Ele acordou pela manhã com os raios do sol, que entravam preguiçosamente pela persiana do trailer. Tentou se levantar, mas uma dor de cabeça súbita veio lhe castigar pelos excessos da noite anterior.

Por que mesmo havia bebido tanto? - Se perguntava. Embora tivesse o hábito de se gabar por saber quase tudo sobre todo mundo, ele não se sentia tão à vontade quando o assunto dizia respeito às suas próprias mazelas e indefinições. A verdade é que ninguém consegue resolver um labirinto estando preso nele e, tal qual nesse desafio, estava imerso em sua própria vida e personalidade, impossibilitando assim resoluções e análises racionais quando se tratava de seus próprios problemas. Então, na ânsia de buscar uma razão pela bebedeira do dia anterior, resolveu reprisar o dia, com aquela clareza de detalhes que lhe era habitual.

E fechou os olhos, e se viu caminhando pelas ruas de pedra de Nova Orleans. Os bares tocavam jazz e blues, fazendo a cidade pulsar em cores, daquelas que só enxergamos quando escutamos nossa música favorita. Um casal muito jovem passou ao seu lado, sorrindo embriagado. Ele sentiu o peito apertar, era uma dor que poderia reconhecer. Acabou se lembrando da garota assassinada pela manhã. Uma jovem musicista afogada no Lago Pontchartrain. Ela amava alguém, e havia pessoas que a amavam e que certamente sentiriam a sua perda. Pensou no rapaz do supermercado, que nutria sentimentos por ela desde o colégio. Não tivera a oportunidade de confessar seu amor, agora era tarde demais. Eles não beberiam juntos, nem discutiriam por causa da cor da parede, nem se perdoariam depois de um dia inteiro de angústia. Não haveria outra chance.

Ele encontrou o rapaz no velório, aborrecido próximo ao caixão. Perguntou a ele o porquê nunca havia falando com a moça, o rapaz apenas deu de ombros. Perguntou a ele se gostaria de falar nisso agora, e novamente não recebeu a resposta. Por fim, perguntou como ele se sentia.

– Como sempre me senti. – o jovem respondeu.

– Não está sendo sincero, acabou de perdê-la. – contestou.

– Ninguém perde aquilo que não tem.

– Mas você a amava, não é? Isso não te machuca?

E o jovem se calou.

– La douleur exquise – foi um sussurrado, seguido de um suspiro melancólico.

"La douleur exquise"... A dor de desejar alguém sem poder ser correspondido. Mas mesmo assim amar, porque o amor é isso, é inconveniente. Surge quando não é chamado, incomoda e demora pra passar. Talvez passe só daqui a dez anos, talvez não passe nunca. E mesmo assim, vai fazer você pensar a respeito, te tornar mais generoso. Fará com que você queira compartilhar a sua vida, ainda que em frangalhos. E vai começar a se perguntar como foi que tudo aquilo começou. Se foi no trabalho, a amizade, ou o companheirismo... Talvez fosse nada disso, talvez fossem os olhos dela, ou apenas magia – daquelas que ele nunca acreditara na existência.

Mas vai lhe enlouquecer, e fazer com que abra mão de coisas mais importantes. E preocupações surgirão tornando o seu sono mais leve. E vai ficar mais difícil de dizer adeus, e quando esse momento chegar, vai fazer com que você queira acabar com tudo isso, porque já sabe que não pode mais prosseguir. Mas vai doer demais, vai ter que se esforçar, e talvez, apenas talvez, você consiga se livrar... Mas vai sentir o peito apertar quando um casal feliz cruzar o seu caminho. Um casal jovem cambaleando pelas ruas de pedra de Nova Orleans.

E por fim, vai perceber que não era a respeito da jovem assassinada que seu coração sangrava naquela noite. Não era por sentir pena do rapaz que nunca pode confessar o que sentia – Sangrava por ele mesmo. Era o luto pela própria condição de querer alguém, sabendo que não deveria e jamais poderia tê-la.

–La douleur exquise – ele pensou.

A justificativa para cometer excessos e ser punido com dor de cabeça. Como se amar, assim em silêncio, já não fosse punição o suficiente.