A jovem viu o espelho se estilhaçar entre seus dedos, cortando-os em alguns lugares, antes que o reflexo que projetava-se ali acabasse de estender o braço para agarrá-la. Deixou que os cacos caissem entre seus joelhos, ambos apoiados no chão daquele beco escuro, enquanto tentava processar aquilo tudo. Seu salvador, também chamado de Crós Salem Shadownight, ainda mantinha a ponta do seu dedo indicador apontada para o que restara do espelho.

– Pelos Deuses! O que foi aquilo?

– Um espirito preso dentro de um espelho, ia te usar pra sair. A propósito... - Crós jogou o capuz que usava para trás com simplicidade, deixando a mostra os cabelos escuros e compridos, presos num rabo de cavalo. Os olhos amarelos, com a retina riscada, observavam sua aluna, enquanto as orelhas de gato negras mexiam levemente. - ... você acaba de ganhar mais sete anos de azar.

– Não tá fazendo muita diferença... vou começar a andar com trevos de quatro folhas, pés de coelho e fechaduras. E nem isso vai adiantar! - ela pôs-se de pé. Os cabelos eram negros, com ocasionais mechas de um azul turqueza, e estavam presos num rabo de cavalo. Ela também possuia orelinhas de gato, de cor castanha, que mexiam de maneira incomodada. Assim como a calda do mesmo tom, enfeitada com um lacinho de cor azulada e um guizo.

– A culpa é sua por ter um azar tão concetrado que se engarrafassemos, faria mais estrago que uma bomba nuclear.

– Eu não sou tão azarada assim, oras. - a garota disse num protesto, lançando os olhos esverdeados a sua volta. - Será que já foram embora?

– Mal começaram a sair. Você cometeu um erro.

– Que tipo de erro? Eu não posso mais sair nem para o Mundo Real que essas coisas me perseguem!

– Deve ser porque estamos nesse dia. - ele materializou com um simples estalar de dedos um calendário, que enfiou em frente ao nariz dela. - Sexta-feira treze. As forças sombrias estão à solta.

– Não tinha como eu saber disso... eu vim mais cedo justamente para evitar esse tipo de coisa.

Por haver uma minima diferença na passagem de tempo de Diamond e do que chamavam de Mundo Real, fazer viagens de um para o outro era complicado. As vezes era necessário que Kit saísse mais cedo que o esperado para chegar em um dia específico. Nesse caso, mesmo duvidando dos efeitos que todos alardeavam sobre a famosa sexta-feira treze de lua cheia, a jovem preferiu adiantar suas mais que merecidas férias em uma semana.

E para piorar ainda mais a situação, ela descobriu que também estava em época de carnaval.

Muito bem... meus parabéns, Kit...

Ela podia se dar ao trabalho de xingar a si mesma, mas não ia adimitir isso para Crós.

– De qualquer forma, temos que sair das ruas.

A moça concordou com a cabeça. Havia tantas pessoas na rua vestidas de maneira bizarra, com máscaras e roupas e acessórios, que era dificil separar o que era real e o que não era. Suas orelhas de gato não chamavam muita a atenção, a não ser com relação aos homens. Mas tendo um encapuzado e alto - exalando agressividade - perto dela, não era necessário se preocupar. Não muito.

– Fácil falar. - ela sentia a energia negativa pulsando em seus ouvidos, passando através de sua pele, como se fosse algo palpável. Com o canto dos olhos, podia ver as vitrines das lojas fechadas. Seu pequeno espelho não era o único com problemas. Basicamente tudo que possuía um reflexo tinha criaturas estranhas se contorcendo do outro lado. Esperando ser puxadas para fora.

– Isso aqui está cada vez pior, parece o dia das bruxas... - o mago voltou a esconder seus cabelos enquanto puxava-a pela mão, por entre a multidão que se agitava, ao som de um samba enredo de escola de samba, que ficava se repetindo infinitamente.

– Eu pessoalmente prefiro o dia das bruxas.

– É porque você é estranha... - ele parou de supetão, fazendo-a tropeçar nele, e no minuto seguinte ambos tentavam se manter equilibrados.

– O que foi dessa ve... - a garota praticamente engasgou, em meio a frase, sentindo todos os pelinhos do corpo se arrepiarem ao mesmo tempo. - Por Ajax, que raios é isso!?

Isso era a maneira educada dela chamar o troço esquisito sobre a cabeça daquele pedaço de multidão, um louva-a-deus de proporções gigantescas, de cor enegrecida e parecendo ter mais olhos do que deveria. As patas dianteiras do monstro, as quais davam o nome ao inseto correspondente, pareciam mais duas lâminas afiadas, prontas para fazê-la em pedacinhos bem pequenos.

– Hum... como eu disse, nesses dias os espiritos e monstros costumam passar para esse plano com mais facilidade, e tomar formas... bom... estranhas... nossa, de fato eu adoraria estudar uma criatura dessas e...

– Pro inferno com os estudos, Salem! Como... como que eles não veem?

– Tsc... e desde quando esse pessoal vê alguma coisa? Eles estão se divertindo demais pra reparar. Aliás, a diversão pervertida deles que cria uma boa parte desses aglomerados. - e dizendo isso ele pegou-a por baixo do braço, como se fosse uma criança, e saltou. Uma das garras do monstro passou a centímetros de onde ambos estavam, fazendo uma barraca de cerveja simplesmente desmanchar. - Acho que é uma boa hora pra começarmos a correr, não?

– E é agora que você diz? - naquela posição ela não parecia (nem sentia-se) minimamente confortável. - Temos que destruir aquela coisa... as pessoas poderiam se machucar...

– Hum... eu preciso citar que tem várias dessas coisas por aqui hoje, que somos apenas dois, e que você é um imã pra problemas tamanho de bolso?

Ela se debateu até conseguir soltar-se e impulsionou o corpo para que conseguisse saltar, chegando a um telhado. Cruzou os braços, ignorando o mestre abaixo e olhando na direção que tinham saído. Ainda podia ver a cabeça da criatura, uma massa triangular e de consistência questionável. - Salem!

– Não grite meu nome por ai como se eu fosse uma invocação maligna, pirralha!

– O que acha? Eu dou conta?

– Acho que você tem problemas de cabeça. Dos grandes. - ele olhou por cima dos ombros, observando de um ângulo diferente a mesma cena que ela. - Possivelmente.

– Não estava dizendo que eram muitos?

– E são, e é impossível dar conta de todos, mas se insiste tanto nisso, pelo menos essa área podemos limpar.

O mago viu quando ela passou os dedos da mão direita em frente ao busto, no trajeto formando uma lâmina de cor prateada, absolutamente afiada. A luz da lua cheia incidia diretamente sobre a mesma, refletindo no rosto da menina-gato, mas não havia nenhum espirito ali para atravessar.

– Acha que é muita pretensão minha?

– O que?

– Querer cortar a escuridão deste mundo.

– Não... é apenas uma esperança vã. - ele deu de ombros. - Você é apenas inocente demais para notar. - a última frase foi dita em um murmúrio, não diretamente para ela. Crós ainda lembrava-se de como conhecera aquela garota, uma mocinha insegura, que agia mais por impulso do que por outra coisa, frágil. Ela havia crescido naquele ultimo ano. Fora forçada a isso. Bom, a parte boa é que ele estivera presente naquele crescimento, podia se orgulhar de ter uma aluna exemplar, uma sobrevivente nata.

Sua única aprendiz de fato, em toda uma centenária vida.

– Eu farei o ritual de purificação. Isso deve dar conta dos mais fracos, principalmente os que estão presos em espelhos. - ele começou a se movimentar, tirando pedaços de giz do manto e agachando-se para fazer desenhos intricados no chão. Se alguém havia reparado na estranheza daquilo, não abrira boca ou estava bebâdo demais para falar. - Você... bom, faça o que sabe fazer de melhor.

Ela apenas assentiu com a cabeça, fazendo um movimento amplo com a lâmina, antes de jogar o corpo em direção ao prédio seguinte. Seu alvo parecia ser o louva-deus gigante, quando Kit começou a corrigir a própria rota, a espada rasgando o ar, enquanto aumentava a velocidade. Criaturas de porte menor iam se levantando, talvez acordadas pela pequena comoção.

Elas tinham o direito de brincar em tais dias... porque tinha alguém se intrometendo? Por que esse alguém era uma fedelha com orelhas de gato? Por que, por que, por que... as vozes sem tom definido iam se erguendo, claramente incomodadas.

Matem...

Matem a garota...

Façam-na

em

pedaços...

Kit não parecia ligar muito para aquelas vozes iradas, nem para o amontoado de bestas que se uniam a sua frente, barrando seu caminho. Um comando, e sua espada ficou mais pesada que o normal, antes que ela lançasse um golpe contra aquela muralha viva. Ela se partiu, na primeira investida, e a garota conseguiu passar direto. Balançou de maneira leve a lâmina para se livrar da substância viscosa que ficara na mesma e diminuiu um pouco a velocidade. Contornou mais uma vez, notando o vulto de Crós também transferir-se de lugar. Afinal aquele círculo deveria tomar o local inteiro se ele quisesse purificá-lo completamente. Preocupada com o parceiro, não viu uma segunda leva de seres sombrios surgir, e literalmente afundou numa massa enegrecida e putrefata.

– Blargh... que nojo...

Ela sentiu um misto de repulsa e receio, enquanto braços, garras e coisas que pareciam tentáculos envolviam-na completamente. Ergueu a espada, mas não conseguia espaço o suficiente para fazer um corte. Então ela preferiu passar para a defesa, moldando um escudo tão bruto como diamante em volta do seu corpo e expandino-o.

Os seres foram jogados para todos os lados quando o escudo explodiu, literalmente, e ela já disparava em direção ao inseto-monstro, tirando gosma negra do corpo pelo caminho.

– Me lembre de tirar férias fim do ano na próxima vez, Salem!

– Você só sabe reclamar... - ele fazia os ultimos simbolos naquele momento, ocasionalmente despedaçando as criaturas que chegavam mais perto com correntes de magia. - Já pensou em tirar férias nos pólos, lá fica vazio o ano inteiro praticamente.

– Engraçadinho.

Foi apenas um simples salto, uma pressão no lugar certo, pra ela chegar ao ponto de destino. A lâmina bateu contra os membros superiores do monstro, causando um tilintar metálico, mas parecia que não havia feito a menor diferença contra ele. Abaixo, o feiticeiro começava seu cântico, fazendo as linhas desenhadas soltarem faíscas de luz branca. Os espectros menores e mais fracos começavam a agonizar e se debater, a se dissolver. Até mesmo o inseto parecia incomodado, e lançou uma garra em direção a Crós para tentar arrebatá-lo. Kit se interpôs, porém, voltando a fazer cortes rápidos, forçando a criatura cada vez mais para trás. Os golpes iam ficando mais pesados, mostrando a clara força que ela estava usando para mantê-lo afastado.

– Fique longe dele, bicho feio!

– Olha, ele pode acabar se ofendendo!

– Tsc... - ela jogou o corpo novamente para trás, começando a escalar o monstro. A cabeça triangular com olhos demais rodava para todos os lados, as garras tentando pegá-la, sem sucesso algum. Ela escorregou um pouco, a pele daquilo era um tanto grudenta, mas não o suficiente para prendê-la. Chegando a base do pescoço, ela enfiou a lâmina prateada no local, deixando-se cair no processo, usando a arma como apoio. Isso causou um ferimento extenso, que se alongava conforme a gravidade ia insidindo diretamente sobre Kit. Chegando ao abdomen, a garota saltou para trás, tomando distância e vendo o monstro despencar. Desaparecer num amontoado de poeira negra e de cheiro acre.

Respirando com dificuldade, ela se endireitou, erguendo a cabeça... os reflexos nos vidros haviam desaparecido. Os monstros menores também... e o gigante tinha sido derrotado.

Tudo em seus devidos conformes.

– Ahn... isso deu um pouquinho de trabalho.

– Já passei por coisas piores. - se espreguiçou, como um verdadeiro gato, bocejando. Os ruídos do carnaval ainda brincavam em seus ouvidos. - Pra mim já chega.

– Hum?

– Vamos pra casa. Estou exausta.

– Mas acabamos de chegar...

– Eu não vou ficar rodando por aqui com essas coisas a solta.

Crós apenas lançou-lhe um olhar cético, antes de coçar a cabeça. - Tanto faz. Mas você vai fazer o ritual para voltarmos.

– É claro, não confio na sua noção de localização.

– Olha só quem fala...

Um se apoiou no outro, e ambos se prepararam para uma rápida viagem de volta. As férias ficariam para depois...

–o-

Eram aproximadamente sete da manhã quando os dois adentraram a Sede Black novamente. Houve um coro de “por que você está aqui de novo?”, assim como uma sucinta explicação de tudo que havia acontecido. Kit já tinha se jogado no sofá, e agora descansava a cabeça nas pernas de Ken, apreciando um afago em seus cabelos. O namorado sabia como deixá-la relaxada, mas seus nervos ainda estavam a flor da pele.

– Nunca mais... nunca mais, nunca mais mesmo eu volto pra lá numa sexta-feira treze. Eu não me lembrava de ter esses problemas antes.

– Deve ser porque antes você não estava acostumada a ver as coisas com outros olhos.

– Por mim poderia continuar assim.

– Seu azar não deixa.

– Nem em um milhão de anos.

– De qualquer forma, Kit... - cortou Salem, atirando outro calendário para a mesma. - Adivinha que dia é amanhã?

Ela agarrou o objeto no ar, abrindo-o com certo receio, e logo depois de observá-lo por algum tempo, fechou os olhos. - Me acordem daqui a duas semanas, por desencargo de consciência. - tacava o calendário de volta, procurando uma posição melhor para conseguir deitar.

Kit Black definitivamente iria ignorar aquele treze marcado com tinta vermelha, o qual viraria motivo de piada para o resto da sua vida...