Perdida escrita por Pesta


Capítulo 1
Capítulo 1




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Começou a chover muito forte quando o grupo resolveu parar de jogar. Deixaram tudo sobre a mesa da sala de estar e foram para o quarto. Ficaram ainda um bom tempo conversando, empolgados, até pegarem no sono. Bianca estava deitada num colchão no chão do quarto.

Ouviam as gotas de chuva violentas lá fora e o ar gelado conseguia entrar por debaixo da porta. Bianca nunca esteve tão contente. A partida ia continuar na manhã seguinte, e não se importava por estar chovendo e pela piscina da chácara com certeza ter-se enchido de sujeira depois da ventania.

Teve um sonho muito bom. Um sonho bastante real, inclusive. Em dado momento da noite, ficou com bastante frio. O lençol que a cobria não estava conseguindo protegê-la. O incômodo foi tanto, que precisou acordar. E quando abriu os olhos tudo era escuridão. Não sentia mais a maciez do colchão debaixo de seu corpo. Sentia como se estivesse sentada sobre grama fresca. Não conseguiu sentir a presença de seus amigos ao seu redor e teve a certeza de não estar mais dentro do quarto, porque ventos a atingiram diretamente.

- Meu...! Rafaela! Andréia! Igor! – chamou.

Nenhum de seus amigos a atendeu. Bianca se enrolou no lençol e pôs-se de pé. Sim. Realmente. Estava pisando em grama. Tocou no chão para se certificar. Mas como foi parar ali? Seria sonâmbula? Estaria no quintal da chácara? Quanto devia ter andado? Procurou enxergar alguma coisa na escuridão. Havia luzes mais adiante. Podiam ser as lâmpadas da varanda da casa, embora não parecessem lâmpadas, mas sim chamas na escuridão, iluminando paredes muito distantes entre si. Caminhou até lá, ainda muito sonolenta e confusa.

Ouviu o balançar de árvores aparentemente muito próximas e estranhou o fato do chão não estar lamacento depois da chuva que se passou. A chuva! Pois é! Já acabara?

- Ai!

Sentiu as coxas e joelhos se encontrarem com alguma coisa a sua frente. Tateou diante de si. Parecia um cercado de madeira.

- Mas que diabos!

Não enxergava nada. Nem mesmo os contornos da madeira. Precisou contorná-lo para poder seguir adiante. Andou uns vinte e cinco metros à direita até, por fim, chegar ao final da cerca. Passou a mão esquerda pela cerca para não perder o caminho e para ter onde se apoiar casa pisasse em algo indesejado. Agora as luzes estavam mais próximas. Uma delas, inclusive, estava a sua esquerda. Não era uma lâmpada. Era uma tocha, presa na parede de uma casa de dois andares. Alta. Cujo andar térreo era de pedra e o superior de madeira.

Bianca piscou diversas vezes. Apertou os dedos aos olhos para ver se realmente estava enxergando o que enxergava. Não havia nenhuma chácara nos arredores que era feita de madeira. Nem mesmo de pedra. Além do mais, o estilo da construção era rústico e antigo demais. A luz das tochas mais próximas só permitiu que ela enxergasse poucas coisas, como uma carroça e outras paredes de pedra.

Já imaginando o impossível, Bianca resolveu bater na porta da casa a sua esquerda, para tentar descobrir como seu sonambulismo a levou tão longe. Bateu três vezes na porta de madeira. Estava bastante frio. Mais frio do que se lembrava. Enrolou-se melhor ao lençol.

A porta de madeira se abriu e um rosto e uma lamparina emergiram da escuridão da casa. O rosto, de um rapaz, fitou a jovem atentamente.

- Boa noite. – disse a garota, imaginando por que ninguém ali tinha lâmpadas. – Acho que me perdi. Eu estava na chácara dos tios de meu amigo e...

- Chácara? – indagou o rapaz, com uma voz feminina.

Ora essa! Não é um garoto! É uma mulher!, pensou Bianca. Mas tinha um rosto muito masculino e cabelos curtos. A garota saiu um pouco mais de dentro da casa, com a lamparina balançando ao lado do rosto. Fitou Bianca um pouco mais.

- É. Numa chácara...

Bianca parou de falar quando percebeu que a jovem vestia uma túnica, calças e botas como aquelas vestimentas dos homens dos filmes medievais. Tentou ver o que havia dentro de sua casa, mas tudo ali dentro também estava mal iluminado.

- Você... Podia... Me ajudar...

- Nesta escuridão será difícil. Além disso, pelo vento frio, acho que vai chover. Mas posso abrigá-la até o amanhecer. De onde você vem? – disse, fazendo sinal para que entrasse.

- Eu...

Bianca cruzou a porta e o que viu deixou-a em choque. Não havia sofás naquela “sala”, nem uma televisão, ou telefone. Só móveis feitos de madeira. Prateleiras na parede guardavam jarras, potes e pratos de barro. Havia no chão baldes de madeira e cestas de vime. Do lado esquerdo da casa, uma lareira e um estoque de lenhas ao lado. No canto direito, uma vassoura. Havia também, no centro da casa, uma mesa de madeira, com duas cadeiras com encosto e no canto direito da parede, banquetas pequenas.

Velas iluminavam o interior da casa. Duas correntes presas nas vigas de sustentação do piso superior deixavam dois baldes suspensos no ar. Uma escada de madeira com corrimão encontrava-se no fim da ‘sala’.

A casa exalava todo tipo de odores. Lá fora, o cheiro de excremento animal era pior. Ali dentro, o cheiro de madeira era bastante forte, assim como cheiro de comida já fria. Bianca olhou a sua volta, analisando cada espaço da casa, tentando acreditar que era real. Depois voltou-se para a garota atrás de si.

- Onde estou? – indagou, com medo de ouvir a resposta.

- Pallas.

Sua primeira reação foi rir. Bianca riu. Depois, quando a piada não teve mais graça, seu sorriso nervoso suavizou seu rosto. Pallas era o nome de uma cidade da história criada por seu amigo, Marcelo, que era Mestre em suas aventuras de RPG. Como poderia estar em Pallas? Impossível! Estava sonhando! Só podia estar sonhando! Mas este sonho era real demais! Assustadoramente real!

- Você nunca esteve em Pallas... – observou a jovem, colocando a lamparina sobre a mesa. – Pelo que parece.

Bianca sacudiu a cabeça, querendo chorar, mas se conteve.

- Qual o seu nome?

- É... B... Bianca.

- Meu nome é Liliheid.

Bianca fitou-a.

- Isto é alguma piada? Ou me drogaram? Colocaram alguma coisa no meu refrigerante ou algo do tipo? É isso?

- Ham? Não entendi.

Liliheid olhou para seus pés. Estavam nus. Ofereceu-lhe sapatos. Bianca recusou-os.

- Pode me levar para casa?

- Ainda não sei onde fica sua casa e como eu disse, estou certa de que vai chover. É melhor ficar aqui esta noite. Não costumo abrigar estranhos, mas você é mulher e é perigoso andar sozinha no escuro. Venha comigo.

Liliheid subiu a escada. Bianca, de pernas trêmulas e coração abalado, seguiu-a. A escada era muito íngreme, por isso sentiu dificuldade e nervosismo ao subi-la. Liliheid, no entanto, o fazia como se estes detalhes não fossem problema. Bianca, ainda enrolada ao seu lençol, percebeu que o andar superior era um quarto com cama ampla e onde guardavam baús e mais baús, provavelmente com objetos pessoais da dona.

- Você... Vive sozinha nesta casa?

- Não exatamente. – respondeu a anfitriã, ajeitando uma cama para Bianca longe daquela onde aparentemente pretendia dormir.

Bianca, agora mais assustada e com mais vontade de chorar, sentou-se sobre sua cama, enquanto Liliheid sentou na outra, ao seu lado. Inevitavelmente, Bianca chorou.

- O que foi? Prometo que te ajudo quando amanhecer.

- Eu... Tenho medo... Quando amanhecer...

- Como assim? Você estava vindo de que lugar? Estava viajando sozinha? Alguém estava com você?

- Não, não.

- Alguém lhe atacou?

- Não. Não sei como cheguei aqui.

Liliheid franziu o sobrolho, mas não perguntou mais nada.

- Descanse, por favor. Fique tranqüila. Amanhã resolvemos tudo.

Liliheid deitou. Bianca ficou um tempo sentada, olhando para todos os cantos do quarto escuro. Não podia acreditar! Estava em Pallas! Será que se dormisse novamente, acordaria outra vez na chácara? Sairia desta loucura? Seria possível? A esperança a fez deitar e a tentar apagar de sua mente todo e qualquer pensamento, mas foi muito difícil. O tempo passou se afastando até que Bianca acordou de um sono profundo. Ao abrir os olhos, a primeira coisa que fez foi chorar.

Não havia voltado para o quarto da chácara. Estava exatamente onde foi deixada na noite anterior: no quarto de Liliheid. Agora, por conta da claridade do dia, podia ver tudo: as grandes vigas de madeira, os baús, os pedaços de tecido num canto do chão, a cama onde Liliheid dormiu, sapatos num canto do quarto, tapetes, sacos de couro pregados nas paredes e outros pertences. Viu até mesmo machados, uma armadura, um escudo e uma espada longa.

Levantou da cama, deixando seu lençol para trás, e desceu a escada agarrando-se ao corrimão. Encontrou as duas janelas da casa abertas. Não possuíam vidro. Teve medo de olhar para fora, mas era preciso. Em algum momento, deveria encarar a realidade. Foi o que fez. Abriu a pesada porta da frente e quase caiu de joelhos. Estava numa espécie de vila rural. Casas iguais a de Liliheid se avizinhavam. Cada uma tinha seus cercados, suas hortas e suas plantações.

Definitivamente, não estava em Araçoiaba da Serra. Olhou para o céu azul. Depois para o horizonte e além. Aglomerações de casas e construções de pedra se apinhavam mais ao longe, como uma verdadeira província medieval. Homens barbados, vestindo túnicas e botas, e mulheres vestindo vestidos, trafegavam pela estrada. Bianca, gelada de perplexidade, voltou-se para o cercado da casa de Liliheid. Viu a horta, delimitada pelo cercado, e viu mais além. Enxergou o campo atrás da casa. Havia um bosque mais adiante. Sem dúvida fora naquele campo onde tudo começou.

Bianca desejou caminhar até lá, e até começou o trajeto, porém, a voz de Liliheid assustou-a e a fez parar. Bianca percebeu que Liliheid olhava-a de ponta a ponta. Deu-se conta de que estava vestindo seu pijama rosa. E certamente que, se fosse levar a sério tudo o que acontecia, Liliheid não estava acostumada a ver aquele tipo de vestimenta.

- De onde você veio?

- Sorocaba. Já ouviu falar?

Liliheid balançou a cabeça.

- Nunca. Não sei onde fica. Deve ser um lugar muito longe, porque não há nenhuma província com este nome nas redondezas.

- O que fica perto daqui?

- Palmeni... Tylos... Simene...

Bianca apertou as mãos contra o rosto. O nome daquelas cidades eram nomes das cidades da história de RPG de Marcelo. Todas elas. Não era possível.

- Eu... Não vou conseguir voltar. Não assim. Não há como... Como?

- Por favor... Não chore.

Liliheid tentou tranqüilizá-la, porém, Bianca já estava em completo desespero. Sua anfitriã precisou levá-la para dentro e preparar um chá para que se acalmasse. No quarto, sentou-se ao seu lado na cama.

- Você é muito estranha. Desculpe dizer isto, mas nunca vi jovem como você. Usa roupas estranhas... Tem um cheiro de rosas e... Tem os dentes brancos. Este tecido... Do que é feito?

- Não vai acreditar quando eu disser de onde eu vim. Não vai... – levou as mãos ao rosto novamente. – Ai, Deus!

- Não chore. Como posso te ajudar?

- Não pode. Tenho certeza que não pode.

Bianca secou as lágrimas, mas outras mais vieram em abundância.

- Eu nunca viajei até esta sua terra. Fui para algumas. Mas não para esta que mencionou. Todos que vivem lá se vestem assim?

- Sim.

A jovem pôs-se sentada na cama. Olhou para os olhos claros de Liliheid. Naquele momento, analisou-a como não pôde anteriormente. Parecia mesmo um rapaz. Tinha tudo para ser um rapaz. Exceto os seios que cresciam sob a túnica. Seios pequenos, mas perceptíveis em alguns momentos, quando ela se movimentava.

- Eu não tenho pra onde ir. E com certeza não conseguirei ir longe mesmo se eu quiser.

Liliheid sorriu, causando um momentâneo desequilíbrio no coração de Bianca.

- Não tem problema. Eu não me sentiria bem e minha consciência jamais permitiria que você andasse por aí sozinha. Mas não tenho muito a te oferecer. Não sei se viu, mas minha horta é pequena. Só consigo alimentar a mim e ao meu cavalo.

- Comida não é a primeira de minhas preocupações.

Liliheid levantou-se.

- Se quiser trocar de roupas, posso pedir a senhora Durdica que me venda algum vestido. Vai chamar muita atenção com essa roupa estranha e me parece que ela não te esquenta o quanto deveria. O inverno aqui é muito rigoroso. O vestido das mulheres ajuda muito em qualquer época do ano.

- Por que não usa vestido? – indagou, só depois percebendo o quanto a pergunta soou estúpida e fora de hora.

- É mais fácil montar com calças.

- Você monta bastante?

- Sou um soldado de Pallas. Uma guerreira a serviço do rei.

- Você? Uma guerreira? – indagou, surpresa.

- Faz algum tempo que não participamos de uma guerra. Por enquanto as coisas estão tranqüilas por aqui.

- Aquela armadura e espada são suas?

- São... Me custaram muito caro. Por isso, são meu bem mais precioso. Se perdê-los, não poderei mais servir. Tenho que cuidar da horta agora. Mas antes verei como posso te arranjar um vestido. Pode ficar à vontade. Mas não vá muito longe. Vai acabar se perdendo de novo.

Liliheid saiu do quarto e desceu a escada. Pela janela, Bianca pôde ver Liliheid caminhando pela estrada, ou melhor, pela rua de terra, e se perder no meio dos passantes. Bianca respirou fundo, tentando não voltar a perder a calma. Felizmente havia alguém interessado em ajudá-la. E Liliheid realmente parecia sincera em tudo o que dissera até aquele momento.

Não podia perder a calma agora. Era preciso estar firme para encarar a realidade surreal. Estava “dentro” do mundo medieval criado por seu amigo. Estava “dentro” da cidade de Pallas, uma das mais importantes da história. Era preciso sobreviver para buscar as respostas. Sobreviver. Sobreviver... De alguma forma.


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