Juntos pelo acaso escrita por MsNise


Capítulo 12
Medos


Notas iniciais do capítulo

Olá! Tudo bem com vocês? :3
Antes de tudo, quero dedicar esse capítulo a Ys porque ela me deu a ideia de uma parte lá no meio que eu não quero contar porque seria spoiler HIDASHDISUADA E, além de tudo, ela está sempre me dando ideias, opinando e me ajudando. Obrigada por tudo, Ys ♥
Geeeente, eu acho que o nome desse capítulo deveria ser "Fofura" porque é o capítulo mais nhonhonho de toda a história! Sério, superou aquele que eu tinha dito ser meu preferido. Esse sim é oficialmente meu preferido até agora!
Espero que se torne o preferido de vocês também :3



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Foi um impulso insano. Se ela me dissesse que não fazia nenhum sentido, eu concordaria. Mas se não aceitasse o desafio, eu insistiria. Sentia em meu coração que aquele era o dia certo.

Logo que minha mãe foi dormir — já passava da meia-noite —, fui até meu quarto e coloquei uma blusa de lã e um moletom preto. Silenciosamente, esgueirei-me para fora de casa e peguei minha bicicleta quase nunca utilizada.

Não havia movimento nas ruas. As poucas pessoas que passaram por mim estavam em grupos de amigos e conversavam alto; provavelmente estavam bêbadas. Ninguém realmente ligou para um menino andando de bicicleta durante a noite. Melhor assim.

Parei em frente a casa de Sali. Encostei a bicicleta no muro e digitei seu número. Ela atendeu no segundo toque.

— Guto?

— Está ocupada?

— O quê? Ah… não — ela parecia incerta.

— Não mesmo?

— Não.

— Então nós vamos superar um medo seu.

Ela demorou um pouco para responder. E pareceu confusa quando falou.

— Guto, o que você quer dizer com isso?

Respirei fundo.

— Quero dizer que nós vamos ao cemitério.

— O quê? Agora? Guto, por Deus, não!

— Por que não?

— Porque… porque é de noite. E eu não posso sair de casa tão tarde.

— Seus pais já estão dormindo?

Ela parecia tensa.

— Sim, mas…

— Mas?

— Eles vão me ouvir saindo de casa. A porta range.

— Pule a janela então.

— Gustavo! Eu definitivamente não vou sair escondida de casa durante a noite.

Sabia que ela recusaria. Sali não era do tipo que cometia loucuras no meio da noite; mas não seriam loucuras perigosas. Não nos drogaríamos. Eu simplesmente queria levá-la até um cemitério para ajudá-la a superar seu medo.

Suspirei, aceitando a derrota com pesar.

— Tudo bem. É… me desculpe. Foi um surto de… — balancei a cabeça. — Nada. Eu não sei. Pode ir dormir.

— Guto? — sua voz estava receosa.

— Me desculpe mesmo.

— Não precisa se desculpar — ela soltou um riso trêmulo. — Por que você teve essa ideia?

Hesitei.

— Achei que pudesse ser legal. E acho que é sempre bom superar medos.

Ouvi ela respirar fundo.

— E se eu, por acaso, disser que… talvez não ache uma ideia tão ruim?

— Você…?

— Qual é o plano?

Não podia acreditar. Sabrina, a minha amiga Sabrina, que se recusava a passar um final de semana ao meu lado, estava aceitando ir até um cemitério no meio da noite? De alguma forma, eu sabia que ela recusaria e já estava preparado para aquilo quando saí de casa. Mas para sua aceitação… ah, para aquilo eu certamente não estava preparado.

— Você vai ter que achar um jeito de sair de sua casa sem que seus pais vejam. Se não quiser fazer barulho com o portão, pode pular o muro que estarei do outro lado te esperando — minha voz estava acelerada de empolgação. — Coloque uma blusa grossa que está frio aqui fora, mas eu trouxe um moletom meu para você se passar por um menino durante o caminho; assim ninguém mexe com você — respirei fundo. — Acho é só isso.

Apenas ouvi sua respiração acelerada por um tempo. Encostei-me no muro, fechei os olhos e sorri.

— Fique calma — sussurrei.

— Você sabe que nunca fiz nada parecido com isso, não é?

— E você sabe que para tudo tem uma primeira vez, não é?

Ela soltou um riso fraco.

— Ah, Guto — ela suspirou. — Não parece certo eu estar tão feliz com isso.

Ela estava feliz? Quis que ela estivesse por perto para eu poder abraçá-la.

Apertei o telefone contra minha orelha.

— E quem disse que é errado? — sussurrei.

Desejei que ela descrevesse como estava naquele momento para que eu pudesse montar a sua imagem. Olhos fechados como eu? Sorriso nos lábios? Mãos trêmulas? Parada? Sentada em sua cama? Em pé? Luzes acesas ou apagadas?

Estava prestes a perguntar quando ela disse:

— Então eu acho que te vejo aí fora — sua voz era apenas um murmúrio.

— Estarei te esperando.

Sentei-me no chão e encostei minhas costas no muro para esperá-la. Concentrei-me, tentando ouvir qualquer barulho que indicasse que ela estava próxima, mas por um longo tempo não pude ouvir nada. Somente quinze minutos mais tarde ouvi alguns ruídos de madeira batendo e de travas. Escutei sua voz xingando e me levantei para esperá-la. Logo seu corpo surgiu no muro e ela se sentou nele com um sorriso no rosto.

— Olá — ela estava ofegante.

Seu cabelo, diferente dos outros dias, estava preso em um coque alto e firme. Ela não trajava um de seus típicos moletons, e sim um suéter de lã. Estava sorridente. Sorridente e linda.

— Vem cá — disse e me aproximei do muro, estendendo minhas mãos. — Eu te ajudo.

Ela soltou seu corpo e consegui pegar em sua cintura no meio do caminho, de modo que ela pudesse apoiar suas mãos em meus ombros e diminuir o impacto com o chão. Quando ela chegou ao chão, no entanto, não senti a vontade imediata de soltá-la. Ficamos parados alguns segundos sorrindo um para o outro.

— Ainda não acredito que estou fazendo isso — ela murmurou.

— Eu também não.

Sali respirou fundo e se soltou de meu “pseudo” abraço, caminhando até a bicicleta.

— E o meu moletom? — perguntou enquanto roçava seus dedos no guidão.

— Ah, sim — avancei até ela e peguei o moletom dentro da sacola. — É o mesmo daquele dia da chuva. É que… eu gostei de como ele ficou em você.

Ela me lançou um sorriso tímido antes de vestir o moletom. Não pude evitar o pensamento de que ela ficava mais bonita do que já era quando vestia aquela peça de roupa.

— Por que não está com a sua trança típica? — perguntei quando ela tateou o cabelo para arrumá-lo.

— Ah, é a minha mãe que sempre faz a trança. E eu já tinha soltado o meu cabelo, então o coque era a única opção possível.

— Por que não deixa seu cabelo solto?

— Ele me atrapalha quando eu abaixo a cabeça e cai sobre meu rosto — ela deu de ombros.

— Eu gostaria de saber como é seu cabelo solto.

Ela franziu o cenho e olhou para o chão.

— Outro dia — murmurou. Fez uma pequena pausa antes de continuar. — Guto… a gente pode ir antes que minha mãe se dê pela minha falta?

— Acha que ela pode acordar?

— Não sei bem — ela suspirou. — Não tenho certeza se ela vai me ver durante a noite enquanto eu durmo. Então, o quanto antes fomos e voltarmos, melhor para mim.

— Tudo bem — subi na bicicleta e ela montou na garupa, segurando firmemente em minha cintura. — Coloque a touca.

— Olha, se o plano é fazer eu me passar por um menino, não vai funcionar se eu segurar em sua cintura desse jeito — ela comentou.

Sorri.

— Sinceramente? Eu não me importo que meu plano dê errado, se esse for o caso.

— Que bom — ela sussurrou e apoiou sua cabeça em minhas costas.

Foi agradável. Ela não parecia tão nervosa; parecia, na verdade, extremamente confortável. Ela não costumava abraçar a minha cintura e apoiar a cabeça em minhas costas — e o fez com muita naturalidade. Gostei de sentir seu aperto firme.

Comecei a pedalar noite adentro. Não conversamos durante o caminho, mas não achei que fosse preciso. A noite nos calava. O vento nos calava. A situação nos calava. E eu gostava muito do silêncio.

— Guto? — ela sussurrou quando já estávamos perto do cemitério.

— Sim?

— É possível entrar no cemitério durante a noite, tão tarde?

Era uma boa pergunta que eu tinha analisado muito antes de nos meter naquela enrascada. Tinha deixado para respondê-la depois porque… bem, não queria que ela desistisse antes de chegarmos ao lugar.

— Na verdade, não — expliquei. — E tem o guarda-noturno. Nós vamos entrar silenciosamente pelo muro lateral.

— Sério isso? — mas sua voz não parecia zangada. Quis poder ver sua expressão.

— Sim.

Ela riu.

— Acho que vou superar todos os meus medos essa noite.

Sorri. Sua voz transparecia relaxamento, contudo senti seus braços se apertarem ao redor de minha cintura.

Coloquei um pé no chão a fim de parar a bicicleta.

— Chegamos — concluí.

Sali saiu da garupa imediatamente e começou a analisar a altura do muro que teríamos que pular. Para mim não seria um grande problema por conta de minha altura, no entanto o muro era bem alto para Sali. Ela me olhou com o questionamento no olhar.

— Eu vou te ajudar.

Ela sorriu. Um sorriso inseguro.

— Tudo bem.

Suspirei e me aproximei de seu corpo. Ela deixou uma de suas mãos encostadas no muro de concreto e abaixou a cabeça.

— Sali, se você não quiser mais eu vou entender — sussurrei.

Ela mordeu o lábio inferior e fechou os olhos. Tão linda…

— Eu quero — sua voz estava quase inaudível. Pigarreou e tentou de novo, levantando então a cabeça e abrindo seus olhos. — Eu quero, Guto.

Engoli em seco e me agachei, entrelaçando as minhas mãos e oferecendo-as para Sali. Ela riu ao ver o que eu pretendia fazer.

— Não disse que te ajudaria?

Ela respirou fundo e colocou um de seus pés em minhas mãos, em seguida apoiando uma de suas mãos em meu ombro. Encarou-me.

— Pronta?

— Pronta.

Tomei impulso e a ergui do chão, ajudando-a a alcançar o topo do muro. Ela agarrou-se a ele e se concentrou antes de ser impulsionada mais uma vez para cima através de mim e usou toda a sua força para conseguir jogar-se na horizontal sobre o muro. Ela deitou sua cabeça no concreto e tentou recuperar sua respiração.

— Tudo certo? — perguntei.

— Mais que… certo — respondeu ofegante.

Sorri. Estiquei-me o suficiente para conseguir alcançar o topo do muro e impulsionei meu corpo para cima, encaixando meus pés em algumas falhas no concreto. Falhas ocasionadas por garotos de 13 anos que costumavam pular o muro durante a noite somente para explorar o cemitério; incluindo a mim, obviamente. Eu tinha feito aquilo tantas vezes que não tive dificuldade nenhuma em me estabelecer sobre o muro.

— Você escolheu o lugar certo — sussurrou Sali de forma embasbacada. — Exatamente no ponto que tem um túmulo alto o suficiente para nos apoiarmos nele antes de descermos.

Sorri misteriosamente para ela.

— É que eu tenho um sexto sentido.

Sali revirou os olhos.

— Com certeza, Guto — ela riu. — Mas acho que é melhor entrarmos antes que o guarda note nossa presença em cima do muro.

O ponto também era exato pelo fato de ser longe das luzes dos postes. Aos treze anos, a estratégia era a parte mais importante da invasão. Balancei a cabeça para afastar as lembranças e voltar para o presente, onde eu estava sobre um muro junto com Sali e queria ajudá-la a superar seu medo.

— Tudo bem — concordei e desci em movimentos habilidosos, imitados por Sali de forma desajeitada.

Comecei a rir quando ela finalmente conseguiu chegar ao ponto onde eu estava. Ela tinha tropeçado no final e acabou tendo que ser segurada por mim. No entanto, ao contrário dos filmes hollywoodianos, a situação não foi nada romântica, mas sim simplesmente… hilária.

— Pode parar com isso — ela bateu em meu peito antes de se entregar à realidade da situação e começar a rir também. — Não tem graça nenhuma.

— Tem sim — retruquei.

Ela balançou a cabeça negativamente e respirou fundo, parecendo finalmente perceber onde estávamos. Imediatamente começou a tremer; e não de frio. Estava prestes a estreitar ainda mais nosso abraço a fim de acalmá-la quando ela me soltou e começou a andar sozinha por entre os túmulos.

Esticou sua mão trêmula e a roçou por nomes e fotos de pessoas que já não estavam mais entre nós.

— Eu tenho medo de cemitérios porque eles são carregados com o peso da morte — ela sussurrou com a voz rouca. — E eu só consigo pensar no quanto somos tolos em pensar que ainda temos “a vida toda pela frente”. Não podemos saber quanto tempo ainda temos.

Aproximei-me dela, no entanto não houve nenhum esforço de sua parte para retribuir meu olhar.

— Você tem medo de morrer? — perguntei.

Ela abaixou a cabeça.

— De algum modo, acho que todos nós temos. Fazemos tantos planos que a ideia de morrer parece absurda e distante demais. Mas, na verdade, a morte sempre está nos espreitando.

Por algum tempo ficamos simplesmente em silêncio, absorvendo as palavras e o ambiente hostil. Para mim, no entanto, o cemitério não era tão opressor. Era fascinante.

— O pior tipo de morte é a morte em vida — murmurei.

— O que quer dizer?

— Todas essas pessoas estão mortas de corpo, mas talvez de espírito ainda não. Não tem a ver com nenhuma ideia de “vida após a morte”, é só que… é tão fácil morrer enquanto vive. Definhar com acontecimentos. Ver somente o lado ruim de tudo. Nesse lugar há tantas pessoas que viveram de verdade, sabe? E a vida delas pode ter acabado no meio de uma frase, em um acidente ou em uma cama de hospital. Eu não sei. Mesmo assim, elas viveram de verdade, então não faz diferença. Porque a morte é natural; ela tem que acontecer. E já que é assim… a única coisa que nos resta é fazer a vida valer a pena.

Ela me olhava atentamente. Era a minha vez de não querer retribuir o olhar.

— Para mim, esse lugar não está carregado de morte — sussurrei e finalmente sustentei o olhar de Sali. — Ele está carregado de histórias. De vidas. Tristes e felizes. Lotadas de sofrimentos e realizações. Cemitério é um lugar cheio de vida.

— E as crianças que morreram? Elas não tiveram tempo de viver — sua voz estava embargada. Vi uma lágrima escorrendo por sua face.

Sem que eu realmente pensasse nas implicações daquilo, peguei em sua mão e entrelacei nossos dedos. Não foi desconfortável ou como segurar uma mão qualquer. Foi agradável; o encaixe perfeito.

— Não nos cabe questionar isso — sussurrei. Ela soluçou. — Se quisermos questionar o mundo todo, não teremos tempo para viver as nossas vidas e fazê-las valer a pena. Vamos ser uma dessas pessoas que tem uma história e uma vida verdadeira. Não vamos tornar esse lugar tão opressor.

Ela fechou seus olhos.

— Ah, Guto — sussurrou e soltou de minha mão, em seguida abraçando forte a minha cintura.

Suspirei e passei meus braços ao redor de seus ombros, apoiando minha cabeça na sua. Seu coque e a touca, no entanto, me atrapalharam. Com movimentos medidos, abaixei a touca de sua cabeça e rocei meus dedos na fita que prendia seu coque.

— Pode soltar — ela murmurou.

Sem pensar duas vezes sobre o assunto, puxei a fita cuidadosamente e vi seu cabelo caindo sobre seus ombros. Afastei-me um pouquinho para conseguir observá-lo. Era indefinido; ondulado até certa altura, e então nas pontas formava-se cachos grandes e definidos. No entanto, perto da raiz havia alguns fios pequenos e bem cacheados. Sorri um pouquinho ao ver o quanto Sali ficava diferente com o cabelo solto.

— Horrível, não é? — ela tentou rir apesar das lágrimas que ainda não tinham secado.

Em um novo impulso sem sentido, segurei seu rosto entre minhas mãos e limpei suas lágrimas. Ela ficou me olhando fixamente.

— Não, Sali — discordei em um sussurro. — É lindo.

Ela suspirou quando puxei-a novamente para o abraço e apoiei minha cabeça na sua. Fechei meus olhos e me lembrei de um poema de Alvares de Azevedo chamado “Lembranças de Morrer”. Eu tinha decorado-o na semana anterior quando tinha que apresentar um trabalho e ele ainda estava fresco em minha memória.

Comecei a declamá-lo lentamente.

Eu deixo a vida como deixa o tédio

Do deserto, o poento caminheiro,
— Como as horas de um longo pesadelo
Que se desfaz ao dobre de um sineiro;

Como o desterro de minh’alma errante,
Onde fogo insensato a consumia:
Só levo uma saudade — é desses tempos
Que amorosa ilusão embelecia.

Só levo uma saudade — é dessas sombras
Que eu sentia velar nas noites minhas.
De ti, ó minha mãe, pobre coitada,
Que por minha tristeza te definhas!

Se uma lágrima as pálpebras me inunda,
Se um suspiro nos seios treme ainda,
É pela virgem que sonhei que nunca
Aos lábios me encostou a face linda!

Só tu à mocidade sonhadora
Do pálido poeta destas flores.
Se viveu, foi por ti! e de esperança
De na vida gozar de teus amores.

Beijarei a verdade santa e nua,
Verei cristalizar-se o sonho amigo.
Ó minha virgem dos errantes sonhos,
Filha do céu, eu vou amar contigo!

Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz, e escrevam nela:
Foi poeta — sonhou — e amou na vida.

O silêncio foi a única coisa que ouvi por um bom tempo. O silêncio na escuridão de um cemitério.

— Isso foi lindo, Guto — sussurrou Sali por fim, afastando a cabeça do meu peito e me olhando. Ela já não chorava mais.

Sustentei seu olhar por alguns segundos.

— Dance comigo — pedi com a voz rouca.

Sem questionar, Sali colocou as duas mãos em meus ombros e me deixou segurar em sua cintura. Mesmo que não tivéssemos nenhuma música pra ajudar no momento, embalamo-nos suavemente. Olhando em seus olhos, percebi que não precisava de nenhuma música. Nunca tinha gostado da companhia de uma menina tanto quanto gostava da companhia de Sali; era uma relação inocente e cheia de amor.

Sorri fracamente. Ela também sorriu e apertou os meus ombros, sem parar de nos embalar. Ela era linda. Cada detalhe de seu rosto, de seu cabelo e de suas atitudes. Tudo a deixava linda. Até mesmo seus defeitos, seus desaparecimentos, sua negação. Ela era linda no todo, não em partes. E aí residia toda a diferença.

Ela fechou seus olhos e apoiou a cabeça em um de meus ombros. Foi a cena mais romântica que já tinha vivido até então — cena romântica que vivi com a minha melhor amiga. Talvez por causa disso que tenha sido tão perfeita.

No entanto, ela chegou ao fim de modo nada conveniente.

— Quem está aí? — perguntou José, o homem que cuidava do cemitério.

Ele cuidava do cemitério desde… bom, desde sempre. Quando eu tinha 5 anos sua esposa faleceu e ele começou a tomar conta do cemitério — sempre pensei que fosse uma maneira de continuar próximo da mulher que amava —, afinal ele não tinha conseguido ter filhos e estava sozinho no mundo.

Eu já era figura carimbada; ele me flagrou tanto com os meus amigos que, pouco antes de abandonarmos a ideia de invadirmos o cemitério, nos aceitou por lá. Talvez tenha sido por causa disso que abandonamos o hábito; afinal, a partir do momento que algo deixa de ser proibido, automaticamente também deixa de ser emocionante.

Fazia quase quatro anos que não via José. Perguntei-me se ele ainda se lembraria de mim.

Quando Sali ouviu sua voz ofegou, levantou a cabeça e me olhou com os olhos arregalados. Murmurei para que ela ficasse quieta e a encostei no túmulo mais próximo. Estava prestes a sair de lá quando ela segurou em minha mão.

— Não, Guto — sussurrou com urgência.

Sorri sem mostrar os dentes.

— Confie em mim — apertei-a mais uma vez contra o túmulo para deixar bem claro que ela não saísse de lá e comecei a andar em direção a José, que ainda não tinha nos encontrado.

A luz de sua lanterna varreu o meu rosto. Ele parou e a direcionou diretamente para mim, obrigando-me a fechar meus olhos.

— Menino Gustavo? — ele perguntou.

Respirei fundo.

— Seu José — assenti em cumprimento e tirei a touca para revelar melhor meu rosto. Estendi minha mão. — Tudo bem?

Ele finalmente deixou a lanterna no chão e segurou em minha mão, sacudindo-a com empolgação. Começou a rir.

— Menino Gustavo, por que não veio mais com seus amigos?

Ele não estava muito diferente do que eu me lembrava. Um pouco mais castigado pelo tempo, talvez.

— Não sei — dei de ombros. — Acho que passou a fase.

— Sim — ele concordou. — São fases. As tão amadas fases. Mas me diga, o que veio fazer aqui hoje?

Hesitei.

— Eu… trouxe uma amiga aqui.

— Uma amiga? — ele arrastou as sílabas.

Droga, eu sabia que ele ia interpretar errado.

— É. Somente uma amiga — não queria contar que levei Sali ao cemitério porque ela tinha medo e eu queria ajudá-la a superar. Senti que se o fizesse poderia quebrar sua confiança. — Quer conhecê-la?

— Eu adoraria.

Suspirei e fui até o lugar onde tinha deixado Sali. Ela continuava com os olhos arregalados.

— Está tudo bem — sussurrei, puxando-a pelos ombros.

— Você… o conhece? — ela parecia apavorada.

— É uma longa história — exemplifiquei e segurei em seu pulso, levando-a até o lugar onde José estava. — Mas, por ora, não precisa se preocupar. Tudo bem?

Mesmo que incerta, ela assentiu.

— Seu José, essa é Sabrina. Sabrina, esse é Seu José — apresentei-os.

Ele estendeu sua mão. Quando Sali a segurou, percebi que estava tremendo. Vê-la tremendo, tão vulnerável, me fez querer protegê-la. Sem realmente pensar sobre minha atitude, passei um de meus braços pelos seus ombros e a apertei contra mim. Aquilo faria José desconfiar de nossa amizade, mas eu já não estava mais ligando para sua opinião.

— Então, você é a amiga do menino Gustavo? — ele perguntou.

— Sim — ela murmurou.

— Vocês combinam. Espero que sejam felizes.

Revirei meus olhos e tentei evitar que o desastre fosse maior.

— Acho que já está na hora de irmos, não é, Sali?

Ela assentiu de forma agitada.

— Ah, mas já? Quando você era menino, costumava conversar bastante comigo — José reclamou.

— Eu sei, é que… já está mesmo na hora de irmos. Toque de recolher — inventei.

Bem, não deixava de ser verdade.

— Se é assim, então tudo bem. Não quero encrencar vocês com seus pais — ele suspirou. — Venham me ver mais vezes, crianças.

— Quem sabe — sorri. — Foi bom te ver novamente, Seu José.

— Digo o mesmo, menino Gustavo. Digo o mesmo.

Apertamos nossas mãos.

— Querem que eu abra o portão lateral? É melhor que pular o muro.

— Seria ótimo. Obrigado.

Sali não disse nada até que estivéssemos perto da bicicleta. Ela se soltou de meu abraço e arrumou o cabelo em um coque novamente, recolocando a touca em seguida.

— Você tem tanta coisa pra me contar, Guto — ela disse, se encostando no muro.

Ela sempre se encostava no muro quando tinha algum por perto. Deveria ser algum tipo de hábito.

— Bastante — concordei. — Quer que eu comece agora?

Ela pensou um pouco sobre o assunto antes de negar com a cabeça.

— Por quê?

Pensei que ela fosse me falar que era por causa do horário e que ela já tinha que estar em casa. Passava das duas horas da manhã.

— É um bom motivo para precisarmos sair de novo — disse.

Naquela noite, por causa daquela frase, sonhei com ela.

Mas na manhã seguinte, quando acordei, já não me lembrava de sonho algum.


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Notas finais do capítulo

E entããããão? O que acharam? Digam-me suas opiniões, elas são imensamente importantes!
Até sexta que vem, amores ♥



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