Quem matou Afonso Dallas? escrita por azoo


Capítulo 15
Episódio XIV - Suicídio Prateado


Notas iniciais do capítulo

Uma reviravolta. Revelações.



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I

04/01/2016, 08h50min.

E IREMOS SIMPLESMENTE ENTERRAR outro corpo? — indagou Alice, exasperada. Estava inconformada com a decisão de Valquíria. — A gente precisa descobrir quem fez isso.

Eduardo afagou o brinco que usava.

— Eu posso entender um pouco sobre esse tipo de coisa, mas não iremos ajudar em nada. O ideal era que esperássemos a perícia. Deixar o corpo no lugar. Caso enterre, pode comprometer o trabalho deles. — Ele bufou. — Estão felizes demais com a herança que nem se importam com a identidade do assassino.

— Meu pai merece um final digno — disse Marcelo. — Ele não iria querer ficar exposto desse jeito. Quando os peritos chegarem, e não sabemos que dia isso será, eles vão resolver tudo.

— Nós não temos um detetive pra resolver tudo. As coisas estão nebulosas por aqui — observou Adriana. — O que podemos fazer, como disse o Marcelo, é deixá-los com alguma dignidade.

— Assim como fizemos com meu marido — completou Lígia, chorando e secando as lágrimas num lenço cheio de catarro. Rodrigo a assistia, segurando-a pelos ombros. — Nós não encontramos quem fez aquilo com ele.

— Pode ter sido a mesma pessoa — supôs Robson —, a pessoa que matou ele e matou o Afonso.

— É um bom raciocínio — inferiu Melissa. — Matar o detetive do lugar pra deixar o caminho livre e cometer o assassinato principal.

— Então ficamos assim: — definiu Otávio, bufando — estamos presos com um assassino e teremos de esperar até o almoço de hoje, quando aqueles malditos vendedores de sofá vierem pra cá. Que ótimo ter uma mansão isolada de tudo.

Era conveniente essa localidade, percebeu Alice.

— Pensar assim é muito mórbido — refletiu Rodrigo. — Foi mesmo um de nós quem fez isso? Foi alguém dessa casa que matou meu pai? — Ele havia elevado o tom de voz. Alice cutucou-o. Ele pareceu voltar em si.

Quando Rodrigo saiu, Melissa, que adorava fazer acusações, soltou:

— Pode ter sido muito bem ele. Ninguém nunca suspeitaria do próprio filho.

— Sua vadia! — exclamou Lígia. — Não ouse insinuar que meu filho fez isso.

Juliana, que passara a nutrir um sentimento de repulsão por Melissa, ficou do lado da falsa religiosa, a mesma que segurava um terço somente por fachada.

— Você — ela apontou para a moça de cabelos curtíssimos — acusa todo mundo. Até parece que está tentando tirar a culpa de si mesma.

— Não acredito que você disse isso — defendeu-se ela.

Valquíria também não era fã da irmã.

— Isso faz sentido. Pode ter sido você!

— Até você, irmã?! Você está contra mim? Você acha que eu mataria meu próprio irmão?

— Mas, se for assim — disse Mirian, que segurava a mão da filha —, você, Valquíria, também está tentando colocar a culpa em outra pessoa. Até a Juliana.

— Essa linha de raciocínio não procede — disse Eduardo. — Ninguém pode julgar os outros por culpá-lo da morte de alguém, sendo que faz o mesmo. Será um ciclo vicioso.

Adriana, muito calma, bateu a mão na mesa.

— A verdade, minha gente, a verdade que vocês não querem admitir, é que todos tinham motivo. Não adianta ficar jogando a culpa nos outros. Todos aqui poderiam ter matado o Gabriel e Afonso. Todo mundo aqui é suspeito.

Aquilo pareceu encerrar as acusações.

Jorge, num canto, muito quieto, apertando forte a mão da neta e da filha, sabia do que viria. Estava quase na hora de fazer o que precisava para que sua Mirian e Gabriela tivessem o destino que merecia. Continuar naquela mansão como subordinadas não era a vida que ele, Jorge, desejava para sua família. Mas, para isso, ele precisava ser forte. Precisava se lembrar do que Afonso prometera quando ainda era vivo. Ele havia dito que arrumaria tudo antes de morrer. Afinal, aquilo dependia da morte do Dallas. Afonso dissera que tudo estava resolvido, que o advogado dele, Rafael, cuidaria de tudo. Era o mesmo homem que o ajudara a arquitetar e aparar todas arestas daquela maluquice que Jorge estava metido. Contudo, as motivações do barrigudo eram outras; não eram caprichos de um velho senil que queria testar a família ao invés de deixá-la unida naquele momento difícil. Afonso queria, sim, deixar um legado, mas era totalmente contrário — em partes — com o que Jorge aspirava.

— Nós vamos enterrar o papai — finalizou Melissa. — Robson e Marcelo, cavem mais uma cova, por favor.

— Cavem duas covas — afirmou Jorge, nada reticente. Estava convicto do que iria fazer. Ele já estava com a faca de cabo azul na mão.

Alguém naquela cozinha fitou o objeto e sentiu um frio na barriga. Não podem descobrir que eu estive lá e...

— Como assim, vovô? — perguntou Gabriela, baixinho, como era de seu feitio.

O grandalhão afastou carinhosamente a garota e se encaminhou para o centro da sala. Tudo ocorreu numa fração de segundos, mas parecia estar em câmera lenta.

— Olhem em minha gaveta — avisou Jorge para todos. E acabou que isso retirou a atenção, nos pouquíssimos segundos que se seguiriam, do que viria a acontecer. — Eu amo vocês — disse ele para Mirian e Gabriela.

A lâmina brilhante da faca, um prateado vívido e fúlgido, transpassou a garganta do homem enquanto ele ainda fazia sua declaração de amor para a família. Com o metal preso em sua jugular, sangue espirrando e borrifando tudo em volta dele, Jorge engasgou nas próprias palavras com o sangue, que vertia de um talho enorme localizado em seu pescoço. Filetes grossos e púrpuros escorriam pela pele esculpida em bronze, tornando-a muito mais parecida com rubi.

Quando o homem caiu, primeiro se prostrando de joelhos no líquido carmesim, a faca continuou fincada nele. Ela havia sido colocada com força, e resultara numa morte quase imediata. A arma, que tinha o cabo azul, era uma mácula vermelha e, metaforicamente, negra, representando o véu da morte.

Enquanto isso acontecera, em rápidos segundos, ninguém tivera o reflexo de ir ajudá-lo quando o homem já estava com a faca em seu pescoço, suicidando-se — embora, mesmo se o fizessem, o homem já estaria morto de qualquer forma. Haviam assistido àquilo como se fosse um espetáculo macabro, mas apenas uma coisa sem nenhuma verossimilhança, uma ficção em filme ou em novelas sensacionalistas. Vários mantinham a mão sobre a boca, outros desviavam o olhar da cena tétrica — um homem caído na poça de seu próprio sangue, a cabeça virada de lado, de perfil, por conta da posição da faca — e tinha aqueles que pareciam incrédulos, como se aquilo não passasse de uma brincadeira da imaginação corrompida pela tensão da Mansão Dallas.

Gabriela e Mirian, em sincronia, foram a primeira a gritar. Em seguida, correram até o homem ensanguentado.

— Vovô! — exclamou Gabriela, com certo receio em triscá-lo. Estava ajoelhada ao lado dele, sujando-se do líquido viscoso. — Vovô! Por que você fez isso?

Mirian chorava desconsoladamente.

— Pai, fala comigo! Pai, por favor. PAAAI!

Mirian tivera a coragem de segurar o rosto do homem com as duas mãos. Havia tentado retirar a faca, mas não conseguira — talvez até conseguisse, mas estava fraca e abalada demais para tentar fazer isso. Ela chorava, seu vestido pingando sangue, os cabelos enrolados num emaranhado nojento de suor e sangue. Colocou a cabeça do pai em seu colo. Otávio percebeu, de sua posição, como era estranho aquela cena: a faca fincada na garganta do homem, totalmente ereta, quase pulsando. É quase como um pau duro, pensou ele, bem indiferente à morte de um empregado.

— Por que ele fez isso? — repetiu Gabriela, desconsolada.

Melissa apontou para o quarto do homem.

— Ele pediu para irmos até a gaveta dele — sussurrou ela. — Talvez seja a carta do suicídio dele.

— Eu vou buscar — afirmou Lígia, querendo sair imediatamente daquele cômodo.

Ela palmilhou até o quarto do falecido empregado. Adentrou o recinto, foi até o criado-mudo e encontrou um envelope branco. Pegou-o e retornou para a sala.

— Acho que é isso aqui. Alguém quer ler?

Ninguém levantou a mão. Mirian já havia se levantado. O corpo do homem estava sendo carregado para fora por Marcelo, Robson e Rodrigo. Virgínia havia saído para pegar um pano para limpar aquela sujeira. Já havia limpado o quarto de Afonso e estava se acostumando em estar na presença do vermelho.

A voz de Alice viajou o cômodo com uma objetividade implacável.

— Eu leio, Lígia.

Gabriela conseguiu proferir algumas palavras débeis, sussurrantes:

— Acho que quem eu e minha mãe tínhamos de ler isso em particular.

— Eu até concordaria, mas acho que não é somente uma carta de suicídio — esclareceu ela. — Acho que isso é muito mais do que se imagina.

Alice pegou o envelope e o abriu. Havia uma carta branca, com o relevo das letras.

* uma cartinha brincalhona *

“Se estão lendo isso, eu, Jorge, já estou morto. Talvez não concordem com tudo o que aconteceu, o que eu devo ter feito — não sei se teria coragem para isso —, em frente a todos vocês. Sei que isso é macabro demais, louco demais. Não queria, em momento algum, ter de fazer isso. Mas as circunstâncias exigiram. Eu precisava fazer isso. O motivo não diz respeito a vocês, a família Dallas, mas à minha.

Afonso Dallas, o patriarca dessa família, como bem sabe vocês, era cheio de manias. Já utilizei o verbo no passado, pois, se estão lendo isso, além da minha morte, a dele deve ter acontecido, como era parte de seu plano. O homem era meio maluco. Adorava fazer brincadeirinhas que levavam às pessoas ao limite, como os filhos e os empregados já sabiam. Ele me dissera que o que fizera aqui não fora um capricho, mas eu não sei se acredito nisso. Segundo ele, o motivo de tudo isso fora para ver o limite a que vocês chegariam para receber a herança. Ele me contara que não queria verdadeiramente que as coisas chegassem a esse ponto, mas, infelizmente, chegaram.

O plano dele sempre fora esse: convidou todos vocês para passarem um tempo com ele, apenas para juntá-los. Em seguida, ameaçou a colocar a herança numa instituição de caridade, mas, claro, como era do feitio do meu velho amigo, deixou uma saída para conseguir que a herança fosse compartilhada. Quando estavam tendo aquela conversa com Afonso, eu coloquei os papeis. Eles, no entanto, nunca foram verdadeiros; nunca tiveram a veracidade suficiente para provar o que ele dizia — que, se ele fosse morresse de uma forma não natural, a herança seria dividida entre a família. E, mais uma vez, vocês provaram que foram frios o suficiente para dar o benefício da dúvida e tentarem a sorte no homicídio.

Porém, a realidade era que a herança seria compartilhada de todo o jeito, e que não precisava chegar a este ponto que chegou.

No final das contas, vocês foram o estopim para a morte dele.

Como assim? É bem simples. Ele não continuaria com o plano senão fosse por vocês. Naquela reunião onde ele divulgara que a herança iria para a caridade, todos expuseram o lado ambicioso e vil, mostrando que queriam o dinheiro acima de tudo. Era esse o estopim para a continuação do plano. Para Afonso, se vocês tivessem guardado os sentimentos, mesmo que os tivessem, as coisas parariam; ele contaria toda a verdade e nada teria chegado a esse ponto. No entanto, infelizmente, parecem que vocês são francos demais. E não é lá a franqueza boa.

A minha morte? Bem, Afonso, com aquela mentalidade pútrida, dissera que seria divertido dar um susto em vocês. Eu só teria de fazer isso que fiz, o suicídio, se Afonso estivesse morto. E, olha só, ele está! Era algum tipo de vingança, mas acho que, depois do que presenciei como vocês agem, como vocês são como uma família, tenho certeza de que esse susto passará despercebido; são insensíveis demais.

Quero dizer, no fim, que minha morte não foi em vão para minha família. Esperem por um futuro brilhante.

Gabi, minha netinha, e Mirian, minha filha, eu amo vocês.”


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Notas finais do capítulo

Acha que a história acabou, com tal revelação? Aguente, ainda tem muito para acontecer. Muito mesmo



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