Perdendo Dentes escrita por Uma Qualquer


Capítulo 1
Capítulo 1




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/593824/chapter/1

“As pessoas se sentem obrigadas a lutar por sua felicidade hoje em dia, e isso as leva a uma rotina tão desagradável, que felicidade nenhuma no mundo vai compensar no final.

Então, se você puder sentir algum prazer em existir agora, nesse momento, seja feliz hoje.”

Sábias palavras, tia.

Ivana abraçou o caderno. Sentada na cama, inclinou o corpo para o lado, na direção da cabeceira, até acabar deitada. Ficou um bom tempo ali com o caderno contra o peito, olhando para algum ponto perdido entre a escrivaninha e a janela do quarto. A noite já ia alta, e dali a pouco ela precisaria apagar as luzes e dar um jeito de dormir.

Estendeu os braços e se pôs a fitar o caderno, pensativa.

Tia Greta sempre gostou de lhe dar presentes estranhos de aniversário. Vivia viajando ao redor do mundo desde que Ivana a conhecia, e trabalhava com pesquisas históricas de diversos lugares. Em todo aniversário Ivana ganhava dela algum objeto estranho, ou pelo menos esquisito o bastante para os padrões de um presente. Ivana tinha uma pequena coleção de colheres, uma pequena coleção de selos, bolinhas de gude de pelo menos trezentos anos atrás, tigelas de porcelana para uma pequena cerimônia do chá, uma câmera fotográfica holandesa da época em que a câmera foi inventada, entre outras coisas.

Ivana não percebeu, na época em que era criança e ganhou a maioria daquelas coisas, que seus presentes deveriam ter custado uma nota à tia Greta. Hoje ela sabia, mas o fato não tinha lá muita importância. Tinha objetos cool e vintage para decorar seu pequeno dormitório. Claro, podia simplesmente penhorar aqueles artefatos históricos e fazer o que quisesse com o dinheiro, mas ser cool e vintage para ela não tinha preço.

O caderno que ganhou naquele dia não fugia à tradição. Capa de couro envelhecido, páginas amareladas, uma pequena fechadura prateada que trancava a brochura contra olhares de curiosos. Parecia ter pertencido à nobreza de algum reino que já não existia, vindo de um país que provavelmente tinha se fundido a outro. Em meio a disputas territoriais, ninguém iria ligar para um caderno de adolescente.

Pensando bem, tia Greta não havia dado um destino muito bom a ele. Ivana fazia 21 anos naquele dia, a última coisa de que precisava era um diário ou algo do tipo. Além do mais, não gostava de escrever. E quando precisava, preferia digitar (mais rápido, corretor ortográfico, entre outras vantagens). O caderno era cool e vintage com sua paisagem campestre pintada na superfície encouraçada, e com certeza daria um belo artigo de decoração. Mas só isso mesmo.

Ela tinha se dado conta, com certa resignação, que ganhar o caderno de sua tia foi a única coisa boa a lhe acontecer naquele aniversário. Sentiu-se melhor ao ler as palavras da tia, escritas na primeira página como uma dedicatória. Foi a melhor coisa que poderia ter lido, num dia tão absurdamente ruim como aquele. E que, por coincidência, tinha sido o seu aniversário.

Ivana deu um suspiro profundo. Pôs o diário em cima da escrivaninha e levantou-se para apagar as luzes. Aproveitou para buscar um analgésico. Na mesma hora em que levantou, o quarto deu uma volta nada agradável, e a cabeça latejou. Ter esvaziado o litro de vodca da geladeira não foi uma de suas melhores ideias. Ao voltar para a cama, o quarto se moveu ao seu redor com se ela estivesse num balanço de parquinho, se balançando bem alto. Ivana se jogou nas almofadas e deixou a tonteira e o sono arrastarem sua consciência para bem longe.


“When the moon is in the Seventh House
And Jupiter aligns with Mars”

Mas… Hein?

“Then peace will guide the planets
And love will steer the stars”

Eu mereço.

Não que Ivana tivesse algo contra acordar ao som de Aquarius. Era um ótimo jeito de começar o dia, era retrô, era cool e vintage. Mas Ivana estava de porre e só queria que a galáxia explodisse.

Levantou zonza com o som ribombando nas paredes, como se o som fosse dentro de casa ou o seu vizinho fosse surdo. Que dia péssimo para ter ouvidos funcionando. Que dia péssimo para ter um vizinho surdo. Na manhã passada ele tinha colocado James Brown realmente alto, e Ivana não acordou ‘so good’ como a música gostaria que ela se sentisse.

Que dia péssimo.

Apoiou a mão no quadro que exibia a coleção de colherinhas, derrubando algumas no chão. Não se deu ao trabalho de recolhê-las. Foi cambaleando até o banheiro e aliviou o estômago de todas as coisas que não queriam passar por ele. Sentindo-se mais leve, mergulhou no chuveiro gelado. Alguns minutos depois, sentiu algo estranho no corpo e percebeu que ainda estava com a roupa do dia anterior.

Limpa e razoavelmente refeita do porre, olhou-se no espelho do guarda-roupa. Aquele cabelo, pensou amargurada. Ainda não acreditava que os bares e restaurantes não contratavam garçonetes de cabelo colorido. Isso explicava o porquê de ela só ver garçonetes louras ou morenas, ou com um ruivo bem discreto nos cabelos. Mas não era como se ela tivesse aplicado um arco-íris nos fios. A cor era vermelho cereja, uma espécie de ruivo mais ‘aceso’. Se fosse na época em que ela não conseguia cobrir a tinta rosa do cabelo, até que entenderia, mas aquilo já era ignorância.

A única coisa vintage que ela dispensava na vida era a mentalidade das pessoas. Mas quando elas estavam prestes a ser seus futuros patrões, não havia muito a ser feito.

Ia na farmácia comprar a tintura mais preta que encontrasse. Depois, só por precaução, ia aposentar o piercing da sobrancelha e o alargador. Era isso ou passar fome o resto do ano.

Seus pais lhe deram um belo presente de aniversário. Um chega pra lá disfarçado de lição de moral. A faculdade continuava sendo custeada pela bolsa, e eles continuavam a pagar a estadia dela no alojamento do campus. Mas se quisesse um dinheiro a mais para trivialidades como, sei lá, comer, beber ou se vestir, ia ter que se virar. Em resumo, o aniversário de 21 anos marcou a morte de sua mesada. E que morte horrível. Ivana tinha planos para a droga do dinheiro. Seus pais podiam pelo menos ter avisado antes, não? Agora ela estava feito louca, tentando parecer uma daquelas pessoas normais e caretas que fazem tudo por um emprego, inclusive gastar suas últimas economias para pintar o cabelo com a cor mais convencional do mundo.

Mas ei, sem dramas, certo? Ela tinha 21 anos. Não era mais uma criança. Uma nova era de paz surgia para ela, sem brigas e rebeldia, com a consciência plena de que devia ser uma pessoa madura e responsável dali por diante. Nem que isso lhe matasse de tédio.

Enquanto procurava um jeans e uma camiseta, encontrou as roupas esportivas que usava no grupo de dança. É, aquilo era um adeus para elas também. Não custava lembrar, ela sorriu desanimada.

Pegou o celular, já eram oito da manhã. Do dia errado. Ela sacudiu o aparelho, verificou as configurações. Nada de errado. Só que a data era a mesma do dia anterior.

Ahhh... Filho da...

Ela respirou bem fundo. Largou o celular na cama e trancou a porta ao sair.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Perdendo Dentes" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.