Spectrum - Vol.1 Sereena escrita por Kathleen Hoff


Capítulo 11
Fear


Notas iniciais do capítulo

Depois de batalhas contra Cronos (tempo) consegui escrever um cap decente.
Espero que gostem ♥



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Tudo está errado, mas somos preguiçosos, medrosos ou ocupados demais para mudar...

—&-

O cheiro da chuva na grama, Alexander agitando minhas mãos contra a chuva, Sereena sem expressão a metros do chão... Nem Alexandre nem eu atacamos Sereena, sabíamos que seria inútil. Naquela noite, toda nossa atenção foi focada em eu sair vivo daquilo. Mas olhando-a explodir eu consegui acreditar no seu poder... Consegui sentir medo da reencarnação.

Afasto os pensamentos e os olhos do pulso e volto a olhar para a sede do clã. Hoje, completa-se o quarto dia após a luta contra a reencarnação. Eu conheço quais eram as intenções de Rikromm, mas certamente esse não é o resultado que ele esperava. A casa principal da sede estava cada dia mais silenciosa, famílias perderam membros, alguns feiticeiros estão se afastando do clã e Rikromm trancou-se no seu escritório. Até Geórgia não possui o tom de deboche, nem satiriza mais a reencarnação. O nome de Sereena é intocável, aquele que fala algo sobre a reencarnação é encarado com olhares reprovadores, ninguém quer lembrar sobre as mortes, incluindo a da garotinha. Pela primeira vez, os anluxes têm regras e medo...

Ninguém sabia que matariam alguém, aquela noite era para amedrontar a reencarnação... Para ela não seguir os luminos, pelo menos era o que Rikromm havia nos contado minutos antes. Ninguém morreria... Geórgia negava-se a falar comigo, sei que ela não queria matar a garotinha, mas se ela não tivesse feito isso... Talvez o clã não tivesse sido reduzido.

“Thomas, já decidiu o que fará?” Alexander pergunta, e eu não possuo resposta. Eu tinha o esgotado durante a batalha, não o conjurei desde então. Mas não era preciso, não há nada que eu possa fazer pelo clã ou por mim. Sento-me a mesa com vários símbolos; a casa, a nossa direita, possui apenas uma janela aberta. Consigo ver Geórgia próxima à porta de entrada, as mãos enterradas no rosto, os cabelos cacheados possuíam o dobro do volume pelo descuido, mas eu não posso sentir pena dela. Não agora... Não depois do que ela fez, não com toda a indecisão na minha cabeça.

Olho para o céu a cima de nós, ele ainda possui um tom carregado, cinzento. Está assim desde aquela noite, talvez Sereena esteja relacionada com isso... Ou pode ser um dos meus devaneios, já que minha alma está tão amedrontada, considero que tudo está relacionado com Sereena, até a brisa mais leve faz com que fique alerta. Tudo está tão silencioso que posso ouvir o vento nas árvores ou a água no riacho.

Aumento o volume do MP3, Sleeping At Last soa ainda mais forte em meus ouvidos. Uma pequena formiga carrega uma folha muito maior que ela pela mesa, desviando dos símbolos, procurando uma saída daquele labirinto... Todos os anluxes estão como aquela formiga, mas minha folha é maior...

Volto a fitar meu pulso com preocupação. “Thomas, isso nunca tinha acontecido com nenhum feiticeiro que amparei... Não sei como lhe ajudar.” Alexander parece preocupado, estamos cada vez mais ligados.  Entendo a preocupação dele, posso sentí-la... Mas eu também não sei o que fazer sobre aquilo...  Fecho o bracelete de couro sobre a cicatriz e caminho em direção à Geórgia.

O caminho entre nós parece gigante, como se um esforço enorme precisasse ser feito para conseguir alcança-la. A grama molhada faz vários barulhos sendo esmagadas pelos meus tênis. Geórgia estava vestida de preto, como se estivesse de luto. Ela deveria mesmo... De algum jeito a morte de Clara mudou todo o clã, Geórgia parecia cada vez mais murcha e arrependida e o meu orgulho cada vez se esvai mais e mais. Eu sei que a única que poderia me ajudar agora é Sereena, mas seria impossível manter uma conversa com ela... Não com o medo e receio que meu estomago carrega.

— Como você está? – Pergunto, aquela era uma pergunta retrograda, eu não me importo e não é como se ela respondesse as outras tantas vezes que fiz a mesma pergunta.

— Como parece que me sinto? – Ela responde com outra pergunta retrograda, eu não sei como responder e nem ela sabe a resposta. Geórgia levanta o rosto, tudo parece normal... A não ser pelos olhos que estão mais escuros que o normal, mais fundos. Como se a escuridão estivesse presa ali. Engulo em seco, e coloco as mãos no bolso do casaco.

— Onde está Rikromm? – Minha voz parece quebradiça, pigarreio e afundo mais os ombros.

— Escritório... Não o vejo desde ontem.  Por quê?

— Não sei o que faremos agora, e ele como líder deveria saber... Alguns membros estão comentando sobre a fraqueza dele. – Digo, encostando-me à parede da casa.

— Pareço alguém fraco? – A voz forte de Rikomm soa. Minhas mãos suam, olho-o. Ele não parecia fraco e nem ele próprio, sua barba parecia sujar seu rosto, como se ele estivesse numa caverna pelos últimos dias. – Acredito que não posso fazer nada contra a reencarnação agora.

— E quanto ao clã? E as pessoas que morreram? – Pergunto, consumindo o restinho de coragem. Ninguém foi enterrado, ou seus corpos foram pulverizados, queimados ou engolidos pela terra, mas talvez algo pudesse ser feito por eles.

— Quem é você para cobrar algo de mim? Ponha-se no seu lugar! – Ele grita contra o meu rosto, consigo sentir o cheiro forte do seu hálito contra meu rosto, Geórgia não mexe um musculo. “Acho que ela já teve essa conversa com ele...” Alexander diz “Não há nada para falar com alguém que não suporta opiniões alheias, a não ser que ele peça”. Alexander tem razão, viro de costas para Rikromm.  – Onde está indo?

— Como todos desse clã, eu não suporto mais ficar nesse lugar! – Digo, sem virar-me. O barulho da grama quebra a sinfonia que o vento faz nas árvores.  

Caminho floresta adentro, sei exatamente onde vou. O riacho está mais largo, o barulho da água é relaxante e amedrontador ao mesmo tempo. Aquele mesmo terreno de sempre, o lugar onde passei a escolher como refúgio. As árvores dobram-se na minha direção, parecendo quererem um abraço.

— O filho pródigo, a casa, retorna... – Digo e uma risada seca sai do meu peito. Caminho para o interior do terreno. O sentimento de paz enche meus pulmões, a terra ainda está molhada. Até a música em meu mp3 parece querer se encaixar com o lugar. Vejo a mesma pedra em que sentei com Sereena, ao que parece, séculos atrás... O musgo a cobre, tornando-a verde. “Você realmente gosta desse lugar...” Alexander diz. Sim, eu realmente gosto daqui. Voltar a sentir esse lugar faz minhas costas formigarem, meus joelhos tremerem e minhas mãos buscarem pelo tato. Sento-me perto da pedra cheia de musgo, encostado numa das inúmeras árvores... Não, eu não sou digno de pensar ou sentir falta de Sereena, não sou digno de me lamentar por ter entrado nos anluxes. Para mim, meu clã foi a minha única salvação por muito tempo. Eu quero ser mais do que meu corpo me limita! Sempre quis, e vi nos aluxes essa oportunidade. “Thomas, fazer monólogos melancólicos mentalmente não lhe auxiliará em nada nesse momento... Ainda nem sabemos o que aconteceu com você, o que faremos... E sinto que você está fugindo desse assunto” Alexander tem o tom rigoroso, mas sei que ele sente pena de mim, não tanto quando eu sinto... Encosto a cabeça na árvore e fito suas folhas.

— Komorebi... – Digo sorrindo, e Alexander resmunga mais uma vez em minha mente. – É a luz do sol filtrada pelas folhas... – Só que hoje mal há sol, mal há folhas, mal há o que balançar... Como Sereena disse uma vez.

“Você ouviu isso?” Alexander não responde aos meus pensamentos “Alguém está vindo...”. Tento prestar atenção, mas não ouço nada. Só espero que não seja Geórgia ou alguém do clã... “Como não está escutando? O barulho está cada vez mais perto!” Alexander parece desesperado, como se quisesse correr dali, mas meu corpo não se move. Não sinto perigo, na verdade, a paz do lugar parece encher cada vez mais meu peito, aquecendo-o.

— Ele ainda não me sente completamente... – Uma voz rouca soa pelo lugar, estranha, como um trovão. Mas ainda não sinto medo, não quero me afastar da voz, não quero correr. Alexander parece estar enlouquecendo, talvez a agitação dele fizesse sentido já que a voz o respondeu e só eu posso ouvi-lo normalmente.  Minha mente silencia, Alexander parecia paralisado.  – Boa tarde, Thomas. – A voz sabe meu nome, e ele não parece meu ao mesmo tempo. Tento fechar os olhos, mas minha atenção é atraída para a pedra ao meu lado.

Um grande lobo posiciona suas grandes patas sobre o musgo, seu corpo é coberto por vários ramos de árvores no lugar de pelos. O rosto é branco e dele partem os pequenos galhos. Sua beleza é enorme; com vários tons de verde, era como se seu corpo fosse uma pequena floresta, viva e respirando. Mesmo com a profunda vontade de admirar cada folha, algo parece crescer em minha garganta, medo talvez.

— Que... O que você é? – Gaguejo, e chuto a terra próxima a meus pés, fincando assustado pela primeira vez nesse dia.

— Eu? – Ele ri, meus olhos parecem querer saltar do rosto. Procuro sinal de Alexander, mas minha mente não o acha. Meu corpo começa a tremer com a adrenalina, mas nada se move. Meus olhos ainda tentam focar a beleza do lobo e procurar algum tipo de fuga.  – Pobre garoto, os anluxes não lhe ensinaram nada mesmo. – O lobo salta da pedra, parando a poucos centímetros das minhas pernas. Não me movo. O lobo sabe sobre meu nome e clã, mas ninguém havia me ensinado sobre tal criatura. – Teria sido melhor se tivesse ficado ao lado da garota. – Como ele sabe disso? Como sabe de Sereena? As perguntas parecem sufocar-me – Mas respondendo a sua primeira pergunta, eu sou o espirito dessa floresta...

— Como... Como um lobo está falando comigo? – Devaneio, essa é a única pergunta que meus lábios conseguem formar, como se todas as perguntas que sobram em minha mente estão trancadas pelo medo ou confusão.

— Minha voz está apenas na sua cabeça, não é como se esse corpo esteja projetando a voz.- O lobo gira em torno de si, e os pequenos galhos movem-se. – Não sou isso, não pense em mim como lobo, mas como a floresta toda. Posso ser a árvore que está atrás de você ou o ar que está respirando. – Ele parece orgulhoso de seu corpo, dando mais um giro, o cheiro de terra molhada toma o ar cada vez que ele se move. Desencosto um pouco da árvore e minha respiração tranca, consigo sentir meu queixo trabalho, as mãos enterradas na terra. – Você é patético, Thomas.

— Como assim? Eu já estive aqui milhares de vezes antes, por que nunca tinha o visto antes? – Pergunto, minha mente está bagunçada, como se o lobo estivesse vasculhando-a, as pergunta se amontoando.

— Por favor, chame-me de Orion. Você nunca tinha me visto por causa disso... – Orion coloca a pata sobre meu bracelete. Pigarreio, ninguém sabia daquilo. A aproximação rápida do lobo, tira-me o folego mais uma vez.  

— O que é exatamente isso? – Desabotoo o bracelete, mostrando o pulso liso, sem marca alguma. Minha pergunta parece desesperada e ecoa pela floresta.

— Parece que alguém se libertou do clã... – Orion parece se divertir, ele se afasta, aumentando o cheiro de terra a minha volta. – Acalme-se, não há nada de errado com você... Errado é continuar vivendo como está, sendo como é agora.

— Que? O que aconteceu? Como? – Gaguejo. Nada disso faz sentido, desde a marca até o lobo a minha frente.

— Tudo bem, explicarei. – Ele parece impaciente, como se eu fosse uma criança. - Primeiro, sou o espirito que rege essa floresta, ou o que sobrou dela... Eu sempre atraí você para cá, e dei calma em troca de todo o drama que você emana. – Ele ri. Recebo a informação como uma criança descobrindo que fadas não existem, toda a calma que esse lugar emana para mim vinha de Orion, o lobo que está me assustando. Destravo o queixo e tento relaxar os músculos.  – Eu lia sua mente, com seus problemas mundanos, para acabar com o tédio. Entenda, ninguém vem aqui e não possuo muito trabalho nesse pequeno espaço! – Ele fala como se fosse lógico.

— Creio que como deveria administrar melhor seu tempo... Qualquer coisa é melhor que assistir como sou patético. – Digo, depreciando-me, o que se tornou hábito nos últimos dias.

— Mas você começou a mudar depois que aquela garota apareceu – Ele continua, ignorando-me. - E tornou-se cada vez mais arrogante. Entrou para os anluxes... – Orion parece extremamente desapontado. - Recebeu sua marca, pois você fazia parte do clã... Agora, sem a marca, você não precisa seguir nenhum dos clãs! Você pode interagir com qualquer magia, o que me permite entrar mais profundamente em sua mente! – Orion parece feliz, mas insatisfação está em sua voz.

— Como assim? - Pergunto rapidamente antes eu a insatisfação dele torne-se desconfortável.

— Você pode fazer o que quiser, ser até mais poderoso que aquele narcisista líder dos Anluxes. Mas somente caso se libertar totalmente do clã. – Orion volta a sentar-se. Procuro por algum sinal de Alexander, qualquer coisa que mostrasse que ele podia ouvir tudo aquilo e que se precisasse dele poderia invocá-lo e sair correndo aquele lugar. – Você não precisa mais invocar Alexander, ele é um espirito livre agora, já que você domina a magia azul. 

Isso é muita informação, ele fala rápido, parecendo querer ver a confusão aumentar em meu rosto. Ainda não sinto Alexander, e meu coração pula com a possibilidade dele ter me deixado. Tornamo-nos amigos ao decorrer dos dias, ele se transformou alguém extremamente protetor e agora não consigo imaginar não ter sua presença.

— Agora, diga-me como conseguiu se libertar. – Orion parece extremamente curioso.

— Gostaria de saber também... – Digo rapidamente, passei os últimos quatro dias tentando achar uma razão, mas tudo me leva para Sereena. Tudo sempre me levou a ela, até Orion me lembra dela.

— Posso vasculhar sua mente, caso queira, claro... – Orion mostra um pouco dos dentes, parecendo sorrir. 

“Thomas! Thomas!” Alexander parece gritar dentro de mim. Mesmo com seu tom assustado, suspiro de alívio. “Graças a Deus! O que está acontecendo?”

— E então, vai me deixar vasculhar sua mente? – Orion parece animado e impaciente, como uma criança. – Ah! Alexander... Você é com certeza um espirito amargurado, quanta força...

— Você o fez sumir? – Pergunto, levando rapidamente. Orion começa a caminhar em volta de mim; parecendo assustador, mas a onda de calma volta a encher-me.

— Eu precisava ter uma conversa a sós com meu convidado. – Orion se defende. – Agora, vocês querem ou não saber o que está acontecendo com sua marca? – Não entendo as reais intenções de Orion, não entendo como aquilo pode ser tão importante, como afastar Alexander pode ajudá-lo.

“Thomas, ele lhe considera fraco sozinho...” Alexander esclarece, mas é óbvio, estava quase pirando sem Alexander. Fecho as mãos em punho. “Ele tem algum motivo para querer tanto vasculhar sua mente... Mas acho que essa é a única maneira de sabermos o que está acontecendo...”.

— Tudo bem. – Digo decididamente.  Não adianta, não posso fazer isso apenas com Alexander. Uma risada ecoa em minha mente; do chão, inúmeras folhas começam a levitar, todas se fecham em torno de mim e o lobo a minha frente.

Seu verde parece camuflar-se entre as folhas, que escurecem o dia ainda mais e pairam no ar. Elas giram. Giram, giram, giram... E todo mundo se torna verde com tons amarelados, passando rápido em minha volta. Meus cabelos começam a serem lambidos pelo vendo. “Acha que foi uma boa ideia?” Alexander pergunta, parecendo gritar novamente, mas a raiva substituída pelo medo. Não consigo responder, o ar começa a esvair-se, como se estivesse sendo sugado para fora dos meus pulmões.

Dentro de mim uma confusão de sentimentos se somam, parecendo apertarem meu coração, mais e mais. Dor, medo, vergonha, indecisão, raiva, enjoo. Caio de joelhos, a mão sobre o peito, tentando fazê-lo subir e descer normalmente. Mas nada ocorre, estou sufocando, o vento parece laminado, parece cortar minha roupa, minha pele. Tento focar minha visão no chão, mas o tom rubro em minha mão choca-me.

— Você é realmente muito fraco, Thomas. Os Aluxes lhe fizeram isso. Não culpe a mim pela dor que sentirá. Aposto que se fosse a garota no seu lugar, ela aguentaria melhor... – Orion parece feroz, querendo desafiar-me a resistir à dor, mas nada me conforta ou me faz querer lutar, por mim, deitava ali mesmo e esperava as folhas tomarem todo meu ar, finalmente morrer...

Coloco as mãos sofre o rosto, aquilo me sufoca mais, tento olhar para o céu a cima de nós, onde não há um redemoinho de folhas e um espirito psicótico, sinto Alexander lutando dentro de mim para resistir, como lutou para manter o controle de seu avião anos atrás. O céu parece estar sendo coberto por folhas. “Thomas!” ainda consigo ouvir Alexander, mas com o último sopro nos meus pulmões, vocifero o mais doloroso grito que poderia gritar. Minha visão escurece, e lá no alto do último galho que consigo ver, um bando de pássaros voa.  Já não vejo, ou grito.

—&-

 Meu corpo parece calejado, como se eu sentisse frio, daqueles que doem os ossos. Tento abrir os olhos, mas eles não respondem, tento mexer as mãos, dedos, pernas, mas elas não respondem. Tento seguir uma linha de pensamento, focar em uma emoção, mas é como se tudo explodisse minha mente. Alexander... Onde você está? Onde eu estou? Tento abrir os lábios e gritar, mas eles parecem selados, e um estranho gosto azedo enche minha garganta e boca.

— Thomas... – Escuto a voz de Orion próxima a mim. Ele parece estar sofrendo, como se estivesse triste com a minha situação. – Thomas, não sou eu que estou fazendo isso com você. Você mesmo gosta de se machucar, de ser fraco.

Orion tem razão, e eu gostaria de discordar com ele, mas meu corpo continua imóvel e minha mente só registra o fato dele estar completamente certo.

— Thomas, não comecei a vasculhar sua mente ainda... Mas espero que saiba que toda a dor que sentirá, não serei eu o culpado. – Orion agora parece falar entre dentes, mas aposto que se pudesse ver seu rosto, eu veria um sorriso. – Eu sou meramente curioso.

Uma luz amarela parece manchar minhas pálpebras, seguida de outra, e mais outra, até elas formarem algo parecido com um sol. Tento abrir os olhos, e dessa vez consigo. O sol enche meu rosto, coloco a mão sobre os olhos. Consigo visualizar um campo verde, movo a cabeça e vejo meu pai centímetros mais alto que eu. Essa é minha primeira lembrança, o dia em que aprendi a jogar futebol com meu pai, ele sorri, meu eu criança também sorria, mas eu me lembro do medo que sentia de tentar e errar na frente dele. Sinto a barriga embrulhar-se com o medo, tento chutar a bola, as tropeço. Quando olho para meu pai, esperando o rosto cheio de reprovação tudo se torna um borrão, como se meu corpo estivesse sendo sugado pelo sol. Memórias passam a minha direita e esquerda, como um túnel de lembranças. Minha primeira surra na escola, minha mãe e seu primeiro porre, eu sozinho no meu quarto. Meus amigos na escola, até os que me traíram em algum momento.

Tudo para, olho para frente e leio o bilhete que meu pai me deixou. Não consigo lembrar ou ler, eu já não entendo nada, as palavras no pedaço de papel, mas sei que ele havia nos deixado para evitar “escândalos”, ele dizia que precisava ficar afastado. Posso ouvir o choro da minha mãe no andar de cima, a garrafa de vinho quebrando-se no seu chão. Posso sentir minhas pernas correndo para fora de casa, a porta se abre. Meu peito doí como naquele dia, estava sozinho.

 O sol enche meus olhos novamente, e quando foco-os, vejo o enorme carro alegórico construído por Matt para o dia de São Domingues, minha cabeça vira a tempo de ver Sereena, colorida, com um sorriso no rosto, mas com os olhos tristes, como sempre foram. Mas agora quando a vejo meu coração fica dividido entre gratidão, felicidade e medo. Ela olha para mim. Tudo fica borrando novamente, como se Sereena fosse uma fumaça e alguém a soprara. A fumaça reagrupa-se e agora vejo Geórgia, momentos depois de conhecê-la, o enquanto de seus cabelos, o tom canela de sua pele, eu sei que parte disso era um feitiço e a outra falsidade, mas não sei o que pensar sobre Geórgia. Não sei de nada, sobre nada, em momento nenhum. Minha vida é apoiada em outras vidas. Meu pai, Sereena, Geórgia... Posso ver Geórgia me auxiliando em feitiços, posso sentir a lembrança do meu ego, como se o clã fosse me ajudar a sair daquela insignificância.

Tudo escurece e dentro de mim é como se uma chama se apagasse, fecho as mãos, pois sei que o pior está vindo. Uma, duas, três luzes do casarão Anlux estão ligadas, uma multidão está virada para casa, Rikromm está à porta, meu estomago embrulha. Estou no meio da multidão, ouvindo as ordens de Rikromm, ele pede para que lutemos ao lado dele, para que intimidemos Sereena e tragamo-la para o nosso lado. Mas próxima a Rikromm, Geórgia tem o semblante sério, como se sentisse dor... O rosto do homem ao meu lado ilumina-se pela luz do seu celular, ele tem o rosto jovem, talvez tenha uns quinze anos. Posso ler a mensagem no seu celular, ele diz que já voltava para alguém. Lembro-me de sorrir e acha-lo um pouco tolo. Ouço Alexander em minha mente, reprimindo-me por rir e pedindo para que eu preste atenção no que Rikromm falava. As luzes se apagam, e se flashes acendem o céu, um atrás do outros. A chuva que Sereena provoca castiga meu rosto. Tento lutar, sinto Alexander movendo meus músculos, mas o medo me petrifica. No rosto dela, não vejo nada de amigável, nada da doce Sereena. A metros de mim, o garoto que dizia que já voltava é engolido pela terra, seus gritos ainda ecoam nos meus ouvidos, desde aquele dia não largo meus fones de ouvido. Vejo Rodrigo arrastando um homem para fora do campo de batalha, colocando-o de lado perto do que restara das árvores. Meu estomago parece remexer-se com a gastrite de puro medo. Geórgia grita meu nome, Sereena vira seu rosto petrificado para a garota. Por medo, a adrenalina começa a correr em minhas veias, por medo corro para Geórgia, a ajuda a levantar Rikromm e arrasta-lo para fora do campo. Antes de corrermos para as árvores, viro a cabeça e vejo Sereena ser atingida por uma flecha. Um arrepio sobe minha espinha e volto a correr ao lado de Geógia, carregando Rikromm.

Tudo escurece novamente, e eu peço mentalmente que seja a última. Tento abrir os olhos para ver a nova lembrança, mas não consigo, não consigo mexer nenhum músculo. Acabou.

— Sim, acabou! – Orion fala, dessa vez mais sério, como se ele pudesse sentir também o enjoo que meu estomago produzia.

Escuto novamente o barulho de folhas, mas agora é como se fosse uma brisa, como se elas quisessem me fazer dormir. Relaxo, embora queira sair correndo dali.

—&-

“Thomas! Thomas!” escuto a voz de Alexander. Abro os olhos e consigo ver as mesmas árvores de minutos antes, embora parecessem anos para mim. Minha cabeça pende para o lado, meu corpo está exausto. Enterro minhas mãos na terra fofa e úmida pela chuva dos dias anteriores. Os olhos azuis esverdeados de Orion fitam-me, mas dessa vez sem a presunção e força que tinham, eles parecem calmos... Piedoso.

— Entendo... – Orion finalmente diz, colocando a cabeça sobre as patas e abaixando as orelhas. – Thomas, você sente medo.

— Eu? – Digo lentamente, a voz rouca, pensando em toda a confusão que já enfrentei, como poderia ser medroso? Um calafrio sobe minha coluna.

— Viu... Tem medo até em ser considerado medroso... – Orion fala com calma, como se estivesse falando com uma criança. – Thomas, vamos encarar a realidade... Você é covarde! – Engulo em seco, parece que essas são as palavras que mais temo. E temo, porque sou covarde. Orion tem razão... – E isso explica por que perdeu a marca... Sereena despertou um dos seus maiores medos, o medo de morrer... E fez você acreditar que ela é poderosa, que ela tem poder para libertar a magia.

Alexander permanece quieto, mas sinto sua presença. Orion tem razão, nós dois sabíamos disso, sabíamos que meu medo é lancinante.

— Thomas, eu vi todas as tuas memórias, mas você só viu algumas delas, sabe por quê? Porque todas elas havia medo, todas as ações que tem tomado são movidas pelo medo, até entrar para os anluxes, você tem medo de não ser bom o bastante... Não ter ficado ao lado da reencarnação foi seu pior erro, mas foi o que o fez libertar-se.

“Thomas, você não tem que ficar ouvindo isso. Nós podemos simplesmente sair correndo daqui...” Alexander parece minguado, como se sofresse por mim. Mas não sofro, eu preciso ouvir isso... Alexander está sofrendo com as palavras, pois sempre foi corajoso. Seria insano eu escolher fugir e temer o medo... Não seria? Mesmo assim meu peito parece vazio, como se algo faltasse...

— Você não pode continuar a viver como está vivendo. – Orion parece um pouco revolto.

— Mas por que você está sendo legal comigo? Você que quase me matou minutos atrás... – Digo, acusando-o, mas por medo também.

— Primeiro, foram horas atrás... E, Thomas, acho que você ainda não entendeu por que a reencarnação existe. Bem e mal não existem na magia, isso é uma criação humana, Sereena veio acabar com isso. Eu não estou falando todas essas coisas por bondade, nem o adormeci por maldade, fiz o que é necessário... Ninguém é bom ou mal. O que nos faz voltar para você, sabe algo que prova que bem e mal totais não existem? O fato de sermos uma mistura de transformações. – Fecho os olhos, cansado da conversa, em parte eu só queria sair dali e tomar uma poção magica para parar de ser um completo covarde. – A cada minuto mudamos, a cada minuto nós não somos os mesmos do minuto anterior, isso nós faz mutáveis, isso nos faz inconstantes... Thomas, você tem medo dessas mudanças, tem medo que algo possa o tirar da zona de conforto. Mas você precisa reagir! Nenhuma poção vai o tornar menos covarde, mas você pode fazer isso!

Apoio-me nos cotovelos e levanto um pouco, minhas costas ardem e posso ver várias machas em minhas roupas. Sento aos pouco, tentando não ficar tonto. “Thomas, o que pretender fazer?” Alexander pergunta, eu também não sei qual será o próximo passo.

— Você tem que seguir Sereena. Ela vai o ajudar, ela já o tem na verdade... – Orion responde a minhas perguntas e de Alexander.

— Ela me odeia, eu praticamente matei a prima dela. - Digo, enterrando o rosto nas mãos. O cheiro da terra parece me acalmar, respiro fundo até os pulmões arderem.

— Não estou falando para chegar e dizer “Oi, Sereena, perdi minha marca, vamos ser amigos!”. Você precisa de um plano. – Ele diz o obvio.

— E você tem algum plano, gênio? – Pergunto entre dentes, a voz abafada pelas mãos.

“Talvez você consiga um emprego na oficina do Matt.” Alexander parece animado. Donde ele tirou isso? Eu trabalhar? Nunca fiz nada na vida... E quem confiaria um carro a mim? Um louco!

— Thomas, pare de ser tão negativo! Tente o que Alexander está dizendo e volte para a escola, lá você poderá falar com ela sem o outro rapaz por perto. – Orion fala, animado também. Meus dentes rangem e meu estomago queima com a lembrança de Rodrigo, ele é enorme, poderia me desfazer em pedaços com um olhar. Além de ser mais um obstáculo até Sereena.

Levanto, as pernas tremem pelo esforço. Alexander faz um grunhido, como se ele estivesse sentido a dor nas costas que estou sentindo. Procurar emprego na oficina do Matt... Talvez eu devesse.

— Orion, o que você ganhou com tudo isso? – Pergunto, olhando para o lobo que rola no chão.

— Malditas formigas... Eu? – Ele para de mexer-se. – Eu ganho liberdade... – Sinto sua felicidade. – Agora posso segui-lo, Thomas. Estamos conectados, não do mesmo jeito que você e Alexander, mas posso o observar através dele.

Orion é um espirito da floresta, protetor, alguém que possui a liberdade da natureza, mas não pode sair dela... Deve ser estressante não conversar.

— Pode ter certeza disso... Agora vá. – Orion diz, e muitas folhas voltam a subir no ar. Em poucos minutos, um pequeno gato branco está no lugar de Orion, ele corre atrapalhado para os arbustos. – Viva, Thomas... Seja selvagem. – Consigo ouvir Orion dizer.

— “Seja selvagem” diz o gatinho fofo... – Digo, sorrindo. E um rugido ecoa pelas árvores. Eu certamente voltarei para aquele lugar.

—&-

“Ainda acho o Orion muito estranho.” Alexander diz assim que saímos da floresta. Também o acho estranho, mas ele parece estar certo. Preciso deixar o medo de lado, se quero ser maior... “Então já decidiu o que fará?” Alexander pergunta, eu vou seguir seu plano, ir atrás do tio da Sereena primeiro.

Caminho em direção a oficina do Matt, espero que ele precise de ajuda. As ruas estão vazias, como se a tristeza da chuva tenha afugentado todos, volto a por os fones e ouço Alexander xingar Orion mentalmente. “Ele poderia não ter quase matado você, não acha?” ele pergunta, mas pelo menos tínhamos respostas agora. Desabotoo o bracelete e olho para meu pulso sem marca, agora aquilo não me assustava mais, jogo o bracelete na lixeira da praça em frente à oficina. Os barulhos de ferramentas soam lá dentro, escuto algumas risadas.

Atravesso a rua e paro em frente à garagem principal. “Não pensou no que falaria, não é?” Alexander parece nada surpreso. Na verdade eu não tinha pensado mesmo, talvez eu devesse implorar? “Minta, Thomas... É fácil, você já faz isso pelo menos durante 17 anos” Alexander diz, sarcástico.

— Muito engraçado... – Digo, curvando as sobrancelhas.

— Obrigada pelo seu serviço, Matt, precisava de Dóris preparada para viajar... – Escuto uma voz conhecida engasgar. Olho para frente e Rodrigo está a centímetros de mim, ele fecha a expressão, aposto que se ele pudesse rosnar, rosnaria. Eu ainda pareço medíocre perto dele, seus ombros muito mais largos que os meus, seus olhos negros ameaçadores, tudo o fazia parecer selvagem. – Thomas...

— Rodrigo... – Digo com o maxilar travado.

— Ah, vocês já se conhecem! – Matt aparece atrás de Rodrigo, o rosto manchado de graxa. Volto a olhar para Rodrigo, segurando seu olhar acusatório, eu podia ouvi-lo dizer “Assassino”. Não desvio o olhar, continuo a encara-lo, eu também não gostava dele. Sua mão se fecha e ele dá uma semi volta sobre os calcanhares, olhando alegre para Matt.

— Obrigada pelos serviços, Matt, e nos vemos na sua casa... – Essa ultima parte, Rodrigo fala olhando para mim. Ele anda ao meu lado e cospe no chão, parecendo enojado, antes de subir na moto e colocar o capacete.

— É... Parece que minha sobrinha é muito disputada! – Matt diz com um sorriso. O sorriso de Matt é o mesmo de sempre, os olhos mais juvenis, mas toda sua alegria natural está lá. As pessoas do clã tinham razão, a magia apagou tudo que os humanos conheciam sobre a menina.

— Não é nada disso, mas nosso santo não bate... – Digo, talvez seja um pouco daquilo, mas não da maneira como ele está insinuando. Alexander parece que vai se engasgar de tanto rir dentro da minha mente. – Ok, concentre-se. – Digo baixo. Alexander parece engolir a risada.

— Ok, o que o traz aqui, Thomas? Que eu saiba, você não tem carteira de habilitação nem bicicleta. – Matt diz, limpando as mãos num pano sujo.

— Matt, eu cheguei a uma conclusão... Eu preciso de um emprego, algo que me ajude a amadurecer, ganhar responsabilidade e experiência. – Minto rapidamente. – Quero saber se posso ser seu aprendiz, interesso-me por peças automotivas e motos em geral. – Minto novamente, não sei nada sobre carros.

— Ah, Thomas! Isso me deixa muito feliz! – Ele aperta meus ombros. – Estava esperando dia que deixaria de ser uma criança mimada! – Matt diz, abraçando-me. “Essa doeu até em mim” Alexander diz. – É claro que o ajudarei, quando pode começar?

— Agora mesmo! – Digo, fingindo felicidade. “Para alguém que estava quase entrando num ataque de pânico, você se saiu muito bem. Ou o Matt que é muito ingênuo... Ele era assim antes da garotinha morrer?” Alexander pergunta, e a lembrança da morte de Clara pesa em meu estomago como uma pedra.

Agora eu trabalharia com o pai da garotinha que eu ajude a matar, para me aproximar da garota que possui meu destino nas mãos... Não valho nada mesmo. Como eu conseguiria encarar esse homem durante meio período todo o dia, de segunda a sexta, sem lembrar-me dos gritos de Sereena, nas borboletas azuis, a terra mastigando meus antigos companheiros... Essa é minha tortura pessoal... 

—&-


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