Sabo passou uma mão pelos cabelos pela décima quarta vez naquela manhã.
E pela décima quarta vez ele estranhou o fato de não sentir nenhum nó.
E pela décima quarta vez ele se lembrou de que tinha cortado o cabelo.
Os dedos corriam bem mais fácil pelos fios mais curtos, sem se prender nos antigos embolados por falta de pente. Não era exatamente um corte militar, mas os fios estavam longe dos ondulados loiros embaraçados e rebeldes que foram um dia.
–-Como vai Sabo-kun? Triste pelo último dia aqui? - Hack colocou a a mão no ombro do aluno de maneira compreensiva.
–-Um pouco... - Ele lançou outro olhar para a quadra onde o tatâmi era montado.-- Vou sentir muita falta de treinar...
–- Sabe que podia continuar treinando não é? Você tem talento!
O mais novo deu de ombros.
–-Não, acho que é mesmo o fim pra mim, sabe? A bolsa era o único motivo que me manteve treinando...
–-Pelo menos nos últimos dois anos né?
–-Mais ou menos isso.
–-Bom, qualquer coisa você pode voltar a hora que quiser pra me ver.
O ex-aluno rolou os olhos.
–-Nossa, valeu mesmo ein. Isso ajuda muito sabe?
Hack soltou um pequeno sorrisinho de canto.
–-O vício do sarcasmo é difícil de largar né?
–-É mais uma coisa pessoal.
–-Bom, eu vou sentir sua falta. Os novos recrutas não são como você ou....
Sabo levantou a cabeça de uma vez.
–-Tem tido notícias dela?
–-As mesmas que tive nos últimos meses: nenhuma.
Um suspiro derrotado foi ouvido pela quadra.
–-Fazer o que né? É a vida.
–-É isso aí! Vamos celebrar! Quebrando todas as expectativas, você se formou!
–- Porque o tom de surpresa?
–- Por nada. Agora, o que pretende fazer?
Sabo mantinha o olhar vago, distante.
–-Consegui um estágio de seis meses em um escritório de geografia. Vou bancar o assistente de algum fera na área de mapas.
–- Que bom! Aonde?
–-Sidney.
–-Sabo.
–-... Vai me abrir outras oportunidades de trabalho, talvez alguma vaga fixa na filial daqui, que eu soube é em Goa mesmo....
–-Sabo.
–-... E de qualquer forma vai ser bom como experiên....
–-Sabo admite logo que você quer ir atrás da Koala.
–-Ahn... Bãhhhnn....
–-Sabia. Por isso ficou tantas horas tendo curso extra pra prestar o teste. Agora faz sentido.
–- N... NÃO É SÓ POR ISSO!!!
–-Ah é? Então tem algum outro motivo?
–-Eu penso no caminho. - Ele jogou a bolsa nos ombros- Até a próxima Hack.
–-Boa sorte moleque.
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Trinta horas de viagem de avião (+ escalas e conexões) não ajudaram em nada.
Porque Sabo ainda não tinha a menor ideia do que fazer a não ser ficar parada encarando a porta de carvalho maciço daquela casa.
"Ah, oi! Como vai! Sabe, eu resolvi sair para um passeio e quando vi acabei parando aqui. Pode me dar um copo d'Água ?" -Não, isso era forçado demais.
"E aí? Cumé que vai? Lembra de mim? Então, eu sei que fui um idiota mas você me desculpa?"-Não, essa ele já usara centenas de vezes.
"Oi....OLHA EU PASSEI DOIS ANOS DE PENITÊNCIA ME CULPANDO NA FOSSA DE DEPRESSÃO QUE EU MESMO CAVEI ENTÃO DA PRA VOCÊ ME ACEITAR DE VOLTA???"-Isso com certeza era sincero mas muito desesperado.
Ele estendeu uma mão, pronta para bater na porta.
E pela oitava vez ele a baixou de volta com um bufo.
Como ele era idiota!! No que ele estava pensando? Simplesmente aparecer ali, com a mesma cara de paspalho, talvez até pior que a de dois anos atrás, as três da tarde e dizendo "oi" como se nada tivesse acontecido? IDIOTICE! Nem sabia se a garota ainda morava ali!!!
Contendo o impulso de chutar a porta com força,ele preferiu extravasar a raiva com um urro de raiva. Raiva... De que mesmo? Ele não sabia, mas estava com muito ódio de alguma coisa. Ah, isso ele estava.
Ding.
Que som fora esse?
Ele não teve tempo de deduzir, só de desviar do jornal que era atirado na direção de sua cabeça.
–-FOI MAL!!!- Talvez fosse isso que o entregador gritou, já pedalando pra longe.
Mas Sabo não prestou atenção.
Porque naquele momento a porta se abriu.
E Koala saiu.
Ele não teve tempo de se esconder.
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A primeira reação dela foi piscar. Piscar com força e várias vezes, como quem ainda acha que o sono está lhe pregando peças.
A segunda foi arregalar os olhos, como que pra ter certeza que estava enxergando.
A terceira foi esfregar os olhos até enxergar pontos brancos dançando na visão para garantir que não estava com retinas embaçadas.
E a quarta...
–-Sabo?!-Pular pra trás assustada e quase caindo de costas.-o que na verdade é até extremamente racional para qualquer pessoa que acabou de ver uma sombra do próprio passado.
–-Ehhhhh... oi?
Pronto. Naquele momento, ele esperava um tapa. Que ela batesse a porta na cara dele. Chutasse sua canela. Qualquer coisa.
Mas a quinta reação dela foi, supreendentemente, um abraço.
E isso com certeza fritara todos os neurônios ainda inteiros naquele cérebro já em colapso.
–-Cara, a quanto tempo!!!! Porque não me avisou que vinha?
–-Ehhhh...
–-Entra ai, eu to fazendo chocolate quente!
E ele a seguiu pra dentro do lugar.
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A cozinha continuava a mesma. Nada mudara. A geladeira continuava com a mancha de ferrugem na porta. O fogão permanecia impecavelmente desengordurado. E a mesa de madeira maciça pesada ainda ocupava metade dos metros quadrados dali.
–-Fica a vontade pra sentar onde quiser.- Koala amarrava o suéter na cintura - Você ainda gosta de chocolate?
Sabo puxou uma cadeira, um pouco inseguro. Aquilo tudo era muito irreal, como num programa de pegadinhas, onde é a câmera escondida gravava a torta voando na direção do rosto da vítima assim que ela se distraísse.
–-Sim...
–-Que bom! Porque é o que eu tenho em casa!- ela depositou na mesa duas xícaras e a garrafa térmica - se tivesse me avisado eu teria feito algo melhor.
–- Não não, sem... Sem problemas.
–- Mas me diz...- ela cruzou as pernas, se ajeitando na cadeira ao lado da dele e empurrando uma xícara cheia para mais perto-...que bons ventos trazem essa velha scarface de volta pra minha porta?
–-Hun...--ele bebeu um gole da caneca. Quente e doce. Doce até demais. Do jeito que ela sempre fazia.- Eu consegui um estágio na cidade. Começo semana que vem, mas cheguei antes pra me ajeitar.
–- Sério? Que legal! Assim você pode visitar todos os lugares que não deu na última vez que veio! Tem...
E com isso ela começou a lista interminável de lugares-para-se-visitar-no-país-do-qual-tanto-me-orgulho. Ele ignorava totalmente o fato de que já tinha conhecido todos quatro anos antes, quando fugira para lá depois de não passar no vestibular ( no voo de volta no qual ele por acaso a conhecera), mas só o fato de mantê-la falando já era o suficiente. Era incrível ouvir de novo aquela voz aguda, depois de dois anos, de uma maneira tão... Natural. Como se ele tivesse apenas passado o final de semana longe.
–-...Mas e ai, aonde você vai ficar?
Sabo parou o gole da bebida na metade.
–- Eu... Ehhh...
–- Deixa eu adivinhar... A julgar pela sua cara de sonso e malas acumuladas no meu hall de entrada...esqueceu que tinha que achar um lugar pra morar?
–-Mais ou menos....
Não era como se ele tivesse esquecido. Ele nem mesmo pensara em procurar um lugar pra ficar.
–-Tudo bem, eu te ajudo a procurar um. Pode ficar aqui enquanto não acha.
–-Sério? Porque está sendo tão legal comigo?
–-Porque pergunta? Eu ainda sou sua melhor amiga não sou?
EHHHH?????????
–-Ahn.. Bãh,... Sim?
–- Não senti muita firmeza nesse seu sim. - Mas ela dava risada.
E ele sentia muito a falta daquela risada para interromper com alguma pergunta.
Ela balançava a cabeça enquanto ria. Ele não se lembrava de que ela fazia isso.
–-Você cortou o cabelo!-Koala se interrompeu de repente.
–-Não, encolheu quando eu lavei.
–-Haha, engraçadinho.A culpa é do xampu de laranja?- Ela passou a mão pelo cabelo loiro- Mas ficou bom.
–-Você deixou o seu crescer...
–-Ahn? Ela se virou rapidamente para as madeixas que já passavam da metade das costas- Ah, é. Eu cortei pra sinalizar a mudança de ir pra América então... Depois que eu voltei não tinha mais motivo pra deixar curto...
–-Eu preferia como estava antes.
Ela sorriu de leve.
–-Então talvez eu volte a cortar.
Sabo retribuiu o sorriso.
–- E o meu? Prefere assim ou como estava?
–-De que adianta mudar o cabelo se continua com a mesma cara de besta?
E ela voltou a rir.
–-Senti saudade da sua risada.
–-Senti falta de você pra me fazer rir.
–-Opa, então vai ter que me aturar!
–-Eu aceito o desafio. Agora vem, deixa eu te instalar no quarto de hóspedes.
E fora assim que ele foi surpreendido de novo pela garota. De uma expectativa de chute na canela, ele acabara instalado no quarto de hóspedes, com direito a serviços de guia na cidade.
–-Bom, eu vou lá recolher sua bagagem.
Mas, quando ela se levantou, a parede de trás ficou a mostra. E ele notou uma única mudança naquele lugar.
–-Ei, você ainda guarda isso? - Sabo apontou para o papel meio amarelado na moldura.
–-Ahn? Ah, eu disse que ia emoldurar lembra?
–-Achei que era brincadeira!
–-Ei, é meu manual de instruções! Eu tinha que deixar a mostra não?
–-E... Ainda serviu pra alguma coisa?
–-Não.... Só pra juntar poeira. --ela se virou, indo embora.
De alguma forma, aquela resposta era reconfortante. Porque ainda seria aceitável para Sabo ter um mínimo de esperança.