inCOMPLETO escrita por Lorenzo


Capítulo 9
Calafrio




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Seg. 04.06.2012

Na madrugada de ontem pra hoje senti fortes dores fantasmas. Fazia certo tempo que isso não acontecia, e é horrível. Como uma parte de mim que não sinto pode doer? E como essa mesma parte inútil pode doer tanto? Tia Jaque tentou conversar comigo enquanto eu passava por aquilo, mas não resolve tanto. Nem analgésicos funcionam. Com toda certeza ela ficou até tarde comigo, mesmo depois de eu ter dormido.

Hoje já é o dia de ir para o encontro. Acordei um pouco cedo para me arrumar mas tudo o que fiz foi esperar tia Jaque se atrasar mais que o costumeiro. Ela chegou com uma aparência um pouco abatida, e isso me preocupou. Não havia sinal de sangue em suas roupas ou mãos, e isso de certa forma me tranquilizou um pouco.

– Tia Jaque, preciso de uma coisa. – ela havia acabado de entrar em sua caminhonete adaptada.

– Diga, querido. – ele me encara com seu sorriso de sempre. Talvez pela manhã ela apenas estivesse cansada por ter dormido mal ou por ter visto algum filme até tarde.

– A senhora tem como pegar meu diário? Aquele que a senhora me deu? – me sinto um pouco culpado por ter lembrado dele só agora.

Enquanto folheio o caderno na caminhonete encontro o objeto de trabalho de Juan. Havia um desenho – não um dos mais bonitos que já vi, mas definitivamente um dos mais significativos – ainda não terminado. No desenho estava um menino numa cadeira de rodas, que identifiquei como Juan por motivos óbvios; um homem alto e uma menininha de cabelos muito cheios e ainda não terminada. Decido então entrega-lo de volta a Juan para que ele o termine.

. . .

– Hoje faremos uma dinâmica de grupo. – disse Amélia, a coordenadora.

Juan me cutucou e disse mais de perto:

– Se ela pedir para que falemos de nós mesmos eu juro que saio daqui correndo. – assim que termina o que ia falar ele me encara com ar de risada, e então nós dois começamos a rir bem alto. Todos nos encaram.

– Gostaria de começar, Juan? – a voz de Amélia soa um tanto acusadora, mas não a repreenderia, sei que extrapolamos.

– Eu não. – ele diz com sua tradicional segurança. – Mas o Quinzinho aqui não para de me perguntar se pode ser o primeiro. – ele me cutuca.

Eu o odeio por alguns segundos mas logo me esqueço desse ódio superficial quando vejo Emily rindo do seu cantinho. Ela conhece a Juan melhor que eu, e sei que ela já deveria esperar por isso. Ela me dá um breve aceno e sorri enquanto tira uma mecha de cabelo dos olhos.

– Acho oportuno – a coordenadora diz -, você já tem algo em mente Joaquin? – ela confere algo em sua prancheta antes de pronunciar meu nome.

– Eu... – Emily e Juan se encaram, ambos segurando o riso e eu fico completamente vermelho e então decido falar algo. – Eu me chamo Joaquim. – e paro por aí. Não pronuncio sequer uma palavra. Encaro cada um individualmente e não falo sequer a minha idade. “Eu sou Joaquim.” Haveria algo e mais estúpido a ser dito?

– Bem, Joaquim... – ela parece um tanto encabulada – Eu poderia te fazer algumas perguntas?

Confirmo com um meneio breve de cabeça e em seguida desvio meu olhar para o meu braço, onde Juan acabou de colocar sua mão para me tranquilizar e num movimento mudo de lábios ele apenas diz algo que entendo como “Fique tranquilo”.

– Quantos anos você tem, Joaquim? – Eu já havia previsto isso. Acho que é o que as pessoas normalmente perguntam.

– Fiz dezoito recentemente.

– A quantos anos você se encontra limitado?

“Limitado...” – penso. Até que é um bom sinônimo para incapaz, atrofiado, coxo, inútil... Em geral as pessoas buscam palavras mais amenas para a minha condição, mas nunca encontrei uma tão eficiente em esconder tal preconceito. “Limitado.” Isso é o que eu sou.

– A alguns anos. – digo esboçando um pequeno e sarcástico sorriso com respeito a minha resposta nada conclusiva.

– Muitos? – ela pausa um tanto confusa – Quantos?

– Dez. Fazem dez anos.

– Algum hobby?

Penso em brincar e falar algo como futebol ou vôlei, porém acho que a brincadeira afetaria quase todos aqui e a última coisa que quero é que me odeiem.

– Eu gosto de ler. Não que me reste muita coisa para fazer além disso. – a seguir completo: - Ah! Também gosto de ajudar minha tia com as frutas no quintal, a gente coloca tudo em sacolas e eu carrego... Digo, fica tudo na Mandie mas eu acho que isso já é meio que ajudar em algo.

– Mandie?- ela repete com certo interesse. Parece que o simples fato de eu ter contado algum detalhe da minha vida inspirou confiança e a fez estar assim, mais alegre.

– Sim, a Mandie, a minha cadeira de rodas.

– Ah! – ela e alguns dos que estão na sala riem. Estranhamente todos prestam atenção em mim. Será que eu deveria me sentir envergonhado por ser o foco da atenção ou já estou calejado dessa atenção excessiva que sempre recebo? – Claro, a cadeira de rodas! É o nome de alguma conhecida? Um amor platônico ou algo assim? – ela dá uma piscadela.

Juan sorri pelo canto do rosto em direção a Emily.

– Não! – digo com firmeza – Olhe só pra ela! Ela tem uma cara terrível de Mandie!

. . .

A conversa acabou a alguns minutos. O mais incrível é que tudo parece fluir tão naturalmente que cheguei a me esquecer que estava num grupo de apoio.

Estou conversando com Juan e Milena, uma menina gordinha que não tem um dos braços por conta de um acidente doméstico enquanto era pequena. Embora eu não me sinta muito confortável com ela a presença de Juan me sustenta.

– Mi! – ele diz de supetão – Precisamos encontrar a minha irmã, você nos dá licença?

Ela usa sua única mão e gesticula que sim e em seguida me pergunta se eu gostaria de fazer algo depois da reunião. Eu agradeço e digo que não posso e em seguida sigo Juan com minha super velocidade.

– Ei! – grito.

Juan para e me espera e vamos juntos procurar Emily, até que paramos na sombra de uma árvore e descansamos um pouco.

– Olha! – digo mexendo na parte de baixo da Mandie e pegando meu diário – Eu trouxe pra você terminar seu desenho.

Juan me olha com certa desconfiança enquanto abro o diário na página certa e o entrego.

Ele observa o desenho por alguns segundos e me entrega o caderno.

– Eu já terminei. – ele diz com o olhar frio olhando fundo nos meus olhos. Um calafrio percorre meu corpo e por um instante acredito ter sentido até minhas pernas.

No desenho se vê um homem inteiro, um menino de cabelos cheios numa cadeira de rodas – que deduzo ser Juan; uma menina com uma perna faltando e a silhueta de uma mulher.


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Notas finais do capítulo

Eu gostaria de saber a opinião de vocês sobre o capítulo e sobre uma segunda questão: O que vocês acham da ideia de eu criar uma fã page para "inCOMPLETO"? Vocês curtiriam a ideia?



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