A Teoria da Felicidade escrita por LC


Capítulo 1
Eu jamais deveria ter feito algo assim.




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Não seria nenhuma novidade dizer que nosso professor de filosofia era a exigência em pessoa. Mesmo sendo um professor recente aceito pela escola, tendo lecionado para nossa classe por apenas quatro meses, já havíamos entendido que o máximo de nosso esforço não bastaria para satisfazê-lo.
E era possível ver o nervosismo mútuo entre os alunos. Desatentos, confusos, tremendo um pouco e repassando várias vezes sua apresentação mentalmente. Todos possuíam um mesmo objetivo: impressionar tal professor. Mas, como ele mesmo havia ensinado no dia em que pisou em nossa classe pela primeira vez: "Ter um objetivo não significa ser capaz de realizá-lo".
Por mais que ver os meus colegas de classe agonizados e temendo falhar me deixasse um pouco mais calmo e contente, de certa forma, isso não me tornava uma vítima menor do que eles. Hoje era o dia em que cada um de nós deveria apresentar seu trabalho individual, e a nota que ganhássemos nele refletiria no nosso boletim pelo resto do ano letivo. Eu também estava com medo de não ser bom o suficiente. Eu não era muito diferente dessas pessoas detestáveis e fúteis ao meu redor, porém meus objetivos eram um pouco diferentes. E isso influencia bastante na hora de realizá-los.
Sentado em sua cadeira ao lado do palco estava ele: o carcereiro sádico que nos mantinha apavorados. Nos libertar temporariamente de nossa prisão pessoal - a carteira escolar - para subir ao palco e apresentar nosso trabalho não significava a liberdade, mas talvez, a ida até a guilhotina.
"Muito bem - O professor começou a dizer - Vou chamá-los por ordem alfabética. Quando ouvir seu nome, reúna seu material necessário para a apresentação e suba até o centro da sala, aonde terão quinze minutos para apresentar seu projeto de filosofia. Lembrem-se que é uma avaliação, então cada detalhe refletirá na nota de vocês."
Ótimo, pensei. Isso fazia de mim o quinto a apresentar. Não sei qual o motivo de minha mãe ter escolhido "Enzo" como meu nome, mas, com certeza, ela não pensou que isso faria uma grande diferença na lista de chamada da turma de filosofia. Não que me incomodasse ser o quinto ao invés do trigésimo sexto, eu adoraria apresentar logo. Me distanciar do destino não fará com que ele mude. Prefiro enfrentar uma tempestade agora do que ficar olhando seu crescimento de longe, até ela chegar até mim parecendo um dilúvio de Noé.
Vou ser sincero: as três primeiras apresentações foram um lixo. Provavelmente, as pessoas nem devem saber qual a origem em latim de "filosofia", já que seus projetos foram sobre ecologia, desmatamento e o aumento nas tarifas do transporte público. Mas não as culpo por isso; passar todos as horas diárias conversando pelo celular com os amigos que se vê todo santo dia na escola deve ter derretido o cérebro de alguns alunos - se é que já havia algo lá dentro.
Talvez eu pareça esnobe, talvez eu pareça verdadeiro demais. O fato de ser visto como um esquisito pelo resto dos alunos populares da sala faz com que eu tenha adquirido algum ódio (que fiz questão de guardar para mim mesmo e saboreá-lo a cada insulto que recebia) da turma popular. Afinal, eles são os esquisitos para mim.

A terceira apresentação até que foi decente. Falava sobre quem somos e nossa posição no universo, citando diversas vezes o livro de Jostein Gaarder (aposto todas as minhas economias - não que sejam muitas - de que esse é o único livro que a pessoa leu na vida), o que me irritou mas provocou uma notável indiferença no rosto do professor. Talvez ele escondesse suas emoções ao invés de manifestá-las, assim como eu escondo meus pensamentos sarcásticos e ofensivos. Talvez seja melhor que o mundo não saiba quem somos. Talvez ele não esteja preparado para saber.
"Enzo Cardoso." - A voz grave e séria me chamando só poderia significar uma coisa: era a minha vez de apresentar.
Ao levantar da minha carteira, pude sentir a tensão dos alunos que tinham as iniciais do seu primeiro nome como sendo letras a partir do E correr pelas minhas têmporas, mas não me preocupei. Essa preocupação é própria de cada um, afinal. O medo do futuro nada mais é do que o medo do desconhecido. E só há um jeito de enfrentá-lo.
Subi as escadas do palco e me virei para a classe. Um silêncio cortante se fez. Eu sabia o que isso significava. Ele estava me olhando.
Pigarreei e tirei meu material de apresentação de debaixo do meu braço. Era apenas alguns cartazes, que seriam mostrados um após o outro para oferecer minha ideia filosófica em troca de alguma nota na média. Posicionei-os, na ordem, em uma mesa, encostados na parede de forma que ficassem visíveis a todos.
"Você tem quinze minutos, Enzo."
Era isso. Sem um desejo de boa sorte, sem um comentário adicional. A vida não fornece tantas bajulações, ela simplesmente diz o que quer de você e o que você precisa fazer para não ser descartado.
Dei uma leve tossida para me preparar antes de começar minha apresentação e puxar o primeiro cartaz.
"Boa tarde. Vou apresentar minhas ideias sobre algo curioso que alguém aí já deve ter pensado alguma vez, sozinho em casa ou na companhia de amigos. Vou falar sobre a felicidade."
Levantei o primeiro cartaz, revelando três palavras em letras negras e colossais: "A Teoria da Felicidade".
Alguns dos alunos usavam uma vara de metal ou madeira para apontar para onde queriam que o público olhasse em suas apresentações. Alguns tinham canetas de lasers para direcionar o olhar do público. Eu optei por algo muito mais prático e convencional: meu dedo indicador. Levantei o segundo cartaz e apontei para os desenhos dele.
"A minha teoria é de que a felicidade é algo imaterial que já nasce junto com a gente. Como se fosse uma parte de nós, como nosso apêndice. Com o passar do tempo, sofremos influência dos problemas e dificuldades da vida, e vamos perdendo a felicidade. Algumas pessoas precisam remover seu apêndice, mas vivem normalmente sem ele. Normalmente não significa que vivam bem. Elas não tem um pedaço de si mesmo ao seu lado enquanto muitos mais novos têm. Mas, um dia, talvez eles também precisem remover o seu apêndice. Não porque querem, mas porque a vida o tirará delas."
Como minha apresentação não era por slides, eu tinha que tirar manualmente os cartazes para mostrar minha ideia seguinte. Isso me irritava um pouco. Todos estavam focados em mim, sem nem piscar. Antes que o silêncio ficasse constrangedor, voltei a discursar.
"Eu chamo esse período de "Perda da Felicidade" ou simplesmente de Perda. Temos o período pré-Perda e o período pós-Perda, que representariam respectivamente a infância e juventude, e a vida adulta. Um fato é que nenhum dos adultos é realmente feliz. Eles podem escrever livros, produzir filmes, dançar, cantar, criar, voar e comprar, mas isso não os fará feliz. Somente as crianças e adolescentes possuem a genuína felicidade, só a gente consegue sorrir sem motivo, esquecer as preocupações e relaxar por alguns instantes, resolver os problemas de maneira simples..." - Comecei a tremer um pouco. Senti que uma lágrima ia sair, mas engoli de volta e prossegui antes que percebessem - "Enfim, os adultos são incapazes de saber o que é a felicidade uma vez que a perdem. E o pior lado disso, é que eles nem se dão conta de quando perdem, nem percebem que passaram do pré-Perda pro pós-Perda. A ficha só cai quando já estão no pós."
Retirei mais um cartaz. Falei, tomei fôlego. Falei ainda mais. Não sabia quanto tempo restava, nem sabia se o tempo já havia acabado e se o professor estava tão fascinado pelo meu trabalho que havia deixado ele tomar mais tempo. Eu não conseguia coragem para olhar para o rosto dele, estava morrendo de medo, então continuei a discursar para a plateia. Retirei outro cartaz.
"Porém, existe uma questão muito importante no meio disso... a inteligência. Apenas os que estão no pré-Perda são inteligentes. Todos, no geral, do pós-Perda são apenas ignorantes. As crianças e jovens são tão mais inteligentes, que já até entendem a teoria da felicidade, mesmo tendo menos de duas décadas de vida, no geral."
Pensei um pouco antes de prosseguir - "Acho que eu preciso falar sobre isso separadamente. Bem, a sua idade não vai provar se você é feliz ou não. Estar no pré ou no pós só é provado pela sua mentalidade, tanto é que muitas crianças já perderam sua felicidade. Você ter mais idade que alguém, e se achar mais inteligente ou melhor que os mais novos só prova que você já está no pós. Sinto muito."
Pude ouvir algumas risadinhas sarcásticas pela sala. Tentei ignorá-las, mas gaguejei um pouco antes de prosseguir. Merda, pensei. Querendo ou não, eu me importava com aquelas pessoas que estudavam comigo e se auto-intitulavam meus colegas. Como ou porque, eu não sabia. Quem sabe algum deles explicasse isso em seu trabalho de filosofia? Quase deixei escapar uma risada ao pensar nessa hipótese impossível. Eu os desprezava e eles me desprezavam, essa é a física que faz nossos mundinhos girarem.
"Bem, qualquer adulto que ouvir minha teoria da felicidade me acharia louco por dizer que considero os mais jovens superiores aos mais velhos . Pelo menos no quesito "mais feliz". Afinal, conseguir pisar na lua torna os adultos felizes enquanto ganhar uma casquinha de baunilha faz um jovem feliz. Os adultos estão tão presos ao seu modo de vida monótono, cheio de leis e regras, enquanto as crianças sorriem ao dar cada passo novo em seu grande mundo (e considere que os adultos procuram a felicidade deles indo para outros mundos) que a única coisa que os torna feliz é usarem sua ambição e vaidade para colocar as crianças abaixo de si mesmos. E, nem isso, é capaz de trazer a eles a tão sonhada felicidade que desejam."
A classe ficou em um silêncio mortal por alguns segundos. Arrisco dizer que talvez tenham sido alguns minutos. Aproveitei a deixa para recolher meu material de apresentação. Eu devia ter feito algo tolo e ridículo se queria ganhar nota, pensei. Não devia tentar impressioná-los quando recebo a chance para isso. Coloquei meus cartazes ilustrativos sob meu braço e me virei para os alunos abaixo do palco, fazendo uma breve reverência.
"Obrigado pela atenção."
Quando me dirigia até a escada para sair do palco, pude ouvir alguém batendo palmas. Virei para o público, mas todos ainda estavam em silêncio, seus rostos com alguma mistura de choque e terror. Então me virei para trás. E vi o professor de filosofia. Me aplaudindo.
Mesmo tendo acabado com a moral dele e esculachado a pessoa que a vida o fez se tornar, lá estava ele, me aplaudindo. A classe pensou que também deveria estar fazendo isso, já que o professor fazia. Um a um, confusos e desestruturados, foram imitando a ação e as palmas tomaram conta da sala de aula.
Eu não sabia o que pensar. Eu não sabia o que sentir. E, ali, eu percebi o que significava.
Eu descobri o que era a felicidade.
O professor se aproximava lentamente de mim, ao ritmo dos aplausos de fundo. Um sorriso esquisito e medonho devia estar no meu rosto, mas tudo em que conseguia pensar eram nas lágrimas que escorriam por minhas bochechas. Larguei os cartazes da minha apresentação, que caíram na escada e rolaram para fora do palco, e corri na direção dele. Envolvi-o em meus braços e chorei. Chorei muito. E as pessoas me aplaudiam sem nem saber o motivo de estarem fazendo isso.
Meu sorriso deve ter se tornado uma lástima que choramingava, pois comecei a berrar e o professor me soltou de seu abraço confortável.
"O que houve?" - Ele perguntou.
"E-Eu estou nele..." - Disse em meio a gritos, lágrimas e aplausos, com um olhar firme em seu rosto - "Eu já estou no pós-Perda."


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