A Invasão escrita por Isadora Nardes


Capítulo 21
Acampamento Militar Americano, 7 de junho de 2015.


Notas iniciais do capítulo

Desculpe ficar tanto tempo sem atualizar. Outras fics, colégio...



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191 dias desde que começou.

Estou aqui dentro.

E tenho a sensação que alguém enfiou as mãos no meu peito, cravou as unhas no meu coração, arrancou ele fora, sapateou e cuspiu em cima dele, depois o colocou pra dentro de novo, só que no lugar errado.

Rafael.

Meu irmão Rafael.

Ele está entre os soldados.

Eu não sei qual foi minha expressão quando o vi. Eu tenho certeza que fiquei pálido. A única coisa que senti foi um grito esgoelado tentando se libertar de dentro de mim. Tive um breve movimento espasmódico, que foi apenas um reflexo dos pulos de alegria e da tremedeira que eu consegui guardar pra mim.

Mas eu não tirei os olhos dele enquanto fingia saber uma posição militar. Ele também não tirou os olhos de mim. Eu queria pular em cima dele, socá-lo, depois abraçá-lo, depois socá-lo de novo. Estava furioso por não tê-lo visto antes e estava feliz por vê-lo naquele momento. Todas as minhas emoções se emaranharam dentro de mim e ameaçaram sair, e eu enfiei-as pra dentro novamente.

Puxei o ar com toda força que meus pulmões podiam aguentar. Migrei junto com os outros soldados – isso incluía meu irmão – até o refeitório. Pessoas conversavam em inglês. Eu me sentei numa mesa, isolado, e comi sem sentir o gosto de nada.

Era como se todos soubessem.

Eu vi Rafael se aproximar. Olhei pra ele. O cabelo estava curto, ele tinha uma cicatriz no queixo, mas fora isso, parecia bem. Milhões de perguntas rodaram por minha mente num milésimo de segundo, mas todas elas não passavam de pontos de interrogação entre palavras desconexas.

Eu senti vontade de pular da mesa, abraçá-lo e gritar com ele, mas eu me controlei, e disse, em um inglês casual, baixo o bastante para que ninguém além dele pudesse ouvir.

“Como veio parar aqui?”.

Ele limpou a garganta e se sentou. Começou a comer, e disse, num inglês hesitante:

“Eu pensei que eu podia descobrir alguma coisa”.

“Está com alguém?”.

“Mamãe”.

Eu parei de comer. Meus talheres escorregaram da minha mãe e foram se entregar ao chão. Minha respiração falhou, mas eu perguntei:

“Ela está bem?”.

“Está viva” Rafael respondeu. Eu soltei o ar, Ela nunca estaria bem, nunca esteve bem. Mas sempre estava viva. Porque, afinal, estamos todos vivos no final.

“E papai?”.

“O que tem ele?”.

“Está com vocês?”.

“Graças a Deus não”.

Recolhi meus talheres e voltei a comer, embora toda a minha fome tivesse evaporado. Eu apenas queria arranjar uma arma e atirar em um americano – qualquer um. Porque não era daquele jeito que as coisas tinham que ser – não era mesmo. Bem, as coisas nunca foram como eram pra ser, mas naquele momento tudo parecia particularmente errado.

“Eu tenho um grupo. E um plano” eu disse.

“Como é?”.

“O grupo ou o plano?”.

“O grupo”.

“Trinta e três pessoas. Estamos numa gruta. Não é longe daqui”.

“Eles são bons?”.

“Sim”.

Rafael ficou quieto. Eu queria obrigá-lo a falar. Afinal, era meu irmãozinho. Eu queria ouvir a voz dele, como uma garantia de que ele estava ali na minha frente. Ao invés disso, eu perguntei:

“Onde mamãe está?”.

“Eu escondi ela numa nave”.

Eu gelei.

“Você o que?”.

“Não se preocupe. Ninguém sabe. Eu dei um jeito”.

“Que jeito?”.

“Um jeito”.

Eu o fitei. Ao ver a intensidade da sinceridade em seus olhos, eu tentei relaxar meu corpo. Se ele sabia o que estava fazendo, ele sabia e pronto. Eu tinha minhas preocupações para resolver. Como, por exemplo, ele.

“E você? Como você escapou? Onde estava?” eu deixei as perguntas saltarem da minha boca.

“Eu... Lembrei de um depósito de roupas militares quando eu tava buscando comida. Daí eu dei um jeito de esconder a mamãe. É bem complicado. Mas... Quando eles chegaram, eu estava na escola”.

Limpei a garganta.

“Como foi?”.

“Gritos. Pânico. Desespero. Armas. Sangue”.

Fechei os olhos e me concentrei em não vomitar.

Aquilo. Estava. Errado.

“E como você sabia o que fazer?” perguntei, com a voz trêmula.

“Eu ouvi eles falando em inglês” Rafael disse, inocentemente. “Então, eu tinha que falar em inglês também, né? Patrick? Patrick, você tá legal? Pat...”.

Eu comecei a tremer. Meu rosto ficou vermelho. Eu me encolhi, larguei os talheres e dobrei os braços sobre a mesa, espremendo meu rosto contra eles. As lágrimas se misturaram com o barulho do refeitório, com as palavras de Rafael e com os pensamentos em minha cabeça. Tudo estava errado. Não havia nada certo ali.

Aquele idioma não era certo e o que eles estavam fazendo não era certo.

Tudo estava errado.

“Hempkings?” ouvi uma voz me chamar.

Hempkings era o nome que eu havia inventado para fingir ser um soldado. Bem, eu não havia inventado. Eu achara o nome D. Hempkings num uniforme o usara. Tomei cuidado e me certifiquei que o tal do Hempkings não estivesse mais ali. Descobri que todo o pavilhão dele havia sido dispensado um mês antes – o mês que eu cheguei à gruta, aproximadamente. Descobri também que meu novo nome era “Douglas”.

Aquele nome era errado.

Eu não me mexi. Não que conseguisse.

“Hempkings?!”.

Eu respirei fundo. Se eu continuasse, meu disfarce seria descoberto.

Eu me concentrei em engolir toda a dor e pôr novamente uma máscara.

“Desculpe...” eu disse, levantando a cabeça. O refeitório todo olhava pra mim. Tentei ignorar. Olhei para o uniforme do homem parado ao meu lado. “Jordan. Desculpe, er...”

“Major” ele esclareceu. Botou a mão no meu ombro. Eu olhei pra ela depois para o rosto de Jordan. Olhos pretos. Careca. Meio gordo. “O que foi, Hempkings?”.

“Eu só..” gaguejei.

Uma desculpa. Eu precisava de uma mentira. Uma desculpa, uma mentira. Só mais uma.

Nada saiu.

Eu estava mentindo há tanto tempo que parecia que nenhuma mentira era boa o bastante.

“É que eu estou... me sentindo...”.

O quê?

Uma merda? Um bosta? Um fracassado? Com medo? Com raiva? Frustrado? Um covarde?

“Culpado?” o major sugeriu.

“Culpado” eu repeti. “Nós... Estamos tirando tudo deles”.

O major suspirou. Ao invés de indagar algo pra mim, como eu pensei que ele ia fazer, ele se virou para o resto das pessoas.

“Cedo ou tarde alguém ia tocar nesse assunto. E eu só quero dizer que nós estamos fazendo isso pelo nosso país. Nós construímos esse mundo. Moldamos ele e fizemos dele o que ele é hoje. Precisávamos lutar pra isso. Nós lutamos.E agora vamos lutar de novo, para conquistar mais uma parte dele ” o major deu um passo a frente. “Porque ele é nosso”.

A frustração tomou conta de mim. Eles construíram esse mundo, e é por isso que ele está uma merda. Resisti ao impulso de dizer isso, e abaixei o rosto, voltando a comer em silêncio. Rafael me fitava. Eu ainda tremia, agora mais por raiva do que por outra coisa.

Outros soldados aplaudiram o discurso. Alguns não: só ficaram parados, voltaram a comer. Rafael voltou a comer lentamente, e o major se afastou. Eu limpei a garganta.

“Há quanto tempo está aqui?” eu perguntei para Rafael. Ele deu de ombros.

“Mais ou menos desde o começo” disse.

“O que eles fazem aqui?”.

“O que você acha?”.

“Acho que você tem que me responder”.

“Tá, meu Deus. O país acaba mas a sua arrogância não, ein?”.

“Me responda”.

“Ai! Certo. Eles... Tem fichas das pessoas que capturaram. Sei lá como. Perguntar não ia ser inteligente, porque eles iam desconfiar e tal... Ok, eu queimei a minha, a sua e a da mamãe. Mas a do papai não”.

“Fez bem”.

“Eu achei a do papai. E em cada ficha tem um cronograma do número das naves e onde elas vão estar”.

Eu parei de respirar.

“Você guardou uma cópia?” perguntei.

“Quem você acha que eu sou?” ele zombou. Tirou do bolso do uniforme quatro papéis, que eu arranquei das mãos dele e enfiei em meus próprios olhos.

O primeiro tinha minha foto. Eu estava com os cabelos na altura das orelhas, despenteados, lisos e ensebados: a foto do meu RG. Ali estava meu nome, meu RG, minha nacionalidade. E outras coisas, como o nome de minha mãe, de meu pai, minha data de nascimento. Havia, ainda, um esquema de tabelas com todas as naves e todos os estado em que já estive. Surpreendi-me. 57 naves, e já estive em todos os estados brasileiros – alguns, duas vezes.

O outro papel era de Felipe. A foto dele do RG estava ali também – os cabelos, os olhos, a cara de pastel... Tudo. A ficha era do mesmo formato que a minha, tudo o que mudava eram as informações. Poucos anos mais novo que eu, a mesma inteligência. Ali estavam as naves.

Comparei nossas fichas.

Senti meu coração parar.

Antes de qualquer coisa, eu olhei para a ficha de minha mãe. E ali estava.

Olhei para a de meu pai. Novamente. Ali estava o número.

169476.

O mesmo número repetido quatro vezes. Na minha ficha, na de meu irmão, na de minha mãe e de meu pai. Eu olhei para Rafael. Ele brincava com um osso de galinha, virando-o e tentando abri-lo com a faca.

Eu olhei para as fichas novamente.

169476. O número da nave. E... Minas Gerais. O estado em que a nave estava.

Eu, Rafael, minha mãe e meu pai estávamos na mesma nave em Minas Gerais. E pior ainda: no mesmo mês.

Uma diferença de 2 dias entre minha saída e a entrada deles.

Eu deixei os papéis caírem. Catei-os, depois entendi-os para Rafael e apontei os números. Ele parou até de respirar. Olhou pra mim, pro papel, pro teto, depois se recuperou.

“Que azar” disse, simplesmente.

Eu escondi os papéis.

“Não é coincidência” eu disse. “Eles sabem quem somos”.

“Eles?”.

“Os americanos”.


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Notas finais do capítulo

Vejo vocês nos comentários!



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