Filtro Solar escrita por Rodrigo Caetano


Capítulo 4
3.


Notas iniciais do capítulo

Passamos da metade da história e aqui, como prometido, começamos a chegar no desfecho.

Originalmente, este capítulo foi pensado como a primeira metade do último, quando eu ainda planejava escrever três capítulos apenas.

O tamanho e a diferença (sútil) de temática entre a primeira e a segunda parte daquele último capítulo me fizeram ver que talvez eu pudesse trabalhar melhor com este sendo um capítulo individual.

Espero que gostem do rumo que a história toma, principalmente a partir de agora.

Boa leitura!



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“Together, they would watch everything that was so carefully planned collapse (…)”

Death[1]

3.

Gabriel não chorou aquela noite. Ele havia imaginado algumas vezes como seria o momento de despedida entre ele e Ana, e, mesmo que sua cabeça criasse diversos cenários diferentes, todos eles tinham uma coisa em comum. Eram regados de lágrimas e declarações de amor. Talvez a falta das declarações de amor tenha influenciado também na falta de lágrimas.

Em vez disso, ele foi dormir com o sentimento mais estranho que já tivera. Um sentimento de vazio. Mesmo muito depois, ele não sabia como colocar em palavras aquele momento. É difícil explicar um sentimento de vazio, assim como é muito difícil definir o nada. Quando alguém fala “nada” muitas pessoas imaginam um quarto vazio, ou um mundo vazio, ou até mesmo o universo vazio. Uns imaginam apenas um infinito, branco ou preto. Mas tudo isso tem nome. Não é “nada”, é um quarto vazio, ou é um infinito branco ou preto. O nada, o vazio, são coisas indecifráveis até mesmo para a mais elevada cultura humana.

E foi sentindo-se assim, indecifrável, que ele acordou no dia seguinte. Sua mãe, como sempre, viera chamá-lo cedo de manhã e saíra antes que ele pudesse perguntar qual seria o programa do dia. O menino se surpreendeu quando saiu do quarto e viu as malas de toda a família na sala de estar.

— A gente vai voltar? – perguntou, sem entender.

Seu pai lhe explicou que devido às queimaduras dele, os dois resolveram interromper a viagem e voltar para casa. Um ambiente com menos exposição ao sol e onde eles teriam mais controle sobre a sua recuperação. O rosto de seu pai, quando lhe disse, parecia cansado, como se tivesse discutido muito com a mulher sobre aquilo e, ainda assim, tivesse sido derrotado.

Gabriel sabia que seu pai não gostaria de voltar, e quase pediu desculpas a ele. O homem se dedicava durante todo o ano ao trabalho, e sempre insistia para que, pelo menos nas primeiras semanas, a família se reunisse em um retiro, para descansar e relaxar. O garoto sabia que seu pai não conseguiria se afastar do trabalho por muito tempo estando em casa.

Ele, por sua vez, não podia reclamar tanto. Depois de ter rasgado a passagem de volta para ficar com Ana, voltar para casa no dia seguinte à partida da garota parecia quase um golpe de sorte. Ele voltou para o seu quarto e começou a arrumar a sua própria mala. Colocou tudo o que tinha trazido na bolsa e precisou fazer bastante força para fechá-la, ignorando o fato de que dobrar as roupas poderia facilitar as coisas. Releu o bilhete que Ana lhe deixara na noite anterior e saiu do quarto.

Por algum motivo, nem mesmo a perspectiva da volta para casa fora suficiente para retirá-lo do estado emocional indefinível em que se encontrava.

A viagem de carro pareceu se arrastar por mais horas do que deveria, até ele pegar no sono no banco de trás. O silêncio de seus pais ajudava. Ele acordou assustado, já cruzando a ponte que o levaria de volta a sua cidade natal. Foi a primeira vez que sentiu alguma coisa desde que encontrara o bilhete de Ana. Estivera sonhando com a menina. Um daqueles sonhos tão simples e reais, que mais parecem memórias. Sentia-se como se estivesse andando de mãos dadas com ela, à noite, na praia, como tinham prometido um ao outro. Ele reclamava dos pais, ela reclamava da vida. Ele sonhava com liberdade e ela lhe contava como um dia escreveria um livro sobre o encontro dos dois.

E então ele acordou, dentro de um carro, com o corpo todo ardendo. Adorava a sua cidade, mas foi a primeira vez que ela não lhe pareceu atraente. Diziam ser uma cidade maravilhosa, mas comparado à realidade em que estivera vivendo há poucos segundos, aquilo era como se chocar com uma parede de concreto em alta velocidade.

Assim que chegou em casa, Gabriel correu para seu quarto, ligou o computador e escreveu um e-mail para Ana. Ele perguntou se estava tudo bem com ela e com o pai, pedia desculpas por ter sumido quando prometeu esperá-la e pediu explicações sobre o que tinha acontecido. Pedia outros meios de contato com ela, como número de telefone no Canadá, e links de perfis em redes sociais. Qualquer outro meio de comunicação mais rápido que o e-mail.

Assinou de mil maneiras diferentes, apagou e tentou novamente, até que decidiu fazer como ela havia feito: “Sempre seu, Gabriel”.

Quando escreveu o último ponto final, sentiu uma forte pontada no peito, ainda pior do que a primeira, no carro. Sentia como se estivesse deixando tudo o que sentia pela garota transbordar para a tela à sua frente, e, agora que olhava para o que tinha escrito, percebia que aquilo era pequeno demais para conter tanta coisa.

E, ainda assim, não sabia como fazer algo maior. Riu quando imaginou que ela levaria um bom tempo para terminar a leitura, e percebeu que ela provavelmente teria redigido um texto muito melhor do que o dele, se fosse ela a se declarar. Era ela quem gostava de escrever. Ela quem sabia como fazê-lo. Ele teria que aprender com ela.

Nota do(s) autor(es):

Ele nunca havia lido uma palavra sequer do que ela escrevia, a não ser pelo bilhete deixado com pressa. É incrível como o amor é capaz de criar falsas noções tão sólidas na cabeça das pessoas. As pessoas dizem que o amor é cego. Eu digo diferente: ele é manipulador.

Os dois dias que ele esperou pela resposta foram os mais longos de sua vida. Talvez porque sua mãe insistia em mantê-lo em casa, de castigo, por causa de seu descuido e consequentemente, de suas queimaduras. Ela dizia que o período seria duplamente importante. Para lembrar-lhe de ter mais cuidado e para que ele não se expusesse ao sol pelo menos nos primeiros dias do tratamento.

Ele reclamava de tudo, inclusive do uso da palavra tratamento. Para o garoto, a palavra fazia parecer como se ele estivesse sofrendo de um grave problema de saúde, e que tinha sorte de estar em casa e não internado em algum hospital. Mas, no fundo, Gabriel sabia que reclamava tanto porque não podia dizer o que realmente queria. O primeiro dia de silêncio havia sido compreensível, afinal, Ana ainda estaria voltando para casa. O segundo, não. Ela já teria tempo de ter chegado em casa e aberto o computador para checar seus e-mails. O simples fato de que ela não o fez já dizia muito, para ele.

A resposta só chegou na manhã do terceiro dia. E, quando chegou, ele se esqueceu de tudo sobre o que estivera reclamando. O texto da menina era maior ainda que o dele. Ela contava sobre como havia chorado ao partir, e perguntava se ele havia visto a marca que uma das suas lágrimas havia feito no papel do bilhete que ela havia lhe deixado. Antes de continuar a ler, ele correu para onde havia guardado cuidadosamente o papel e jurou ter encontrado a marca, mesmo já seca e quase imperceptível.

Ela contava sobre como seu pai tinha sido chamado por causa de uma demissão na empresa, que havia aberto uma vaga para que ele fosse promovido. Eram ótimas notícias para a família, mas diminuía muito as já pequenas chances deles pensarem em um retorno definitivo para o seu país de origem. Subitamente, ele se viu torcendo para uma queda no mercado, que deixasse os pais da menina desempregados.

Ela dizia que sentia muito pelas queimaduras, que se sentia responsável, e que o destino havia sido cruel, por tê-lo punido pelo simples fato de ter seguido um impulso e ido com ela para a praia. Ele nunca tinha pensado naquilo daquela forma. Agora que ela havia ressaltado aquele ponto, ele quase sentiu orgulho das bolhas. Um pequeno sacrifício que ele teve de fazer por um bem maior.

Por fim, disse o quanto sentia por ter seu tempo junto ao menino interrompido tão bruscamente, e agradecia a ele pela que ela chamou de a melhor parte de seu verão. Gabriel não poderia ter ficado mais animado com as palavras da menina, mas aquilo, ao mesmo tempo, lhe apertava o peito de uma maneira que ele nunca saberia explicar.

Ele a procurou e adicionou em todas as redes sociais em que ela participava, criando o seu próprio perfil naquelas que nem ele mesmo ainda não fazia parte. Olhou cada detalhe de todas elas, leu cada entrada que ela fizera e descobriu tudo o que pôde sobre a menina. E quando terminou, sentiu como se tudo aquilo ainda fosse insuficiente.

Estava imensamente feliz, não se engane. Mas não era nada comparado ao toque da garota. Ele nunca havia entendido o significado de saudade até aquele momento.

Uma semana inteira passou até que eles conseguissem marcar um encontro on-line. Gabriel não costumava fazer videoconferências pelo computador, mas passou toda a semana aprendendo a usar o programa, para que nada desse errado quando a conexão fosse feita. Nunca tinha feito aquilo antes, mas se sentiu bem dedicando toda sua energia para aquela tarefa específica, pois se tratava justamente de falar com Ana.

Ele ainda não havia conseguido espantar aquele sentimento de vazio dentro de si. Era uma coisa com a qual estava quase se acostumando. Não era bom nem ruim. Não lhe incomodava ou o fazia bem. Apenas ficava lá, o tempo todo. A não ser quando ele estava lendo o bilhete de Ana, ou um dos e-mails, ou falando com ela por mensagens instantâneas no celular.

Os sentimentos então eram variados. Ele sentia uma alegria indescritível quando os dois se engajavam em uma conversa mais animada e uma angústia sem tamanho quando o assunto morria. Era capaz de fitar o telefone por vários minutos sem nem perceber, e quando percebia, imaginava se ela estivera fazendo a mesma coisa. Divagava, imaginando-a deixando o telefone (e ele) de lado e indo fazer qualquer outra coisa, convencido de que não representava tanto para ela. Em outros momentos, tinha a mais absoluta e inquestionável certeza de que ela estava ali, do outro lado, quase ao alcance das mãos, sentindo a mesma angústia que ele.

Nota do(s) Autor (es):

É fácil dizer que o amor deixa as pessoas malucas, mas será que é verdade? Às vezes eu prefiro pensar que algumas pessoas se deixam enlouquecer de amor.

Percebem a diferença?

Ainda assim, ele nem podia imaginar o que seria vê-la novamente, mesmo que através do computador. Assim que ouviu o som da chamada, ligou a tela. A internet levou cerca de trinta segundos para estabelecer uma boa conexão, mas então ele conseguiu vê-la.

— Hey! – ela disse, acordando nele um pouco da vida que ele sentia que havia perdido.

— Hey!

A imagem da garota estava borrada. A conexão definitivamente não era boa. Ele perguntou se ela estava tendo problemas, mas ela disse que não. A velocidade da internet no Canadá deveria ser bem melhor do que a dele, ele concluiu. Não podia negar que se sentia um pouco frustrado. Estava imensamente feliz, mas via apenas alguns traços da menina com quem vinha sonhando. Não podia olhar nos seus olhos ou sentir aquela pitada de irracionalidade que o atraíra no primeiro dia, combinada com todo aquele carinho que ela sabia transmitir.

Passaram cerca de vinte minutos tentando melhorar a qualidade do vídeo de Gabriel, mas depois desistiram. Ele finalmente sentia na pele o que era sonhar com algo que, na realidade, não passava de uma aquarela borrada.

— Como você está? – perguntou.

— Bem. Muito bem! – ela disse, sorridente. Ele estivera esperando toda semana por aquele sorriso. E, mesmo agora, não conseguia vê-lo direito.

— O que você tem feito?

— Nossa, hoje passei o dia inteiro dormindo. Fui a uma festa do meu colégio ontem, na casa de um garoto... Foi o máximo! Cheguei em casa às 5 da manhã...

— Nossa, legal... – ele disse, tentando não imaginá-la bebendo em uma festa de colegial como aquelas que via em filmes de Hollywood. – Você não tinha dito que ia numa festa...

— A festa simplesmente apareceu. Eu estava de bobeira na casa de uma amiga e recebemos uma ligação de outra menina, nos convidando. Eu nem conhecia o dono da casa, mas foi muito divertido! Você tinha que estar lá...

— É, quem me dera, poder estar do seu lado...

Ele conseguiu vê-la rolando os olhos. Achara aquilo tão bonito da primeira vez, mas agora parecia que ela tinha uma reação assim toda vez que ele dizia algo romântico.

— E você? – ela continuou, ignorando o que ele havia dito. – O que fez ontem?

— Eu saí com uns amigos também. – Ele mentiu, sem saber exatamente por quê. — Fomos para a casa de um garoto lá do colégio. O irmão dele já está na faculdade e estava fazendo um churrasco com a turma...

A verdade é que continuava preso em casa. Sua mãe só lhe daria permissão para sair novamente depois do fim de semana, ela prometera. Ele quase fugira de casa, só para ir jogar vídeo game na casa de um amigo do condomínio, mas decidiu que todo o esforço não valeria a pena. O risco era grande demais para jogar um jogo que tinha em casa.

— Que legal! Então você teve um sábado tão bom quanto o meu! – Ela sorriu novamente, e ele se irritava cada vez mais com o próprio computador.

Os dois se olharam por alguns momentos, sem saber exatamente o que falar.

— Como estão as queimaduras?

— Bem melhores. Já não ardem mais tanto. Os cremes realmente funcionaram.

— Viu? Valeu a pena ir ao hospital aquela noite. O médico mandou bem...

— Ainda fico com raiva daquele hospital. Eu juro que quando eu crescer, vou virar político só para acabar com essa palhaçada de fila de emergência. Quer dizer... não tem lógica! Se é uma emergência, eu não posso esperar na fila!

Ela riu.

— Você? Político? Yeah, right...

— O quê? Por que não?!

— Você não teria coragem... É uma vida complicada.

— Mas é claro que eu teria! Está me chamando de covarde?

Antes que ele pudesse perceber, já estava rindo novamente. Era incrivelmente fácil esquecer como era bom sentir uma alegria tão sincera que controla as suas reações involuntariamente. A conversa foi e voltou por mais de uma hora, até que ela decidiu desligar.

— Eu tenho que ir, Gábi...

Ele odiava aquele apelido até ela usá-lo para se referir a ele.

— Por quê?

— Minhas aulas começam amanhã e eu tenho que acordar cedo.

— Aulas? Já?! É o meio do verão...

— Não, aqui é inverno. Esqueceu?

Ele havia esquecido.

— Eu tenho que ir – Ana repetiu, tentando lhe olhar carinhosamente. Ele sentia pela voz o que ela queria lhe passar, mas a conexão não lhe permitia ver.

— Fica mais um pouco – se viu pedindo, quase sem querer.

— Eu realmente não posso...

— Então tá...

— Um beijo. Boa noite. Se cuida, ok?

— Ok... Você também – ele se apressou em dizer.

Ela desligou a chamada, e ele tomou um susto. Ela havia se despedido, mas não esperava que ela desligasse tão rapidamente. Não era assim que as coisas deveriam acontecer. Não de acordo com o que ele vira nos livros e nos filmes.

O aperto que o atingiu em seguida foi tão forte que ele sentiu, pela primeira vez, uma lágrima lhe escorrer o rosto. A primeira de muitas que iriam cair aquela noite. Apenas as primeiras, de todas aquelas que lhe embalariam o sono.

Nota do(s) autor(es):

Olhando para trás, tudo é muito mais claro do que parecia ser. Talvez porque a cicatriz esteja fechando.

Para ser justo e verdadeiro, seria mentira dizer que aquele vazio durou para sempre. Com as semanas ele foi sendo substituído, pouco a pouco, por uma densa variedade de sentimentos. Alguns deles eram bons, normalmente envolvidos em algum tipo de interação direta entre ele e Ana. A grande maioria, porém, derivavam da depressão. E, a cada dia que passava, mesmo quando as aulas se iniciaram novamente para ele, aqueles sentimentos pareciam convergir e se moldar em uma só forma. A mais intolerante e implacável solidão.

Ele tinha seus amigos, mas nenhum deles trazia o brilho ou o calor que a garota lhe apresentara durante o verão. Ele até mesmo contou para um deles, o melhor deles, sobre a menina e o caso que tiveram, mas o amigo parecia focado em arrumar outra garota para ele. Era muito difícil para Gabriel explicar que não queira mais ningém, e que sequer poderia ficar com outra pessoa sem sentir como se estivesse traindo Ana.

— Vocês estão namorando, então? – o amigo perguntou.

— Não! – Gabriel replicou, lutando para não entender a simplicidade da situação.

— Então pronto! Ela mesma deve ter ficado com outros caras...

— Claro que não! Ela não faria isso. A gente se fala sempre! Ela teria me contado...

— Será?!

— Sim! – Gabriel respondeu, parecendo muito mais seguro e confiante do que verdadeiramente se sentia.

Quando aquela conversa terminou, ele sacou o telefone e mandou uma mensagem para Ana, marcando uma conferência de vídeo on-line para aquela noite. Ele nem sequer perguntou se ela estaria disponível. Apenas disse que precisava urgentemente falar com ela, escolheu o horário, e mandou. A resposta veio duas longas horas depois. Um simples “Okay, beijos”.

Ela nem sequer perguntou se estava tudo bem com ele, ou ficou curiosa por causa da urgência com que ele tomara aquela atitude. Eram essas pequenas coisas que o incomodavam todos os dias. E ele sentia-se muito mal por isso. Sabia que não significava nada. Sabia que, se realmente precisasse, poderia dizer para ela o que quisesse. E achava que faria o mesmo que ela, se as situações fossem invertidas. Respeitaria o pedido dela de conversar no momento escolhido. Entenderia que muitas coisas não devem ser conversadas através de mensagens instantâneas. Já perdera a conta de quantas vezes explicara a mesma coisa para amigos e amigas com problemas em seus próprios relacionamentos.

E, ainda assim, sentiu-se enfurecido e decepcionado com a resposta da garota.

— Até mais tarde... – ele escreveu, sem perceber que o repetia em voz alta.

*-*-*-*-*-*-*-*-*

— Hey! – disse Ana, quando atendeu a chamada de Gabriel. A menina soava tranquila e descolada, mesmo estando apreensiva.

— Hey... - O tom do garoto era muito mais gutural, como alguém que estivesse querendo evitar aquela conversa.

— Como estão as coisas por aí?

— Tranquilas. E aí? Como foi o seu dia?

— Normal – ela respondeu, percebendo que o garoto não queria ir direto ao assunto. – Escola, trabalhos... Hoje era meu dia de lavar a louça, então foi tranquilo.

Gabriel riu. Ele tinha uma empregada em casa, mas isso não era tão normal no Canadá. Todos os dias os membros da família de Ana dividiam as tarefas domésticas. Para ele ter de lavar a louça era um motivo para reclamação. A garota, por outro lado, achava que era uma das melhores tarefas domésticas que podia ter. Ele concordava que era muito melhor do que varrer a casa ou lavar a roupa, mas ainda assim era algo um pouco distante da sua realidade.

— Eu fiquei o dia inteiro no colégio – o menino contou, em tom de reclamação. – Esse negócio de vestibular está começando a me irritar.

— Eu imagino. Também estou preocupada com as faculdades daqui. O processo para entrar é complicado. Era por isso que você queria conversar?

Nota do(s) Autor (es):

Pelo menos nos EUA e no Canadá, quando duas pessoas estão em qualquer tipo de relacionamento e uma dela diz que precisa urgentemente conversar, a outra consegue deduzir com considerável precisão que o assunto da conversa não vai ser o pré-vestibular.

— Bem... É... Não exatamente...

— Sobre o que é então?

— Eu queria falar... Assim... Mais pensar mesmo. Pensar juntos... – ele ensaiara diversas vezes aquele momento durante o dia. Escolhera e desistira de uma série de palavras a serem ditas. E, na hora, se viu sem nenhuma. – Em nós dois...

— Pensar em nós dois – ele concluiu, como se estivesse liberando um grande peso.

— Nós dois... Uhm... ... – Ana suspirou. Desconfiava que fosse disso que tudo aquilo se tratava. Se ela fosse cem por cento honesta, aquele era um assunto que a deixava tão nervosa quanto a ele. Mesmo que, talvez, por motivos diferentes. – Entendo...

Alguns momentos de silêncio se passaram enquanto os dois se olhavam pela câmera. Gabriel notou que, aos poucos, a qualidade da imagem ia melhorando. A conexão, por algum motivo, parecia estar ligeiramente mais rápida naquele dia.

— Bem... era isso... – ele disse.

Ela deu uma risada nervosa.

— Só isso? Podemos mudar de assunto então?

Ele não riu da piada da menina. Na verdade, ficou surpreso com a vontade dela de se desviar. Ela nunca fazia isso.

— Não... É... Eu queria saber se... bem... se a gente tem alguma coisa.

— É claro que a gente tem alguma coisa... – disse ela, soando muito mais certa do que aparentava. Ele abriu um grande sorriso, que se esforçou para conter logo em seguida.

— Ótimo! Eu também acho... É que, assim... – Ele respirou, um pouco mais tranquilo e confiante. – Quando eu fui contar para algumas pessoas, elas falaram que era maluquice a gente ficar junto assim, tão longe um do outro, e isso me fez pensar que, sei lá... Talvez eu estivesse confundindo as coisas.

Foi a vez de Ana não sorrir de volta para o menino. Ela olhou nos olhos dele, e, mesmo com uma imagem não tão nítida, aquele olhar ficaria marcado no fundo da mente de Gabriel por um longo tempo.

— Mas, Gábi... A gente não está junto...

Ele sentiu um baque profundo, como se acabasse de ser atingido por um trem, jogando-o para trás contra a cadeira em que estava sentado.

— Como assim? Você acabou de dizer que a gente tem alguma coisa...

— Eu sei – ela disse, rapidamente, interrompendo-o e aproveitando uma chance para se explicar. – Olha, eu gosto muito de você. De verdade, você sabe disso. A gente se divertiu pra caramba no pouco tempo que passamos juntos. Mas, cara... Eu moro aqui. Você mora aí... Por definição, a gente não pode ficar junto...

— Eu sei que, literalmente, não tem como a gente ficar junto, mas...

— Não. Espera... – ela disse, interrompendo-o novamente e respirando fundo. Ela sentia um nervosismo incontrolável, que ela não sabia explicar. Uma parte dela não queria reconhecer o que estava prestes a dizer, e a outra não queria dizê-lo para poupar Gabriel de ter de ouvir. Foi preciso mais força do que ela imaginava para colocar tudo para fora. – Olha... Não tem como a gente ficar junto. Literalmente, não tem. Então por que a gente ficaria? Por que a gente teria de ficar nos forçando a fazer uma coisa que é impossível fazer...

— Por quê? Você quer saber o porquê? – Ele sentiu algo que ele não conhecia lhe subir a garganta. Talvez fosse o coração. Ele já não sabia mais. – Porque eu amo você. Por isso!

Ele esperava que aquilo soasse com mais força e vigor, mas sua voz lhe traiu no último momento. Ele travou em silêncio, tentando se conter. Tentando não deixar uma lágrima cair. Ela sentiu a voz dele quebrar. Aquele foi um golpe duro, e ela também precisou de um momento para respirar e se controlar.

— Gábi, olha... Se acalma... Não fica assim...

— Eu estou bem – ele disse, um pouco mais controlado.

— Então pensa comigo, por favor. A gente não se conhece há tanto tempo assim. Como você sabe que me ama? Não acha que é muito cedo para...

— Não! – ele quase gritou, assustando a menina. – Não acho! Eu amava você menos de vinte e quatro horas depois de você vir falar comigo! Você sabe disso! Foi você que me disse isso!

— Oi? – Ela não entendeu. – Dude, você não está fazendo sentido... Como que eu...?

— No telhado. Antes de a gente dormir junto! Você me disse que eu não precisava dizer que eu te amava!

Aquilo era verdade. Ele guardou aquelas palavras no fundo de seu peito desde aquele dia. Ana, por sua vez, estava apenas citando o livro que ele estava lendo. De todos os momentos que eles passaram no telhado, aquele ficou perdido em algum lugar no fundo da sua memória.

— Espera... Não! Eu nunca disse isso... – Pelo tom de sua voz, aquilo era quase um pedido de desculpas. Gabriel ficou olhando para ela, tentando achar palavras para explicar o que estava sentindo. O problema é que nem ele sabia direito.

— Você não... Você não lembra?

— Não... Olha...

Nota do(s) autor(es):

Lembrar-se de algo pode ser tão doloroso quanto esquecer-se de algo. Nem todo mundo sabe disso...

“A memória é algo maravilhoso se você não tem que lidar com o passado”.[2]

— Olha o quê? Eu achei que você me amava também...

— Eu amo... Não! Eu não sei... Dude, eu realmente não sei. Se eu morasse aí, tudo seria mais fácil. A gente poderia tentar alguma coisa. Eu poderia amar você. Mas não dá, Gabriel! Não dá! Eu não sei quando eu vou voltar. Você não tem planos para vir pra cá. Como é que a gente vai ter um relacionamento se vendo uma vez por ano, com sorte?!

— Do jeito que a gente tem hoje!

— A gente não tem um relacionamento hoje! – Ela sentia-se prestes a explodir em lágrimas, mas sabia que, se se permitisse chorar, ele a seguiria. – A gente tem alguma coisa? Sim! Eu gosto de você, eu sei que você gosta de mim... Mas isso não é um namoro, Gabriel. Não pode ser um compromisso...

— Por que não? Você gosta de outros caras aí? É isso?!

— Não! – ela bufou, sentindo-se desesperar. Não queria dizer tudo aquilo. Queria muito poder estar junto do menino, do outro lado da tela. Sentia uma imensa vontade de se envolver em seus braços naquele momento. Mas ela não podia. Literalmente não podia. E isso a lembrava do que tinha de fazer. – Não! Não tem ninguém... Mas eu quero que um dia possa ter... Eu juro! Eu queria que pudesse ser você. E, se um dia puder, eu vou ficar muito feliz. Mas não pode, Gabi. Não pode...

— Por que não?!

— Porque não! Porque por mais que seja mais fácil, eu não posso me permitir amar você! – ela disse, sem mais controlar as suas palavras. – Porque amar você dói. Porque se eu amar você, você vai me machucar! Sem querer, mas vai! Do mesmo jeito que eu vou machucar você...

— Você está me machucando agora! – ele disse, quase gritando novamente.

— Eu sei... Eu sei... mas eu não tenho escolha. Por favor, tenta entender...

— Entender o que, Ana? Que você não me ama. Eu já entendi essa parte. Eu já entendi que a gente não tem nada. Nunca teve, nunca vai poder ter...

— Eu não disse isso. Não é assim. Não é isso... Espera...

— Espera não! Não dá pra esperar... Eu amo você, e, se você não me ama, então a gente não precisa esperar nada. Você está certa. Não dá pra ser assim...

— O que você está dizendo? – As primeiras lágrimas escorreram pelo rosto da menina. Gabriel sentiu o lábio tremer, enquanto sua voz deixava claro o enorme esforço para conter as suas.

— Eu estou dizendo que você está me machucando! E eu não aguento isso!

— Então...

— Então eu não sei! – ele disse, sem coragem de dizer o que ela já sabia.

— Então você quer dizer que é melhor a gente parar de se falar?

— Eu não disse isso...

Ela suspirou, lembrando-se daquela noite no telhado. Das palavras que tinha dito e que surtiram mais efeito do que ela esperava. Olhou para o menino, com a cabeça caída em desconsolo e se sentiu terrivelmente responsável por toda aquela dor. A dela e a dele.

— Você não precisou...

Ele levantou o olhar para ela, e duas lágrimas escorreram por seu rosto. Ela não queria mais ter aquela conversa. De algum modo, não aguentava vê-lo chorando.

— Você está certo, Gábi. Dessa vez, você está certo. A gente não pode mais se falar. Ou vamos apenas continuar nos machucando. Mais e mais... é melhor a gente se despedir.

— Espera... – Ele sentiu um aperto forte no coração. A garganta entalada de lágrimas. – Não é assim também...

— É sim – ela tentava não soluçar. – Desculpa, mas é sim. É o melhor caminho.

— Não pode ser a melhor se a gente não estiver junto. Não pode ser... – ele tentou argumentar.

— Eu já disse, Gábi. Não dá para a gente ficar junto...

Ele olhou no fundo dos olhos desfocados dela uma última vez, e ela desligou a chamada. Gabriel ficou olhando para a tela do computador por mais de dez minutos, chorando copiosamente, como nunca antes na vida. Ele não veria Ana por mais de um ano depois daquela noite.

Nota do(s) autor(es):

Nem o mais pessimista dos adolescentes poderia prever que o fim do mundo poderia estar nas profundidades da tela preta de um computador.

E só o mais tolo deles seria capaz de acreditar nisso.

[1]“Juntos, eles iriam observar enquanto tudo o que fora tão cuidadosamente planejado desabava(...)” ZUZAK, Markus. A menina que roubava livros.

[2] LINKLATER, Richard; HAWK, Ethan; DELPY, Julie. Antes do Pôr-do-sol.


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Notas finais do capítulo

E então, o que vocês acham até agora?

Gostaria muito de ouvir o que vocês tem a dizer. Quem você acha que está com a razão? Se você pudesse dar um conselho para uma das personagens, qual seria?

Espero vocês nos comentários.