O calor dela me envolveu. Ártemis apertou-me contra seu peito em um abraço apertado, como uma despedida.

– Você deve ficar aqui. As Caçadoras montaram acampamento aqui perto, logo depois da fronteira do acampamento. Thalia está no comando, e eu já notifiquei minha caçada a elas. Se acontecer alguma coisa, ordenei para que viessem ao acampamento e lhe procurassem. – Ártemis largou-me e acariciou meu rosto, tirando uma mecha de cabelo da frente de meus olhos e colocando atrás de minha orelha. – Cuide bem delas.

– Mãe... – sussurrei.

– Eu vou voltar. – falou ela. Mas percebi que havia dúvida em sua voz.

– Jura pelo Rio Estige? – perguntei.

Ela sorriu e beijou minha testa.

– Eu te amo minha filha, sempre amarei.

Então sumiu em um flash ofuscante de luz prateada, que podia ter sido visto da fogueira do acampamento. Deixando-me sozinha, sem uma promessa de garantia e com o rosto tomado de lágrimas.


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