Uma Bruxa na Cidade. escrita por Caroline


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo




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A primeira coisa que me atingiu foi o cheiro – úmido e pungente. Era o cheiro de um lugar há muito fechado, de ratos, dejetos de pássaros e podridão. – Bem-vinda à Casa Wicker – meu pai disse, e apertou o interruptor da luz. Nada aconteceu, e ele gemeu. – Provavelmente está desconectado. Vou investigar. Aqui, fique com isso – empurrou uma lamparina na minha mão. – Vou pegar outra no carro. Enrolei os braços ao redor do corpo, tremendo enquanto balançava o feixe de luz fino da lamparina na direção das vigas sombrias e cobertas de teias de aranha. O ar na casa era ainda mais frio do que o da noite lá fora. – Vá – meu pai falou do carro. – Não espere por mim; vá e explore. Por que não dá uma olhada no seu quarto? Achei que gostaria do que está no alto da escada. Tem uma vista maravilhosa. Eu não queria explorar. Queria ir para casa – só que onde era minha casa? Não em Londres. Não mais. Partículas de poeira rodopiavam, prateadas sob a luz da lamparina, enquanto eu abria a porta à minha direita e espreitava a escuridão do outro lado. O estreito círculo do feixe de luz da lamparina brilhou de volta para mim, vindo de uma janela quebrada, e então seguiu lentamente o gesso manchado pela umidade. Imaginei que isso tivesse sido uma sala de convivência um dia, embora parecesse estranho usar a palavra “convivência” para um lugar tão morto e pouco acolhedor. Algo se moveu no espaço escuro da lareira. Imagens de camundongos, ratos e aranhas imensas atravessaram minha mente – mas quando reuni coragem para iluminar com a lamparina, vi apenas o farfalhar das cinzas, como se, o que quer que fosse aquilo, tivesse fugido por entre as sombras. Eu me lembrei da minha melhor amiga, Lauren, que ficava pálida só de pensar em um rato. Ela estaria sobre uma cadeira agora, provavelmente gritando. A ideia da reação de Lauren àquele lugar me fez sentir melhor, e peguei o celular no bolso e comecei a digitar uma mensagem. Oi, Lauren. Chegamos a Winter. A festa de boas-vindas consiste em meia dúzia de ratos e... Parei. Não havia sinal. Bem, eu sabia que aquele lugar seria isolado; meu pai chamava isso de “uma parte do charme”. Mesmo assim... Talvez eu conseguisse sinal no andar de cima. As escadas rangeram e protestaram a cada passo, até que cheguei a um patamar com um corredor que avançava pela escuridão, no qual havia portas dos dois lados. A porta mais próxima estava entreaberta – e coloquei a mão nela e a empurrei. Por um instante, fiquei deslumbrada com o luar que se derramava para dentro do aposento. Então, conforme meus olhos se ajustaram, vi o alto teto abobadado, o assento junto à janela de pedra, e senti o leve cheiro do mar entrando pela janela aberta. Pela janela, eu podia ver a floresta que se estendia lá fora, quilômetro após quilômetro, e, além dela, uma lua em miniatura lançando um caminho oscilante de prata pelo mar negro como a noite. Era uma paisagem de tirar o fôlego, e, naquele instante, tive um vislumbre do que levara meu pai até aquele lugar. Fiquei parada, completamente imóvel, ouvindo o som distante das ondas. Então, um grito
áspero, não humano, atravessou o quarto, e uma forma escura se destacou das sombras. Eu me inclinei, uma fúria de asas negras agitando o ar sobre minha cabeça, e vi de relance um bico de obsidiana e olhos frios e negros, enquanto a criatura se debruçava por um segundo no peitoril. Então abriu as asas e se foi noite afora. Meu coração batia absurdamente e, de repente, eu não queria mais explorar a casa sozinha, na escuridão. Queria meu pai, calor e luz. Quase como se fosse um sinal, houve um estalo, um clarão ofuscante, e a lâmpada no corredor se acendeu. Esfreguei os olhos, ofuscados pelo brilho áspero depois do esforço na escuridão. – Ei, ei! – o grito do meu pai ecoou pela escada. – A eletricidade não estava desligada... era só um fusível. Desça até aqui e vou fazer um grande tour com você. Ele estava esperando na sala, o rosto brilhando de animação. Tentei reorganizar minha expressão em algo que se aproximasse da dele, mas claramente não funcionou, porque ele colocou um braço em volta de mim. – Desculpe se isso é meio um pesadelo, querida. O lugar não era ocupado há anos, e eu devia ter percebido que tinham desligado tudo. Não é a melhor chegada ao lar, devo admitir. Chegada ao lar. A expressão era horrivelmente vazia. Sim, esse lugar era o lar agora. Era melhor eu me acostumar. – Vamos – meu pai me deu um apertão. – Me deixe mostrar o lugar. Enquanto meu pai me mostrava a casa, eu tentava encontrar coisas positivas para dizer. Era bem difícil. Tudo estava caindo aos pedaços – até os soquetes e os interruptores eram de baquelite antiga, e parecia que iam explodir se tocasse neles. – Olhe para essas vigas – ele exclamou, na sala de estar. – Deixam nossa antiga casa em estilo georgiano no chinelo, não é? Vê essas marcas? – Apontou sobre nossas cabeças para arranhões fundos na madeira escura nodosa. Pareciam talhos: cortes profundos, quase selvagens, que formavam uma série de Vs e Ws. – Marcas de bruxas, segundo o meu livro. Feitos para proteger a casa dos espíritos malignos e coisas do gênero. – Mas não tive tempo de olhar adequadamente para a madeira arranhada, porque meu pai já estava me arrastando para a próxima atração. – E essa lareira? Dá para assar um boi aqui! É um antigo forno de pão, acho – deu um tapinha na pequena porta de madeira na lateral da peça, enegrecida e deformada pelo calor. – Tenho que tentar abrir isso um dia desses. Mas, de qualquer modo, chega de me exibir. O que acha? Não é o máximo? Quando não respondi, ele colocou a mão em meu ombro e me virou para olhá-lo de frente, implorando-me com os olhos para que eu gostasse, ficasse feliz, compartilhasse de seu entusiasmo. – Gosto de todas as lareiras – eu disse, evasiva. – Bem, vai gostar ainda mais quando o inverno chegar, a menos que eu consiga arrumar o aquecimento central em bem pouco tempo. Mas é tudo o que tem a dizer? – É muito trabalho, pai. Como vamos pagar isso? Mesmo enquanto falava, repentinamente percebi que jamais dissera aquelas palavras antes. Nunca tivera de fazer isso. Não éramos ricos, mas meu pai sempre ganhara o bastante para nossas necessidades. Meu pai deu de ombros. – Conseguimos um lugar bem barato, considerando tudo. E eu mesmo farei a maior parte do trabalho, o que vai reduzir os custos. – Ah, Deus! – eu disse, involuntariamente, com uma voz horrorizada. Então vi o olhar de meu pai e comecei a rir. Meu pai mal conseguia trocar uma lâmpada, muito menos fazer
grandes reformas na casa. Ele pareceu ofendido por um instante, mas então começou a rir também. – Vou conseguir alguém para consertar, pelo menos, o sistema de gás e a eletricidade, prometo – colocou o braço ao redor dos meus ombros. – Tenho um bom pressentimento a respeito deste lugar, Anna. Sei que tem sido um choque para você, realmente sei, mas sinceramente acho que podemos dar um jeito nas nossas vidas aqui. Posso escrever um pouco, plantar alguns vegetais... talvez até pudesse montar uma pequena pousada se o dinheiro ficar apertado. Este lugar só precisa de um pouco de cuidado para ficar fantástico. Um pouco de cuidado? Pensei na imundície e nos ratos, e em todo o trabalho que teríamos para tornar o lugar habitável, sem contar agradável. Então olhei para meu pai, e lembrei dele em Londres, sentado noite após noite, o rosto sombrio de preocupação enquanto fazia contas, tentando encontrar uma solução para nós dois. – Acho... – comecei a falar e parei. – Sim? – Acho... que se alguém pode fazer isso, é você, pai – coloquei a lamparina na cornija da lareira e o abracei com força. Então percebi algo. – Ei – tossi para limpar a garganta. – Olhe. Passei a mão para limpar a poeira que cobria a lareira e aproximei a lamparina. Sob a sujeira, havia cipós e folhas entrelaçados, mas não era isso o que me chamara a atenção. No meio, havia um escudo de pedra entalhado, com um W ornamentado. – W, de Winterson. – Olhe só! – meu pai disse, deliciado. – Embora deva ser W de Winter, ou o mais provável é que seja pela Casa Wicker. Mas é um bom presságio. Agora, venha – deu um beijo no alto da minha cabeça. – Vamos ver se damos um jeito naquele gás encanado e conseguimos preparar um chá.
Segunda-feira era o primeiro dia do verão, mas ninguém diria isso ao olhar o céu cinzento que aparecia sob as cortinas. Eu estava deitada na cama, com as cobertas até o queixo, ouvindo o vento entre as árvores. Meu corpo estava estranho; cada músculo parecia tenso de nervoso e minhas veias pareciam cheias de algum estranho líquido formigante, como se meu sangue tivesse sido drenado e substituído por água com gás. Era aterrorizante começar em uma nova escola, depois de dez anos no mesmo ambiente reconfortante. Havia apenas quarenta garotas no ensino médio da minha antiga escola – em comparação, o Colégio Winter era imenso. E assustador. E misto. Só para aumentar o estresse, não havia uniforme no ensino médio. O que significava que, pela primeira vez na vida, eu tinha de pensar no que vestir para ir à escola. Arrastando-me para fora da cama, abri a porta do guarda-roupa, que parecia estranho e fora de lugar naquele quarto imenso com teto abobadado. Ao me ver no espelho, gemi. Nunca perdoei meu pai por me deixar este cabelo como legado: selvagem, escuro e indisciplinado, pronto para se rebelar na primeira oportunidade. Imagino que o resto, a pele clara e os olhos azul-esverdeados, deve ter vindo da minha mãe. Não sei, mas certamente não era o DNA de meu pai que me olhava do espelho. Peguei um pente e comecei a tentar domar os cachos de modo a deixá-los de algum jeito
que não fizesse as pessoas apontarem para mim e gargalharem no primeiro dia. Minha melhor esperança para o Colégio Winter era não ser notada. Não estava planejando fazer amigos para a vida; só queria passar pelos próximos dois anos, conseguir minhas notas máximas e ir embora, e isso seria o bastante. Mas me ambientar seria bom, e o cabelo de doida não ia ajudar nisso. Eu estava apenas na metade da operação quando meu pai gritou na escada: – Café da manhã! – Estou indo! – gritei de volta. Um nó se formou em meu estômago.
Eram pouco mais do que três quilômetros até a cidade, e meu pai insistiu em me levar. O carro estava estacionado no meio de uma clareira na frente da casa, embaixo de uma grande e ampla faia, e fizemos nosso caminho pela grama alta, o orvalho molhando a barra dos meus jeans. Muito além da floresta, era possível ver a silhueta de alguma ruína caindo aos pedaços, no alto das falésias sobre o mar. – Aquele é o Castelo de Winter – meu pai disse, seguindo meu olhar. – Está em ruínas agora, é claro, mas ainda dá para ver as torres – eram austeras e negras contra o azul do mar. – E aquela estrada vai ser o seu caminho para a escola – apontou para uma fenda na floresta densa e para uma estrada de asfalto negro que serpenteava ao longe sobre as falésias. – Ainda não acredito que podemos ver o mar – eu disse. – Em linha reta, não estamos longe – meu pai comentou. – Só parece mais distante seguindo através da mata. De qualquer modo, é melhor irmos. Não quero que se atrase no primeiro dia. Se tivermos tempo, eu a levarei além do porto de pesca... você vai gostar da aldeia de Winter. Sempre achei um lugarzinho lindo. Ele virou a chave na ignição, e um bando de gralhas saiu da faia, assustado com o barulho. As aves voaram em círculos, alarmadas, enquanto meu pai manobrava até a estrada, e então nos seguiram pelas sombras verdes da floresta, acompanhando-nos ao longo do sinuoso túnel de folhas, até que saímos sob o sol forte da estrada das falésias. Meu pai dirigiu de forma constante, passando pelo castelo e pelos arredores de Winter, e seguimos o fluxo de garotos que se estendia pela rua estreita, até que chegamos a um vasto edifício que parecia mais uma prisão vitoriana que uma escola. Colégio Winter. Era imenso. Winter era uma cidade pequena, mas a escola recebia todos os garotos dos vilarejos dos arredores; havia cinco grupos de tutoria apenas no ensino médio. Engoli em seco – e então percebi que meu pai estava esperando a resposta de algum comentário que tinha feito. – Desculpe, pai, o que disse? – Perguntei se há algo especial que gostaria para o jantar, para celebrar nossa sobrevivência. Neguei com a cabeça. Comida era a última coisa que eu tinha em mente. – Qualquer coisa está bom. Bem, Ok. É melhor... Ele assentiu e me deu um beijo no rosto, e eu saí do carro com o coração na garganta. Quando parei, passando os dedos pela alça da mochila, meu celular tocou. Era uma mensagem da Lauren. Oi, querida. não se preocupe, vão te amar. se não, diga que há uma turma de colegas de escola de Notting Hill que vai tornar a vida deles um inferno. Boa sorte, sinto sua falta. L. xxx
A lembrança de casa e de todos os meus amigos trouxe uma pontada súbita no fundo dos meus olhos, mas pestanejei furiosamente. Começar na nova escola com lágrimas nos olhos não era um bom jeito de ir em frente. Esfreguei as bochechas, endireitei as costas e caminhei pela porta entalhada da frente.


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Notas finais do capítulo

E ai? Comentários? Devo continuar?



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