Levou novamente o copo aos lábios e bebeu parte do liquido. Algumas horas atrás estavam invadindo um galpão cheio de traficantes para pegar uma provável arma alienígena que seria vendida para fora do país e, de repente, estavam lá, num bar consideravelmente agradável, conversando bobagens e comemorando que nenhum deles estava ferido. Contentou-se em continuar a terminar sua cerveja e escutar a conversa em silencio.

- Multa de transito? – Comentou Owen, sarcástico. – Serio, Gwen? Essa foi a pior coisa que você já fez fora de Torchwood?

- Já bati o carro também. – Se defendeu um pouco emburrada. Quem diria que um dia iria se envergonhar de não quebrar as leis? – Eu era policial, o que esperava?

- Algo mais emocionante. – Revirou os olhos, esvaziando o copo. – Até a Tosh que é mais chata já fez coisas mais interessantes.

- Como o que? – Suspirou cansada, tentando desviar a atenção da conversa para outra pessoa... Sentia muito pela amiga, mas ela seria a nova vitima das perguntas e criticas desnecessárias dos amigos intrometidos.

- Eu? – Perguntou sobressaltada. – Não tenho nada para falar...

- Claro que tem. – Insistiu Owen com seu jeito petulante. – Vamos, Tosh! Antes mesmo de conhecer o Jack você já roubou informações confidenciais de como montar uma arma alienígena... Ninguém consegue fazer uma coisa assim de primeira.

- Mas isso foi por necessidade! – Sentia-se desconfortável com esse assunto... Não gostava de lembrar-se dessa ocasião, dois anos presa e isolada do mundo não era um assunto divertido de se lembrar em um bar com os amigos.

Enquanto isso, ele observava tudo, encolhido na cadeira em um dos cantos da mesa. Gostava de relaxar com os amigos e conversar com eles sobre assuntos que não envolvessem alienígenas, fendas do tempo, guerras e coisas do tipo, todavia não é como se ele fosse bom em muitas coisas além disso... Na verdade, era especialmente ruim em se comunicar com os outros. Poderia arriscar a própria vida pelos colegas de trabalho, mas não conseguia arriscar abrir a boca perto deles e conversas sobre esses assuntos banais.

- Aposto que já roubou alguma coisa antes. – Riu novamente o moreno, provocando. - Você vê algo que realmente quer, mas está sem dinheiro na hora, de repente começa a pensar no que fazer e quando percebe... Suas mãos leves se mexeram sem você notar, eu sei que você sabe do que estou falando.

- Só cigarro e algumas bebidas. – Comentou, desistindo de fugir do assunto. – Mas na adolescência.

- Adolescente rebelde? – Owen a encarou, fingindo uma expressão indignada. – Realmente não faz seu tipo, Tosh.

- Eu já roubei um carro.

E foi assim que todos resolveram encarar o membro do grupo que havia se mantido em silencio, quase invisível, desde que chegaram ao bar. Jack, que também observava a tudo sem dizer nada, encarou o homem de olhos azuis e riu... Tinha esquecido que, dos quatro, só ele sabia que Ianto não havia sido um “adolescente fácil”, por assim dizer.

O novo centro das atenções apenas manteve sua postura tranquila e continuou a beber a vodka que havia pedido segundos atrás. Não é como se fosse tímido, apenas era ruim se expressando e, aparentemente, essa não era a forma certa de comentar sobre suas façanhas de quando era mais jovem. Ah, maravilha... Ou era um de seus ataques impulsivos em que fala sem pensar, que na verdade aconteciam com certa frequência, ou o álcool falando.

- Na verdade dois. – Deu de ombros e bebeu mais um pouco, complementando seu comentário anterior, sentindo-se levemente incomodado pelo silencio dos outros. – Mas só me acusaram por um.

- Quem diria... – O medico arqueou a sobrancelha com um meio sorriso irônico estampado em seu rosto. – Essa sua cara de inocente engana.

- Para falar a verdade, nem eu esperava. – Riu a ex-policial, tentando quebrar a atmosfera estranha de surpresa que surgiu de repente. – E quando foi isso?

- Alguns anos atrás. – Novamente levou o copo à boca, vasculhando sua mente, tentando relembrar quando havia sido. – Tinha 19 anos.

- Oh, mas não pare por ai. – Incentivou o médico. – Mais alguma coisa sobre seu passado pré-Torchwood que a gente não saiba?

- Não realmente.

Deu de ombros, pondo fim ao assunto. Sua adolescência e vida antes de Torchwood não foi tão complicada assim... Dependendo do ponto de vista, claro. Se fosse para comparar o seu passado com a sua vida atual, foi algo relativamente leve: suas notas eram na média, entrou na faculdade, roubou um carro, se formou sendo um aluno mediano e já pensou em cursar moda, mas entrou para uma organização que agia fora do governo e acima da policia... Apenas algum detalhe ou outro que sobressaíram da normalidade, porém adicione bebidas, cigarro, roubos ocasionais e pronto, poderia se dizer que a maior parte entraria nos parâmetros de normalidade desse mundo atual e assim, descrever a vida de Ianto Jones em poucas linhas.

- O que mais você já fez e escondeu atrás dessa sua cara de inocente?

- Nada, pelo que lembro.

- Não diria que o processo por ato obsceno no shopping fosse nada.

Assim, a atenção foi voltada para o único membro que se mantinha quieto e finalmente se manifestava, para infelicidade do de olhos azuis. As reações foram diversas, mas todas demonstravam uma coisa: surpresa.

A jovem vitima se encolheu um pouco em sua cadeira, visivelmente desconfortável, fazendo o capitão rir ainda mais. Não é como se não esperasse que o outro fosse comentar sobre isso um dia, todavia nunca deixava de se surpreender com seu chefe.

- Isso já faz um tempo. – Murmurou, aparentando indiferença, se não fosse por um leve rubor que tentou esconder bebendo mais ou pouco, mas não passou despercebido pelo ex-viajante do tempo.

- Não acho que duas semanas atrás seja tanto tempo assim. – Sorriu malicioso, arqueando a sobrancelha.

- Então era por isso que nosso garoto do café estava agindo um pouco estranho algum tempo atrás? – Riu Owen, se divertindo com a descoberta. – Mas não é como se não esperasse algo assim vindo de você, chefe.

- Jack, Owen! – Chamou Gwen, exaltada. – Estão sendo inconvenientes com o Ianto.

- Não acho que deveríamos comentar sobre isso. – Suspirou a asiática, encarando, preocupada, o amigo que se manteve em silencio.

- É, afinal também todos já sabemos como é o Jack... – Finalizou a novata do grupo com certo sarcasmo, encarando diretamente o chefe.

O imortal devolveu o olhar de todos e sorriu malicioso. Jack até poderia ter comentado sobre a praia ou sobre a vez em que os encontraram no banheiro do restaurante, mas preferiu dar o assunto por encerrado... Pousou o copo na mesa, voltando a agradecer mentalmente a quem inventou as pílulas para apagar a memoria, se não fosse por isso possivelmente estaria tendo problemas por causa desses incidentes até hoje...

Acordou de seus pensamentos e voltou a escutar a conversa que já havia mudado de tópico, aparentemente estavam falando sobre a vida sexual de outro membro do time, porém só voltou realmente a prestar atenção no que ocorria quando o antigo membro da base de Londres se manifestou novamente.

- Vou indo. – Se despediu já se levantando e deixando certa quantia de dinheiro na mesa. – Vejo vocês amanha.

Os demais responderam com um “até amanhã”, sem dar muita importância. Já estavam acostumados com Ianto sempre sendo o primeiro a deixar o bar, era como um acordo não verbal, havia uma sequencia na saída de cada membro. Provavelmente por isso arquearam a sobrancelha levemente quando viram Capitão Jack Harkness virar o conteúdo de seu copo em um único gole e anunciar que também estava deixando o lugar.

Com um simples “não esqueçam que hoje continua sendo terça”, pegou o sobretudo e deixou a equipe com passos calmos, se dirigindo a porta sem se importar em dar qualquer explicação para o resto de seu time, mas também não era como se eles precisassem de uma... Não era habitual ver o capitão deixando a mesa antes de Tosh, que sempre era a segunda a ir, todavia ainda não era nada inesperado levando em conta quem fora o primeiro.

O moreno continuou caminhando tranquilo pela rua, sem se importar em olhar para os lados. Sabia aonde ir e onde encontrar, além de o que encontraria. Sentiu o vento gélido do inverno bagunçar seu cabelo e seus passos ecoarem pela rua vazia, afinal era como havia dito: continuava sendo uma terça-feira, na verdade quarta-feira, se considerar que já havia passado da meia noite.

Parou de andar aos poucos, quando escutou o barulho baixo de algo que havia caído no chão, seguido por um mais alto. Rindo suavemente, abaixou o olhar e não se surpreendeu com o que viu... Exatamente como esperava: seu amante caído no chão, encostado na parede e mexendo na carteira que, provavelmente, deveria ter derrubado tentando ver quanto dinheiro tinha para poder chamar um taxi.

- Não deveria ter exagerado tanto. – Falou baixo, agachando do lado dele. – Vamos, te levo para casa.

- Não precisa. – Respondeu devagar, tentando fazer suas palavras saírem compreensíveis, todavia sua voz permanecia estranhamente calma, para um bêbado.

- Alguém caído no chão não deveria ter direito de opinar. – Sorriu de canto, estendendo a mão para ajuda-lo a se levantar.

Ianto o olhou e retribuiu o sorriso, aceitando a ajuda. Apoiou-se na parede assim que se levantou, suspirando e sentindo uma leve tontura graças ao álcool. Ficaram assim durante alguns minutos, apenas se encarando ou observando a rua ao redor sem dizerem uma palavra.

-... Como notou? – Murmurou o mais jovem, lento o bastante para suas palavras saírem nítidas.

- Apenas notei. – Deu de ombros, o encarando diretamente nos olhos. Era Jack Harkness afinal, nada passava despercebido por seus olhos.

-... Vamos embora então. – Falou em um sussurro leve, sorrindo discreto.

Ironicamente, mesmo após toda a sua adolescência e boa parte de seus anos pós-adolescência, o jovem ex-membro de Torchwood Londres ainda era fraco com bebidas... Todavia ao menos aprendera a beber com certa moderação e disfarçar sua embriagues, algo relativamente fácil já que ele não era uma pessoa muito comunicativa, por assim dizer, além de não ser difícil caminhar até a porta, sem cair, quando se escolhe previamente uma mesa perto da saída e senta-se na cadeira com a extremidade mais próxima a porta. Sim, Ianto Jones aprendera alguns truques para se salvar de meses de certo medico o atormentando com piadas desnecessárias.

Suspirando, resignado por nunca conseguir esconder nada de Jack, seja no trabalho ou na relação, apoiou parte de seu peso no mais velho e voltou a andar com passos lentos. Respirou fundo, sentindo aquele aroma que ele poderia jurar que era de colônia, mesmo com o outro insistisse que eram seus feromonios do século LI... Com certeza, seria uma longa noite, uma longa e prazerosa noite. Fechou os olhos, ainda se concentrando em andar, sem se preocupar em inventar uma desculpa para o porquê de sua dor de cabeça e da noite mal dormida, mas pensando em o que faria se fossem acusados por ato obsceno na rua caso não chegassem logo em casa... Ah, no que estava pensando? Maldito álcool...