Memórias póstumas de um anão escrita por Riniyaresu Kaio


Capítulo 1
Sapatos italianos




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Estávamos todos ao redor do caixão. Convenhamos que aquilo nem merecia o nome. Portador de um grande coração, evidenciado pelos seus projetos sociais, e de um grande pênis, vangloriado nas bebedeiras com os amigos, o defunto caberia, sem muito esforço, numa mala média de viagem. Sendo assim, estávamos todos ao redor da caixa. Do alto de seus vinte e nove anos, Roberto Siqueira tinha pouco mais de um e quarenta. Altura completada, na minha opinião, com uso de pequenos saltos no par de sapatos italianos, suposição refutada até a morte pelo pequeno homem que sempre esmurrava as partes baixas de quem a levantasse.

O enterro foi bem simples. Nunca gostou de agitações, por isso sentia-se maravilhoso sentando atrás de uma mesa fazendo contabilidade de pequenas empresas. Sem referencias ao defunto. Com a ajuda de uma cadeira mais alta ficava no mesmo nível de qualquer um.

Nos fins de semana sempre íamos beber em algum bar da Alta Augusta. Quando a noite já corria longe e várias garrafas jaziam sobre a mesa, ele sempre pedia uma dessas cadeiras altas para crianças. Sentado em seu trono solene ele começava a espernear e se balançar numa dança frenética até cair no chão. Isso pode parecer meio bizarro e até mesmo ofensivo, mas as risadas mais estridentes vinham justamente do bebê barbado esparramado no chão. Não havia como não rir daquilo.

É o tipo de coisa que não se pergunta a razão, simplesmente se aceita que aconteça assim. Mesmo assim ele me confidenciou as razões por trás do que eu achava ser apenas uma estripulia causada pela bebida. Seu pai, com mais de um e noventa, parecia incapaz de entender o que o nanismo do filho significava e o tratava como um infermo. Seu zelo extrapolava qualquer medida do necessário. Me disse, entre um gole e outro, que seu pai chegou ao cúmulo de obriga-lo a usar um cadeirão até os treze anos. Sim, isso mesmo. Um cadeirão, com barras laterais e mesinha de apoio. Com pesar na voz, afirmou que a sensação de seus pés balançando soltos no ar e o olhar de piedade de seu pai o enojavam.

Seguiu-se um daqueles momentos constrangedores, onde eu não ousava largar o copo para falar coisa alguma. Seu rosto impassível não me permitia saber se estava falando sério ou se era só mais uma lorota provocada pela bebida. Agora é engraçado pensar que essa declaração ocorreu a menos de um mês. Quase como se ele estivesse eliminando todas as pontas soltas antes de partir, elucidando todas nossas dúvidas a seu respeito.

Seu pai ao lado do caixão (ou caixa, como queira) com seus mais de um e noventa transformava a cerimônia num enterro em miniatura. A genética é mesmo um jogo de roleta dos mais infelizes. Tantas coisas que seus pais poderiam ter transmitido ao futuro filho no ato de concepção, ou no velho in-out in-out como diria nosso velho amigo Alex DeLarge, e você acabou recebendo o namismo por parte de mãe e a predisposição a enfartos por parte de pai. Uma bela herança, sem sombra de dúvida.

A procissão para levar a caixa foi diferente dessas que vemos nas produções de Hollywood. Você nunca gostou de clichés, então ficaria satisfeito com o ato final. Logicamente não foram necessários seis pessoas para carrega-lo em seu último passeio. Seu pai ia a frente acompanhado de seu tio, o caixão entre eles na altura dos ombros. Seu pai, sendo ao menos uns vinte centímetros maior que seu tio, acabava deixando o caixão meio pendente para trás. Alguns até poderiam considerar isso um insulto e desrespeito ao morto, mas as lágrimas escorrendo pela face e barba do seu pai mostravam que ele estava fazendo seu melhor.

Todos começam a se afastar. Nunca sete palmos pareceram tão grandes. Nunca um caixão pareceu tão vulnerável. Ficar vendo essa cena por mais tempo é um ato de auto flagelação que poucos se dispõem a cometer. Eu estou disposto. Quando lhe disse que deixaria de lecionar para me tornar escritor em tempo integral você disse, entre um copo e outro, que queria que eu escrevesse sua lápide. E pagou meus honorários com mais uma rodada de cerveja esquecida sobre a mesa de de um bar qualquer da Augusta. Bebi pensando que não queria aceitar tal serviço, muito menos executa-lo. Mas cá estou.

Essas palavras nunca poderiam ser esculpidas no granito que o prende em seu cárcere eterno. Prova de que um dia um anão em sapatos italianos pisou sobre a terra. Tomo cuidado para que minhas lágrimas não borrem as letras cursivas, que você sempre atribuiu a minha longínqua descendência francesa. Essas simples páginas são tudo que posso dispor. Não pude pensar em nada apropriado para escrever, talvez nunca possa. Você não nos deu tempo para pensar ou mesmo para entender.

Você desceu do cadeirão cedo demais, seu grandessíssimo filho da puta.


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