A Dama das Relíquias escrita por Yennefer de V


Capítulo 1
A Dama das Relíquias (capítulo único)




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Era um homem tacanho de personalidade submissa. Agarrava-se a uma pedra com orgulho e brilho extasiado no olhar. A moça ao seu lado não parecia tão feliz ou mesmo satisfeita.

— Fique. – pediu Cadmo.

— Não. – sussurrou ela de volta. – Quanto tempo faz? Eu preciso deixar você. Você precisa me deixar. Já chega de lamentações pelo meu cadáver.

Cadmo sustentou seu olhar deprimido e azul tempestuoso. Ela pedia a mesma coisa – mas a decisão não era dela. A pedra trazia sua amada de volta à vida. Foi seu último esforço como um dito “gênio” para dar luz ao rastejo de uma existência sombria.

— Pois bem. – crocitou a mulher de negro. – Se não me deixa largar-te, eu mesma o faço.

E saiu pela janela, ganhando liberdade. Cadmo não sabia se ela podia ir muito longe. No entanto, se preocupou.

Ela continuou partindo durante os dias que se seguiram. Era sempre obrigada a voltar.

***

Quando ela adentrou a taberna o burburinho se tornou um silencio constrangedor. Os homens viraram as cabeças. As conversas se tornaram muxoxos indignados (e até surpresos). Um deles cuspiu no chão como se demarcasse o território puramente masculino.

A única diferença da pálida mulher para as moradoras locais era sua audácia. Na penumbra das velas parecia mais um fantasma que não foi devidamente aceita no céu ou inferno. Sua presença reluzia como espectro andando por Terra. Tinha os cabelos ruivos e longos que dançavam às costas. Os olhos eram azuis cinzentos como se refletissem a frieza de um poço que levasse diretamente aos braços da Morte. O rosto era atarracado de moça cruel. Usava um véu negro que contrastavam indecentemente com seu rosto esbranquiçado. O vestido também era negro como um luto permanente por sua própria alma.

Sentou-se, solitária, num canto inebriado pela falta de luz e companhia. Sua sombra se tornou um recorte sinistro no local de lazer do centro urbano.

A noite aguardava mais surpresas.

Um homem adentrou o recinto, tomado por passos firmes e um sorriso de triunfo.

— Antíoco! – chamou um que ocupava uma mesa cheia de rapazotes – Sente-se conosco!

Antíoco não parecia a fim de apreciar as bebidas ou conversas da taberna. Tinha um delírio obsessivo no olhar. No entanto, sentou-se com o colega, apertando o bolso do casaco com demasiado apreço.

Antíoco desviou a atenção dos homens da moça recém-chegada. E a madrugada se alongou, enquanto Antíoco e os homens brindavam às ilusões, conquistas, se gabavam e bebiam. A moça pouco se moveu de seu canto escuro.

Dado momento, Antíoco se levantou. O brilho das velas pareceram se dirigir a ele como se fossem holofotes. Ele era o espetáculo mais esperado da noite. Antíoco tirou do bolso uma varinha comprida e de aspecto feroz. Ele a estendeu no alto de sua cabeça, totalmente embriagado, dizendo:

— A varinha de Sabugueiro contém o sangue daquele que me devia! Lembram-se, caros, daquele que ousou levantar a voz em uma discussão contra mim?! Pois bem, agora o corpo dele jaz sem vida, por conta de minha poderosa varinha, minha invenção... e em minha posse, não há homem neste mundo mortal que possa me vencer!

Alguns colegas de sua mesa ficaram pálidos. Outros deram risadinhas de deboche. Antíoco fitou um a um, analisando o medo, a surpresa e o descaso em seus rostos. Por fim, satisfeito com sua festa, ele saiu sem pagar a conta, convencido de que o mundo o pertencia e não devia nada (nem dinheiro, temor ou respeito) a ninguém.

A moça deslizou taberna afora pouco depois dele. Depois disso, a madrugada se tornou comum, normal e tediosa, tão ordinária quanto qualquer outra em Godric’s Hollow.

***

— Você não devia ter voltado.

A moça adentrou a gélida casa pela janela. Sua presença era sonolenta para o homem à espreita. A casinha era quase mal assombrada. Mais pelo abandono dos habitantes locais que pelo dono propriamente dito.

Era um homem com a barba por fazer. Os dentes de trás estavam cariados. Os cabelos cacheados e longos eram castanhos (beirando ao loiro). Tinha o nariz avantajado. Trajava vestes tão velhas e maltrapidas que podia ser tomado por um pedinte. Os dedos eram frios e longos, como se seu destino fosse usa-las para ganhar o sustento (o que não era mentira). Havia rugas de expressão precoces em sua testa. Era um homem de estatura mediada, sempre carrancudo, com os ombros encurvados.

Ela entrou zunindo pela janela como se voasse. Sentou-se na cadeira do único cômodo. O chão estava tomado por pergaminhos e poeira. Havia penas jogadas para lá e para cá. Diversas anotações. Algum instrumento musical ao canto (coisa mais valiosa da casa escura). Era úmido e precário.

— Ciara. Você tem cheiro de morte. – resmungou o homem. Estava agachado no chão penetrando o olhar em um pergaminho, como se esperasse que ele começasse a se preencher de palavras sozinho. As unhas eram pretas. Mordeu um pão amanhecido e mastigou de boca aberta.

Começou a se sentir muito fatigado. Um baque surdo tomou seus ouvidos. Ele pousou os joelhos no chão.

— Quero ir para casa. – Ciara sussurrou. Imediatamente o ar ficou mais quente. Ficou mais convidativo, para um mundo além do compreendido. Embora Beedle soubesse que era uma viagem sem retorno ao mundo dos vivos, ainda se sentia tentado.

— Vá para junto de Cadmo. – ele grunhiu.

— Não é meu lugar. – sussurrou Ciara tomada por tristeza. Os olhos chorariam (se houvesse lágrimas). O corpo se contraiu em uma desolação involuntária, como se já tivesse pedido aquilo diversas vezes.

— Não posso ajuda-la. – resmungou Beedle. – Mal posso me ajudar. Olhe para mim! Sou um pobre homem que compunha, atraia damas, era venerado... e hoje em dia as cantigas nada são ... Não há mais inspiração...

Ciara suspirou.

— Você morrerá em breve se continuar definhando. Se continuar cantando para as paredes nesta solidão sem fim.

— E a morte é ruim? – perguntou ele em retórica. – Para um homem como eu que tenho um fantasma como companhia!

Os olhos de Ciara brilharam em tristeza.

— Não sou um fantasma.

— Que seja, um espectro trazido de volta por uma pedra, santo Deus ... quanta baboseira.

— Posso te ajudar. – Ciara interrompeu de repente. - Do que você precisa?

Beedle deu uma gargalhada tão alta que o casebre quase balançou.

— Minha doce Ciara ... eu quero ser lembrado. Eu quero ser respeitado e seguido. Em que uma cópia de vida como você pode me ajudar?

— Cadmo não é o único dos Peverell. O mais velho, Antíoco, terminou uma varinha poderosa esta noite. Parece que, à exemplo do irmão, tem genialidade, embora seja arrogante demais. Espalhou a noticia no vilarejo. Eu ouvi na taberna.

— Uma varinha? – sussurrou Beddle com ganancia na voz.

Ele próprio não possuía uma varinha – vendera a sua para pagar velhas dividas. Era difícil um bruxo ter uma varinha em punhos – só os mais nobres. Em geral, eram obrigados a viver como trouxas, a não ser que ganhassem em jogos de aposta ou mesmo roubassem o objeto de outro bruxo. Em alguns casos, até matavam para consegui-las.

— A mais poderosa. Uma varinha de Sabugueiro. Ele matou um rapaz com quem mantinha desavença. É um assassino.

Beedle pareceu ter ganhado adrenalina extra no corpo. Ficou de pé, rodeando o cômodo, falando consigo mesmo. Os olhos reluziam em ambição. Os pés descalços não se incomodavam com o passeio pelo chão sujo.

Ciara observou pacientemente.

— Minha doce Ciara ... obrigado. – por fim, Beedle se acalmou.

Os olhos acinzentados da moça faiscaram com gentileza para o homem. Ele coçava a barba só por hábito.

— Se a morte não a tivesse levado ... – começou Beedle. – Seria apenas minha, Ciara. Quem me dera a tivesse conhecido em vida.

Ciara abaixou o olhar para o chão.

— Se não fosse por Cadmo eu também seria esquecida. Nunca fui nobre em vida.

— Você faz parte da realeza, Ciara.

***

 

Ele roncava. O ar a sua volta era tragado com dificuldade e soprado de volta com um barulho de porco faminto. Estava jogado no chão, deitado em posição torta. Um braço estava em cima do peito e o outro jogado ao chão. As pernas estavam abertas, como se tivesse caído de tanto beber. Não ouviu a janela do quarto se abrir e nem o vento entrar como intruso pela passagem.

Antíoco havia regurgitado um pouco de sua bebedeira, de modo que cheirava podre. A veste era tomada por uma mancha amarela e seca. Beedle passou as pernas pela janela de modo nada gracioso. Quando parou ao lado do corpo do bêbado Antíoco, não foi percebido. O bebum mal respirava de tão embriagado. Beedle tapou o nariz pelo cheiro de vomito. Na mão estava uma adaga velha e nunca afiada. Ele a colocou no pescoço do homem adormecido, as mãos tremiam por antecipação do crime. Olhou ao redor com urgência, todavia não foi preciso procurar muito. A Varinha das Varinhas estava na mão de Antíoco, a mão que levava ao peito, como se quisesse proteger sua relíquia.

Beedle deu um sorriso para a escuridão. A adaga não fez o serviço de imediato. Ele serrou a garganta de Antíoco e um fio de sangue vermelho vivo escorreu. O homem deu um grito agoniante que saiu pela janela e tomou o quarto. Beedle já estava preparado. Com uma força descomunal, empurrou o mais velho dos Peverell para o chão, uma das mãos ainda na adaga. Ele serrou a garganta do homem duas, três vezes. Antíoco se debateu alucinadamente, enquanto o sangue escorria por seu pescoço cada vez em maior quantidade. Seus soluços e gritos cortados pela brutalidade de Beedle ficaram cada vez mais intensos e apavorantes – Beedle o empurrando contra o chão e rasgando a garganta, alcançando a jugular.

Por fim, Antíoco ficou imóvel. Não sem antes ter contrações involuntárias por todo o corpo, a boca se afogando no próprio sangue, o olhar de puro estarrecimento pelo assassinato brutal.

Beedle estava sujo com o sangue do homem, a adaga firme em uma das mãos e a varinha de Sabugueiro vitoriosamente na outra. Ele tremia pelo ato, pelo feito maligno de um homem covarde que há muito tempo desistira da vida, que finalmente arrumou novo motivo de orgulho.

***

— Ciara? – chamou no casebre.

Ainda estava com a mente girando pelo prazer de possuir nova arma. Repassava alucinadamente seus próximos passos. Suas próximas metas. Todavia, não abandonaria o seu amor, a moça cuja existência era quase nula, mas que entendia, por ter se tornado quase espectro também. Não a deixaria para trás.

— Ciara? – chamou novamente.

Amanhecia em Godric’s Hollow. O céu era uma mistura de laranja com um brilho amarelado e sufocante. As nuvens traçavam desenhos no horizonte. Era como se a vida transpirasse novas cantigas e histórias para o Bardo apenas pelo seu deslize de homem pacato. Ele sentia a vida pulsar no ritmo do coração. A inspiração fluía à medida que a adrenalina o perpassava. Nada mais era impossível depois do assassinato. Se tornar famoso, se tornar visível. Torna-se novamente Beddle, o bardo, consagrado.

Ela estava esperando no canto. Chorava copiosamente. Tremia. A veste negra se desfazia aos poucos com os raios solares, como se fosse uma vampira prestes a se tornar pó.

— Eu não posso ficar. – avisou Ciara.

— Vou partir. Virá comigo? – perguntou Beedle, cheio de ansiedade.

— Você sabe que meu lugar não é aqui.

Beedle ficou estático. Depois do crime, não queria perde-la. Não queria perder mais nada em sua vida de pouco. Ficou amedrontado com a perspectiva que ela se fosse.

— Ciara ... tomei a varinha. Tomo a pedra, também, se necessário. Parta comigo.

— Você não entende? Eu não posso ficar! – ela gemeu em um fio de voz. – Nem com Cadmo, nem contigo...

Beedle apertou a varinha, seu prêmio, nas mãos suadas. A mente não formulava um bom argumento para convencê-la de ficar em vida.

— Eu só não quero ser esquecida. – murmurou Ciara.

Beedle deu passos até ela. Deu um beijo suplicante em seus lábios gelados. Seus olhos se encontraram. Ele sentiu a conhecida sensação de sonolência, como se a morte o chamasse para leva-lo a um lar esquecido. Ele apertou mais a varinha nas mãos para se prender à vida terrena. Sua boca passou por Ciara. Ela soluçou.

— Ninguém vai esquecê-la, querida. Ninguém.

Com essa última promessa, Ciara saiu pela janela, como se flutuasse, sem olhar para trás.

***

Beedle trabalhou febrilmente por semanas em um mar de pergaminhos. Narrava histórias infantis e compunha cantigas. A varinha repousava no chão por falta de mesa.

Ele não deixava de admira-la. E quanto mais Beedle se lembrava da noite do assassinato, mais se deprimia ao lembrar-se de Ciara, e que ela era a responsável por seu prospero futuro. Seu único pedido fora para não ser esquecida. E no intimo de Beedle era o que ele sempre desejara também.

A dama das Relíquias, a dama com cheiro de morte, a dama querida que lhe fora uma salvação ... era mais importante que a Varinha, a Pedra e mesmo a Capa sobre a qual os moradores no vilarejo falavam que, o terceiro irmão, Ignoto, havia fabricado.

Infelizmente o caçula dos Peverell sumiu no ar após os boatos se intensificarem. Era como se tivesse inventado uma Capa da Invisibilidade muito poderosa e capaz de assegura-lo uma vida sem perseguição. Exatamente o oposto do desejo de Beedle e de Ciara. Como se fossem apenas um.

Ele vira o efeito da Pedra (a qual chamava de Pedra da Ressurreição em seu conto) e da Capa da Invisibilidade. A única Relíquia dos Peverell que lhe interessava estava em sua posse, a varinha.

Ciara lhe deixou. E Beedle trabalhou uma última vez, para contar a história dela. Para que soubessem através de suas palavras que ela existiu. E ele as chamou de Relíquias da Morte, porque sua Ciara cheirava morte, convidava para morte, estava morta o tempo todo em que ele a amou... Era a própria Dama das Relíquias.

A própria Dama de Beedle.

Ela desapareceu quando Cadmo se suicidou e nunca mais girou a Pedra da Ressurreição para que ela voltasse. Beedle realizou seu último desejo.

Libertou-a, para depois, por fim, torna-la inesquecível.

Depois disso, partiu de Godric’s Hollow com a Varinha das Varinhas e nunca mais foi visto.



fim

 


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Notas finais do capítulo

PS: Pessoal, vou excluir minha conta no Nyah! em breve. Quem ainda quiser manter contato e tiver twitter adicionar lá? @Ariana_D__