(Não quero que ninguém se preocupe comigo. Eu tenho que ser forte por todos…)

Aquela era uma sexta-feira. Para muitos, o melhor dia da semana, mas para Kali e Rafael, em uma semana como aquela, esse era o pior dia. Na escola, Kali teria dois horários de Educação Física que, para alguém com dores em todo o corpo , não era a melhor disciplina. Ao chegar em casa, Kali teria que arrumá-la duas vezes: uma ao chegar da escola e outra quando Victor e Célia chegassem em casa. Os dois sempre saíam sexta à noite e chegavam de madrugada, bêbados, bagunçando toda a casa e obrigando Kali a limpar. Já havia acontecido de às 4 horas da manhã Kali estar lavando algum banheiro da casa ou arrumando a cozinha, mesmo com dificuldades para se manter de pé por causa do sono e do cansaço. E para piorar sua situação naquela sexta-feira toda a roupa que a senhorita Tally havia lavado tinha molhado por causa da chuva do dia anterior. Teriam que ser lavadas de novo.

Kali respirou fundo se soltando do abraço de Rafael e se levantou da cama tentando não fazer movimentos bruscos para não sentir dores no corpo.

— Vou pedir pro Sr. Luiz me liberar hoje. Vou embora com você pra te ajudar.

— Você não pode, Rafa. – Kali olhou para ele em sinal de repreensão.

— Tem muito trabalho pra você hoje. Eu não posso simplesmente te deixar vir embora e fazer tanta coisa sozinha.

— Você não pode perder um dia de trabalho por causa disso.

— Nem posso te deixar fazer tudo sozinha.

— Rafa, eu não estou sozinha. Você me ajuda indo trabalhar. Você trabalha pela nossa liberdade e um dia a menos de trabalho é um dia a menos de pagamento e um dia a mais neste sofrimento. Eu já fiz isso antes e posso fazer de novo.

— Você nunca desmaiou antes, Kali... – Rafael estava preocupado.

Kali não podia contestar esse fato, mas não queria que Rafael se preocupasse tanto com esse detalhe.

— Já passaram dois dias, Rafa. - Kali voltou a se sentar ao lado de Rafael – Eu estou com dores, mas vou ficar bem.

— Então vou pedir pra senhorita Tally vir com você como ela fez ontem.

— Não! Não podemos arriscar colocar ela nesta história. Ela já se envolveu demais e eu não quero que ela se machuque. Eu nem sei por que você contou tudo isso pra ela, sempre fui contra, você sabe. Imagina se o Victor chega em casa e ela está aqui! Não quero nem pensar no que pode acontecer. Não fala nada com ela, entendeu? Agora vamos nos arrumar que está ficando tarde.

Mais uma vez saíram de casa com tempo apenas de ir o mais rápido que podiam para a escola, não puderam parar para tomar café da manhã. Kali, pelo caminho, pensava em que desculpa daria ao professor de Educação Física para não participar da aula. Já fizera aquilo tantas vezes que o professor havia ficado mais rigoroso com ela. Ele não aceitaria qualquer desculpa.

Chegando na escola, Rafael acompanhou Kali até sua sala de aula, observando que Felipe ainda não havia chegado. Entrou na sala para deixar a mochila de Kali em sua carteira, sentindo, como sempre, o olhar de todos que ali estavam sobre ele e depois foi o mais rápido que pôde para sua sala que fica no segundo andar. Os primeiros dois horários passaram sem nada de interessante para Rafael. Seu terceiro horário era aula da senhorita Tally, mas ela estranhamente chegou atrasada. Rafael estranhou pois ela era sempre pontual. Quando ela entrou na sala, olhou para Rafael e meneou a cabeça de forma que só ele perceberia. Era um sinal de que ela queria falar com ele. Quando Rafael contou para a senhorita Tally a situação em sua casa, ela lhe disse que poderia sempre contar com ela e que quando quisesse desabafar era só chamá-la que ela o escutaria. Como Rafael não queria que mais ninguém soubesse da sua vida eles combinaram esse sinal, assim saberiam quando queriam conversar. Rafael ficou pensando o que a senhorita Tally queria lhe falar. Ele ficou preocupado, pois nas últimas semanas os assuntos dos quais falavam haviam mudado. Ele não sabia exatamente se era uma mudança boa ou ruim, só sabia que não conversavam mais só sobre o que acontecia em sua vida. Eram sempre conversas sérias, mas sobre assuntos aleatórios. Rafael se preocupou mais pelo fato de não saber ao certo o assunto da conversa do que pelo fato de ela querer falar com ele, preocupação essa que fez com que o tempo parecesse demorar a passar para Rafael.

Quando finalmente a aula acabou, Rafael esperou que todos saíssem e foi para perto da mesa de Tally.

— Algum problema, senhorita Tally? – Ele perguntou apreensivo, sem saber exatamente o porquê desse sentimento.

— Primeiro: já não disse pra me chamar de Isabella? – Rafael fez que sim e se sentou na cadeira à frente da mesa da professora – Não é exatamente um problema e vou ser breve agora, mas eu quero conversar um pouco com você mais tarde. Por agora só quero que me diga como a Kali está.

— Eu sei que ela está muito mal, mais do que das outras vezes, mas ela não me diz exatamente o que ela está sentindo. Acho que ela não quer me preocupar. Essa foi uma noite em que ela conseguiu dormir melhor, acho, mas ela chorou muito ontem. Eu me sinto impotente, porque não posso fazer nada pra ajudá-la. E ela parece não querer minha ajuda...

— Por que acha isso?

— Hoje eu disse que iria ajudar ela depois da escola, mas ela recusou.

— Ela quer te proteger. Ela não está recusando sua ajuda por não precisar e sim pra te poupar. Pra te deixar menos preocupado. Eu posso ir pra sua casa ajudá-la hoje.

— Não... quer dizer... ela recusou, também, sua ajuda. Eu falei que poderia te pedir pra ajudar ela, mas ela disse que você já se envolveu demais e que não quer que você se machuque.

— E você acha que eu estou me preocupando com isso? Eu não estou ligando pro que pode acontecer comigo até porque eu sei me proteger, okay? Agora vá encontrar sua irmã porque ela deve estar te esperando. – Isabella sorriu. – E no fim das aulas me esperem que eu vou levar vocês pra loja do senhor Luiz.

— Obrigado, senhorita Tally. – Rafael se sentiu aliviado e se levantou para ir encontrar Kali.

— É Isabela, Rafael. – Isabella o repreendeu antes que saísse.

Rafael chegou à sala de Kali, se desculpou pelo atraso e os dois foram finalmente comer algo. Enquanto lanchavam, Rafael contou para Kali a conversa que teve com Isabella.

— Ela não devia ir em casa e você não devia ter falado nada. – Kali o repreendeu.

— Eu falei porque ela perguntou e eu não pedi pra ela ir, ela que se ofereceu.

— Eu vou dizer a ela que ela não precisa ir.

Continuaram comendo em silêncio. Quando terminaram, Kali falou:

— Você disse que a senhorita Tally chegou atrasada no terceiro horário. O Felipe também chegou atrasado no terceiro horário.

— Será que aconteceu alguma coisa?

— Não sei. Mas isso me parece estranho.

— Tem razão...

— Mas nem sei porque to falando disso. Nem é da nossa conta.

Mais uma vez ficaram em silêncio. Sempre que conversavam era assim: um deles levantava um ponto, eles discutiam aquilo rapidamente e depois ficavam em silêncio. Porém, esse era o tipo de relação que funcionava para os dois. Era como se entendiam.

Kali estava deitada no colo de Rafael como sempre fazia esperando o sinal bater. De repente ela levantou a cabeça olhando preocupada para Rafael.

— O que foi? – Rafael se assustou.

— Estou com medo, Rafa. Não sei porque... Estou sentido que vai acontecer alguma coisa ruim...