Shadow

— Você quer contar, querido? — Julie me perguntou, depois de um leve ataque de euforia vindo de nossos filhotes.

— Claro. Me lembro de tudo como se fosse ontem...

“Shadow caminhava solitariamente numa área de floresta, coberta por inúmeras violetas no chão, as quais ele não deu muita importância. Apesar de parecer familiarizado com a solidão, essa não era a mais pura verdade. Shadow não apreciava ter apenas sua sombra como companhia. Ele queria alguém. Será que era pedir muito?

Farejando um pouco aqui, um pouco acolá, o lobo negro estava à procura de alimento. Magro, com as costelas quase à vista, não tinha forças o suficiente para caçar um cervo sozinho, então teria de se contentar com uma simples lebre, ou, se tivesse sorte, uma carcaça ruça e com pouca carne. Não era fácil deixar seu orgulho de lado e comer esse tipo de alimento, mas situações devastadoras pedem medidas tão devastadoras quanto.

— Por que só eu sobrevivi? — Shadow perguntava à floresta, visto que não havia ninguém ali para lhe dar ouvidos. — Por que não meus irmãos? Sobreviver para passar uma vida dura e sozinha... não acredito que realmente valha a pena.

Dando algumas olhadas para os lados — checando se realmente estava sozinho, talvez? —, o lobo deu um suspiro.

“Não era isso que eu esperava do futuro. — ele pensava consigo mesmo. — Por que continuar lutando contra a natureza? Não é possível suportar tudo isso sozinho. É melhor... desistir.”

Shadow se sentou. Com os olhos fechados, não conseguia ver uma solução para sua vida. Por que permanecer insistindo em algo tão... improfícuo?

Uma lágrima carregada de lamentações e memórias cruciantes percorria seu caminho para a terra, desde seu olho esquerdo, passando pelo seu focinho, mas não completou sua trajetória: Shadow passou sua pata na face, desmanchando a gotícula salgada numa fração de segundos.

— Não precisa ter vergonha. — uma voz ecoou na floresta. — Todos têm o direito de se sentir tristes e, se quiserem, chorar.

Shadow olhou para o lado e viu uma bela loba de pelagem em tons de castanho. Ela parecia ser aquele tipo de animal feliz e otimista; bem diferente de Shadow no momento.

— Não estava chorando. — ele se portou como um filhote, bufando.

— Claro que não... — a loba sorriu. — Meu nome é Julie.

O lobo negro a analisou antes de farejá-la. Ele não fazia contato com outros de sua espécie há um certo tempo, então estava ligeiramente confuso e acanhado.

— Shadow. — ele disse por fim, farejando-a.

Julie sorriu de olhos fechados. Ela gostava da presença daquele lobo cheio de mistérios, e não via problemas em tentar desvendar todos.

— Você é disperso, não é? — ela interrogou.

Shadow parecia surpreso. Ele não esperava que alguém conseguisse dizer se ele pertencia ou não a uma alcateia apenas pelo olhar.

— Como sabe?

— Bom, não consegui captar odor de outras alcateias, ou de nenhum outro lobo em você. — ela explicou pacientemente.

— E como você sabe o cheiro de todas as alcateias? Você só pode pertencer a uma.

— Não sei necessariamente de todas, mas consigo diferenciar o odor de um lobo disperso, pelo fato de estar constantemente sozinho, do que o de um lobo com alcateia, por estar sempre com outros lobos, e assim possuir um odor mais forte.

Shadow armazenou toda a informação em seu cérebro. Agora, ele estava mais curioso e com sede de conhecimento.

— Bom, então a qual alcateia você pertence? — o lobo questionou.

— Nenhuma. — ela riu. — Eu fazia parte dos Sloughs, nasci lá, mas saí para tentar ter uma vida independente.

Shadow arqueou uma sobrancelha. Não fazia sentido para ele sair de sua alcateia, mas ele resolveu falar sobre isso depois.

Os lobos conversaram como se já se conhecessem há tempos. Constantemente, Julie abria seu delicado sorriso, que deixava Shadow desnorteado, sem que ele percebesse.

Julie arrumou uma carcaça fresca para Shadow, que, aos poucos, ia recuperando sua força. Os dois passaram a caçar juntos, e logo, a andar juntos para todos os cantos. Uma relação de afeto mais forte que uma mera amizade logo se formou ali, e eles perceberam isso. Caso contrário, não estariam juntos neste exato momento.”

— Que coisa mais adorável! — Diamond exclamou assim que terminei.

Tive uma leve sensação de estar revivendo todos os momentos enquanto ia os contando. Foi estranho, de início, mas muito proveitoso depois. Foi como se eu conseguisse ouvir a risada de Julie naquela tarde em minha mente.

A loba se aconchegou em meu pelo, me deixando satisfeito. Eu era grato à Deusa Loba por tê-la ao meu lado. Se Julie não tivesse falado comigo naquele dia, eu talvez estivesse morto hoje. Eu teria desistido se não fosse por ela, que me deu forças necessárias para me reerguer.

Com um fino e delicado sorriso, ela me fitou. Eu esfreguei meu focinho no dela. Algumas coisas não precisam ser ditas. Apenas sentidas.

— É uma história bem bonita mesmo. — Mike apreciou.

— Um dia quero encontrar um amor, da mesma forma que aconteceu com vocês. — Nix disse revelou.

Julie a observou com carinho. Eu esperava que ela dissesse alguma coisa.

— Você vai. — Julie a confortou com tranquilidade. — O amor muitas vezes é encontrado nos lugares onde menos se espera. Você não precisa de um, então não precisa buscá-lo. Se acontecer, irá ser algo natural sem que você note.

Concordei em pensamento.

Aos poucos, os filhotes saíram da caverna, e ficaram conversando sob a luz do Sol.

— Isso servirá de inspiração para eles. — Julie esclareceu. — Eles precisam entender a força que tem o amor.

Permaneci em silêncio, apenas assentindo com a cabeça, enquanto contemplava Julie, que estava deitada. Calmamente, andei até ela e me deitei ao seu lado. Lambi seu focinho e deixei que ela retribuísse.

— Obrigado, Julie. Por tudo. — suspirei. — Eu provavelmente estaria morto agora se não fosse você.

— Não diga bobagens. — ela riu. — Eu só estava na hora certa e no lugar certo, e lhe dei um empurrãozinho.

— Muitos empurrõezinhos. — corrigi, e nós dois rimos.

— Sempre estarei aqui para você, Shadow. — ela disse. — Nunca se esqueça disso.

Juntei nossas caudas, deixando-as enroscadas, em sinal de união.

— Você se tornou uma das maiores razões do meu viver, Julie. — declarei, colocando minha pata sobre a pequena pata de Julie. — Literalmente.

Ela continuou me olhando, um pouco envergonhada, talvez.

— Shadow...

— Você me salvou, e eu nunca poderei realmente te agradecer. Eu te amo, Julie.

— E eu te amo mais. — ela afirmou e riu.

Como eu adoro sua risada pura e ingênua.

Como eu amo essa loba.