We Both Changed escrita por MsNise


Capítulo 6
Sobrevivendo


Notas iniciais do capítulo

Mais um capítulo da jornada do Kyle!
Boa leitura :*



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— É arriscado — Ian murmurou derrotado. — Você sabe que nós podemos ser descobertos por isso, não sabe?

— Sei — desviei o olhar. — Mas eu tenho que tentar. Jodi precisa esquecer por alguns minutos todas essas tragédias.

Ian suspirou e ficou um bom tempo em silêncio segurando o volante.

— Eu nunca vou saber se vocês forem capturados…

— Se algum Buscador aparecer, não nos espere — disparei. — Vá para o oeste. Fuja. Se der certo nós nos encontramos.

Seus olhos se fecharam e sua cabeça tombou para trás.

— Você está pondo a vida dela em perigo também, Kyle.

— Eu posso protegê-la — a minha declaração foi um muxoxo. — Eu preciso tentar salvá-la dessa prisão de sofrimento que ela se meteu, Ian.

— Que nós a colocamos — ele me corrigiu. — Nós sabíamos pelo que ela teria que passar. Foi uma atitude egoísta.

Eu sabia com cada terminação nervosa o quanto ele estava certo. Sabia disso e desejava ardorosamente não saber que eu era um dos principais culpados pelo sofrimento dela. Talvez aquele desejo insano fosse uma maneira de me redimir…

— Agora já é tarde demais — sussurrei. — A única coisa que nos resta é… tentar salvá-la de alguma forma.

— Acha que ela vai aceitar?

Respirei fundo.

— Tentativas, Ian. Sempre temos que tentar.

Ficamos em silêncio dentro do carro até a figura de Jodi aparecer por entre as árvores. Era um motel de beira de estrada e a floresta se estendia em seus fundos. Estávamos com o carro camuflado nos fundos, longe de qualquer luz; precisávamos descansar. Apertei minhas mãos em punhos.

— Lembre-se: não nos espere.

— Não demorem — Ian recomendou, suas mandíbulas apertadas. — Sejam cuidadosos.

Virei-me rapidamente para ele.

— Eu te amo, tudo bem?

Ele suspirou e assentiu.

— Eu também, Kyle. Eu também.

Saí do carro em um salto antes de Jodi pensar em entrar nele. Ela ergueu vagamente a cabeça para me olhar e conferir o que eu estava fazendo. Avancei até ela e segurei em sua mão, puxando-a através do caminho de pedras.

— O que está fazendo, Kyle? — ela perguntou em uma voz desprovida de emoção.

— Tem um grampo de cabelo com você?

Ela hesitou.

— Qual porta quer que eu abra?

— Não se responde uma pergunta com outra pergunta — retruquei.

Ela bufou.

— Tenho.

— Ótimo.

— Agora responda à minha pergunta.

Olhei-a com o canto do olho.

— Você já vai descobrir.

Subimos a pequena escada até a porta que dava para o armário de equipamentos de limpeza do motel. Suspirei e dei espaço para Jodi tentar abrir a porta, que estava trancada. Ela pegou o grampo camuflado nos seus cabelos negros e começou o seu trabalho minucioso. Em menos de um minuto já estávamos dentro da pequena sala. Não ousamos acender a luz.

— Por que me trouxe até aqui? — ela sussurrou sabendo que poderíamos ser descobertos a qualquer momento.

Tentei procurá-la no escuro. Tinha uma pequena janela no lugar, mas estava noite e a janela não ajudava em nada. E as luzes que poderiam passar por baixo da porta que levava ao interior do hotel estavam apagadas, não sobrando nada que nos indicasse onde estávamos metidos. Mas não tinha importância. Eu tinha dado uma olhada geral antes de entrarmos e sabia que Jodi estava bem na direção de um espaço vazio na parede.

Segurei em seus cotovelos e a empurrei até imprensá-la contra a parede. Esbarramos em alguns objetos no meio do caminho, mas nada que nos atrapalhasse realmente. Tentei encontrar seu olhar na escuridão e não consegui.

— O que está fazendo? — ela rezingou.

Em vez de respondê-la, peguei seu rosto entre minhas mãos e comecei a beijá-la suavemente. Seus lábios estavam mais rudes do que eu me lembrava e custavam a ceder aos meus beijos. Suas duas mãos estavam espalmadas em meu peito e ela forçava contra mim. Não houve urgência ou explosão. Não houve nada.

— Não adianta — ela murmurou e deixou sua cabeça cair sobre o meu peito. — Eu não consigo, eu não posso me esquecer. É traição

Suspirei e a envolvi com os meus braços, segurando-a firmemente contra meu peito. Seu sofrimento me angustiava. Enterrei meu rosto em seus cabelos.

— Não é traição — resmunguei. — Seus pais odiariam te ver sofrer desse modo.

Ela fechou as mãos em punhos contra o meu peito e tentou normalizar a respiração descompassada.

— Eu não posso ser feliz às custas da vida deles — ela insistiu e tentou se afastar. Prendi-a em meus braços. — Não dá, Kyle. Eu não consigo. Desista.

Desistir? Aquilo soava como a coisa mais absurda da minha vida. Desistir dela, de Jodi, daquela que nunca tinha desistido de mim e que tinha transformado a minha vida? Não, era demais. Eu nunca desistiria dela. Jamais. Respirei fundo e segurei firmemente em seu rosto.

— Eu nunca vou desistir de você — minha voz foi praticamente um rosnado antes de eu atacar os seus lábios novamente, de maneira nada suave. Talvez fosse disso que ela precisasse. Demorou um pouco até ela segurar em minha camiseta com força e me puxar para mais perto de si. Ela correspondia aos meus beijos com intensidade, reduzindo-nos a chamas. Ela aceitou esquecer.

Suas pernas se enrolaram ao redor de minha cintura e senti suas mãos puxando os meus cabelos. Seus lábios estavam em todo o meu rosto, no meu pescoço, nos meus olhos. Eu também a beijava por inteira. Tentava incinerar tudo à nossa volta com aqueles beijos, com o nosso contato. Lágrimas pesadas lhe escorreram pela face e eu senti o seu gosto desagradável. Eu odiava o gosto das lágrimas de tristeza e de desespero.

Mas elas estavam lá. E era a primeira vez que eu a via chorar em meses depois da morte de seus pais. Ela estava fria e sempre distante; desprovida de emoções. Eu já tinha tentado consolá-la outras vezes, abraçando-a, beijando-a, tentando conversar assuntos banais e fazê-la esquecer que agora nós fugíamos diariamente sem a companhia de seus pais, mas nada funcionava.

Naquela noite, pela primeira vez, funcionou.

Nossas peles nuas ardiam em contato e, por alguns segundos, pensei que ela tivesse se esquecido totalmente de todas as tragédias. Até que eu senti o gosto de suas lágrimas na minha boca, até que ela afundou o rosto no meu pescoço e começou a ter espasmos de soluço. Ela não tinha esquecido, não totalmente. No entanto, ela tinha aceitado chorar em minha frente. Ela nunca chorava na minha frente.

— Eu… sinto… tanta saudade — ela sussurrou em meu pescoço. — Não sei se consigo aguentar.

— Shh — acariciei seus cabelos. — Eu sei, meu amor. Eu sei. Mas você consegue aguentar, tudo bem? Você consegue sim…

Ela tinha assumido. Minha Jodi, a minha forte Jodi, assumiu sua vulnerabilidade e aceitou ser consolada por mim. Foi o máximo que eu consegui pedir. Foi o máximo que eu consegui ter.

.

Eu costumava passar noites em claro vigiando enquanto Jodi e Ian dormiam. Ian também não tinha mais tanta disposição, sempre enclausurado em uma bolha de sofrimento e sem falar muito. Ele estava taciturno e, por vezes, eu conseguia ler o tormento em seus olhos azuis. Ele me encarava fixamente e o desespero misturado com a culpa de seu olhar me destruíam.

Nós três já não tínhamos nem forças para nos apoiarmos. Tudo o que tínhamos foi destruído naquele dia que os Buscadores nos tiraram Warren e Doris. Provavelmente… provavelmente estávamos acreditando demasiadamente na sorte. Estávamos envoltos em uma bolha de felicidade e pensávamos que nada de ruim pudesse nos acontecer, quase como se não fôssemos humanos em um mundo tomado por alienígenas. Apostamos na sorte e, infelizmente, perdemos.

Nada podia ser consertado.

— Kyle, se eu fosse capturada… acho que não lutaria — Jodi murmurou em um dia. Estávamos na floresta e ela encarava a fogueira que tínhamos feito. Foi alguns meses depois de eu ter conseguido fazê-la esquecer; meses que as coisas voltaram a ser terríveis e continuaram absolutamente iguais e dolorosas. Aquele dia de esquecimento e de confissão se apagou rapidamente de nossas cabeças; ele não tinha valido nada.

Sua expressão estava desligada e ela falava daquele assunto com uma frieza assustadora, como se tratasse de algo banal. Vi que Ian se sobressaltou ao ouvir aquilo, refletindo a minha reação.

— Mas… você não pode simplesmente desistir — sussurrei.

— Eu posso. Eu desistiria. Não tenho mais nada que me prenda a esse mundo e… ser desligada não me parece mais tão ruim.

Não tenho mais nada que me prenda a esse mundo. Eu não era o suficiente. Nunca tinha sido. Todas as minhas tentativas de salvá-la foram vãs e descartadas sem piedade… até a tentativa que eu tinha conseguido fazê-la chorar no meu ombro e desabafar, nem que fosse apenas meia dúzia de palavras, foi inútil. Mesmo que eu soubesse que ela tinha sido apagada de nossas memórias, cheguei a acreditar que tivesse sido um combustível. E mesmo que não tivesse sido… eu ainda estava lá! Ainda estava vivo e a apoiando! Eu deveria ser alguma espécie de âncora, algo que a prendesse e que a estabilizasse, mas eu não era nada. Eu não podia salvá-la. Ela… não achava que eu pudesse. Ela estava disposta a desistir de tudo.

— Mas você é uma sobrevivente, Jodi — Ian resmungou e também parecia magoado. Eu não tinha mais o que falar. Ela já tinha me destruído com aquelas palavras.

Não pensei que aquela dor pudesse passar. Não pensei que eu pudesse voltar a viver depois de ouvir aquelas palavras cruéis saindo da boca da mulher que eu amava. Não pensei que eu pudesse me recuperar.

Passei pelo que talvez tenha sido o pior momento de minha vida. Eu vivia por Jodi e depois daquela sentença esmagadora, parecia impossível continuar. Eu não consegui salvá-la nem por um segundo, era a frase que se repetia. E nunca mais vou poder continuar a viver.

Mas eu continuei; porque acordava, todos os dias. Eu sobrevivi; porque me levantava, todos os dias. E me recuperei; porque lutava, todos os dias. Consegui essas coisas com muito custo e ajuda. Talvez eu não tenha me curado totalmente, contudo eu me senti como se meu corpo estivesse vivo e, aos poucos, a minha mente também voltou à vida.

— As lembranças são insuportáveis, Ian — reclamei um dia. Estava quase sem ar ao pensar no quanto as coisas eram fáceis antes de Doris e Warren serem recuperados.

— Eu sei — ele murmurou.

— Eu não quero elas…

— Se deixe ser engolido pelas lembranças. Até que… elas não pareçam mais uma coisa vaga, distante e impossível, embora sejam. Engula-as, supere-as. Para assim você poder seguir em frente e usá-las apenas para sorrir. Use-as como combustível de sua jornada, mas não pensando em tê-las novamente. Pensando que você quer algo melhor do que elas. Algo real. Algo vivo. Engula-as até que elas não te afetem mais.

Aquelas palavras foram gravadas a ferro em minha mente fechada. Absorvi-as e apliquei-as em minha vida. E repassei-as, mais tarde, para quem precisasse delas. Para quem se visse na mesma situação que eu, destruído, afogado pela nostalgia, preso em um passado que não existia mais.

— Eu não consegui salvá-la — lamentei.

— Você tentou — a voz de Ian tinha um ar melancólico. — Sinto muito. Acho que ninguém poderia fazê-lo. Ela não é a luz, sabe? Ela não pode te salvar em tempos de guerra, Kyle. Você sim. Você pode se salvar e tentar viver por você. Se ela pensa que a vida está perdida… então que continue assim. Mas não vai nos carregar junto para esse mar de lama. Continue vivendo apesar dela, tudo bem? Ela não pode te salvar também, nunca podê.

— Ela me salvou por um tempo, Ian.

— Foi uma ilusão — ele insistiu. — Você se viu tão desesperançado que pensou que fosse ela o teu bote salva-vidas. Ela foi a sua companhia no bote. O único bote salva-vidas que te salvou foi feito pelas tuas mãos. Porque você encontrou algo em que acreditar. Você encontrou a vida. Você encontrou um motivo para continuar lutando.

— Por Jodi.

— Por continuar sendo humano. Essa é a sua luta. E você tem que vencê-la.

Como venceria uma luta que eu nem mesmo sabia que lutava?

Nós tentamos com mais afinco depois de um tempo. Mesmo vivendo perigosamente, pulando de esconderijo em esconderijo e nos arriscando em florestas, nós tentávamos conversar e encontrar algum resquício de vida onde só existia morte e destruição. Não conseguimos ter o que tínhamos antes de nossa vida virar de cabeça para baixo, mas fomos um pouco mais longe do que poderíamos imaginar nos primeiros meses.

Jodi se juntou ao nosso ritmo de sobrevivência. Deve ter sido insuportável ser deixada de lado com sua dor e ver que Ian e eu continuávamos vivendo. A partir do momento que Ian e eu começamos a lutar para sobreviver dia após dia, ela também começou a tentar com mais vontade. E as coisas ficaram melhores. Mais suportáveis, pelo menos.

Com o tempo, a minha esperança foi se renovando. Passei a acreditar que, se continuássemos naquele ritmo, talvez conseguíssemos chegar a algum lugar. Jodi não entendia, mas começava a aceitar que vivíamos em um mundo pós-apocalíptico e que algumas mortes eram consequências de ter sobrevivido. Não houve muitos sorrisos, mas eles aconteciam. E quando aconteciam… Deus, por alguns segundos parecia que o mundo tinha voltado ao normal.

O mundo não voltaria ao normal. Não como antes. Poderia voltar cicatrizado, com feridas ainda abertas e com rastros de destruição. Mas não voltaria. Todos sabíamos que era um desejo impossível de ser realizado.

No entanto, havia uma chama discreta se movendo dentro de nós. Uma chama de força de vontade. Não poderíamos voltar no tempo e consertar os erros e descuidos, porém nós podíamos seguir em frente e reconstruir o mundo. Ou construir um novo mundo, melhor, só de vencedores e sobreviventes.

Nós conseguiríamos.

Ou teríamos conseguido, se o pior não tivesse acontecido.

E então eu tinha voltado à estaca zero mais uma vez.


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Notas finais do capítulo

E entãããão? Espero que tenham gostado de ver como que foi depois da perda do Warren e da Doris. Digam-me suas opiniões!
Até o próximo capítulo :*