A Invasão escrita por Isadora Nardes


Capítulo 19
Abrigo dos Exilados, 5 de junho de 2015.




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189 dias desde que começou.

Lamento não escrever durante 10 dias. É que eu ainda estou em estado de choque, porque eles vão me obrigar a deixar de lado todo o meu instinto de autopreservação.

Eles vão me obrigar a fingir ser um americano.

Por algumas razões. Primeiro: eu falo inglês e não tenho sotaque nordestino, embora eu seja nordestino. É complicado. Segundo: eu posso facilmente passar por um jovem soldado americano – pelo menos foi isso que Gabriel disse. Eu nem sei como meu rosto está. Provavelmente muito sujo. Terceiro: eu sei pelo menos como uma parte das coisas funciona.

Ainda há questões em branco. Os soldados usam uniformes. O que diabos eu vou usar? Os soldados têm armas. Armas de verdade. Não uma arma do tamanho de uma Barbie, com pouca munição.

E, porra, o que é pra eu fazer?

Ok, tem uma lista enorme. Eu tenho que pegar comida, descobrir sobre o sistema deles, soltar alguns brasileiros de naves e, ainda por cima, dar um jeito de explodir alguma coisa por lá. Mas como eu vou fazer isso? Como eu vou entrar lá? Quem eu vou ser?

Gabriel me disse que talvez eu pudesse inventar uma desculpa para os guardas. Murilo disse que eles têm – nós temos? -- outra granada. Eu não vou perguntar como. Não sei nem acionar uma granada.

Eu tenho que me preparar pra isso. Até porque alguém pode me reconhecer. Eu fiquei dentro daquela nave, sozinho, durante um mês inteiro, acho. É bem fácil que alguém diga que não sou o que tenho que fingir ser.

Porque tudo é tão complicado?

De qualquer modo, estou tendo que voltar a treinar meu inglês.

Estou aproveitando os últimos momentos aqui. Tomei banho ontem, no rio que passa dentro da gruta. Foi o melhor banho da minha vida, sabe? Eu nem me lembrava como era. Eu me apoiei numa pedra, para evitar ser levado pela correnteza.

Enchi meus pulmões de ar e abri os olhos. Fiquei ali, parado, vendo as pontas do meu cabelo louro – que agora se estende até o pescoço – balançarem com a água à minha frente. Era ótimo. Eu podia ficar ali pra sempre. Quando tive que sair, eu fiquei um tempo no meu cubículo, parado, sozinho, esperando a água secar e me perguntando por que não fiz aquilo antes.

Depois, quando eu já tinha me vestido, Melissa apareceu na minha porta, com uma expressão de raiva e uma tesoura. Na hora, pensei que ela ia cortar minhas bolas fora, mas ela apenas se agachou do meu lado. Vi que ela tinha um espelho na mão.

“Você precisa cortar esse cabelo se quiser passar por um soldado” ela grunhiu. Estendeu pra mim o espelho.

Eu estava com o cabelo oleoso, despenteado e emaranhado na altura do pescoço. Havia fios e mechas desproporcionais caindo no meu rosto e grudando na minha testa. Observei meu rosto também: ao invés do formato de panqueca redonda, ele parecia uma panqueca amassada. Acho que eu nunca vou deixar de ser uma panqueca. De qualquer maneira, tenho alguns arranhões no rosto. Uma espinha ou duas, mas isso não tem importância nenhuma. Tenho uma cicatriz no pescoço, mas isso é antigo. Tenho uma marca vermelha na testa que eu não sei o que é.

Olhei pra Melissa. Talvez por ela ser garota e ser um pouco mais velha, seu estado era melhor que o meu. Ela só tinha um arranhão na bochecha. Ela havia pegado os menores fios que costumavam cair-lhe nos olhos e havia enrolado-os e feito um meio-coque atrás da cabeça. Os fios louro-cacheados eram bastante compridos.

Sem dizer nada, ela se sentou atrás de mim. Quando pensei que ela fosse começar a cortar, ela disse:

“Melhor tirar a camisa. Vai sujar”.

Eu tirei e joguei num canto.

Deixe-me ver: eu estava num cômodo, sozinho, sem camisa, com uma garota bonita cortando meu cabelo.

Eu olhei pra mim mesmo. Ao invés de músculos, o que a maioria dos garotos de 17 anos tem, eu estava magro. Mesmo voltando a me alimentar, eu continuava magro.

Eu ouvi Melissa cortando meu cabelo. Limpei a garganta. Ela me chamou:

“Pat?”.

“Oi?”.

“Por que você aceitou?”.

“Aceitei o que?”.

“Se passar por soldado?”.

Eu refleti. Na realidade, eu não tinha ideia. Pelo bem do grupo? Não, eu não era líder, e não me importava muito com toda aquela gente. Até porque, se a situação fosse o inverso, eles não fariam nada por mim. Talvez eu tivesse aceitado porque ninguém havia me perguntado nada. “O Patrick pode se passar por alguém lá de dentro”. “Pode, sim”. “É uma ótima ideia”. “Certamente”. “Vamos avisar pra ele?”. “Não. Não, tudo bem”. É claro que eu podia ter dito “não” na hora, mas eu não o fiz. Eu apenas dei de ombros. Afinal, minha vida parecia ter tão pouca importância perto de tudo aquilo.

“Você não vai falar?” Melissa perguntou, quando o silêncio ultrapassou dois minutos.

“Eu não sei” admiti. “Parece uma coisa certa”.

“Certa?” o tom de Melissa era cético. Ela largou a tesoura e se virou pra mim. “Certo?”

“Certo”.

“Porra, você pode morrer”.

“Provavelmente”.

“E você não está nem aí?”.

Eu me virei pra ela também.

“Melissa, se eu não for, vocês podem morrer também” eu disse.

“Se você for e não voltar nós também vamos morrer” ela retrucou. “E se você for e voltar, nós vamos morrer de qualquer jeito”.

“Todos nós vamos morrer de qualquer jeito. Um dia. Mas não hoje. Quer dizer, talvez eu morra hoje, mas...”.

Ela enfiou as unhas no meu rosto.

“Não diga isso” ela censurou.

“É verdade” eu murmurei. “Eu não posso enganar eles, mas eu posso tentar”.

“Eu vou cortar tua cabeça fora” ela ameaçou. “Se você morrer, eu te mato!”.

Eu dei risada.

“Certo. Então, vou tentar não morrer hoje. Ou não morrer antes de você. Mas por que isso é importante? Quer dizer, eu sou um inútil pro grupo”.

“Não, não é” ela me fitou. “Você é um tremendo vagabundo, Patrick”.

As pessoas sempre me disseram isso. Quando eu não fazia lição de casa, quando eu dormia nas aulas, quando eu ficava desenhando ao invés de copiar matéria. Eu só acertava algumas coisas nas provas, e fazia bons trabalhos de recuperação para garantir uma nota azul no boletim. No geral, eu não falava muito na sala. Os professores apenas diziam que eu tinha que cortar o cabelo, porque eu nunca gostei de cabelo muito curto.

“Eu sei” eu disse, por fim. Melissa não respondeu. Apenas voltou a cortar meu cabelo. Mais um cinco minutos, e ela disse:

“Acabei”.

Eu ergui o espelho de novo. Estava estranho. Não era tão curto a ponto de ser militar, mas estava curto o bastante a ponto de não parecer que eu estive cinco meses sem pentear o cabelo.

“Obrigada” eu disse.

Melissa se sentou na minha frente.

“Por favor, Patrick. Toma cuidado”.

“Eu vou” menti.

“Promete?”.

Olhei pra ela. Ela tinha uma expressão de expectativa e de preocupação.

“Eu não valho tanto assim” eu disse.

“Patrick”.

“Eu sou um vagabundo, não sou?” eu disse.

“Sim, mas a gente vai sentir sua falta. Eu, principalmente”.

“Vai nada” eu retruquei. “Você está 100% nem aí pra mim”.

Ela balançou a cabeça negativamente.

Mas eu sabia a verdade. Larguei o espelho e saí do “quarto”. Eu fui até o lugar onde Barbara costumava ficar – o canto do corredor. Ela estava lá, desenhando na areia com um pedaço de madeira.

“Ei” eu chamei.

“Ei” ela respondeu.

“Eu só vim dizer tchau. Eu acho que já vou”.

Ela me fitou.

“Já?”

“Hum-hum”.

Ela se levantou. Estendeu o livro pra mim.

“Leve. Mas eu quero de volta”.

Eu olhei pra ela e fiz que sim com a cabeça.

“Certo” concordei. “Eu trago de volta”.

“Promete?”.

Eu podia ter dado a mesma resposta que dei pra Melissa, mas não consegui. As palavras se entocaram na minha garganta e ficaram presas ali, se agarrando na borda, decididas a não saírem. Eu mudei a sentença:

“Claro” disse. “Prometo”.

Ela deu uma batidinha nas minhas costas. Eu comecei a andar, arrastando os pés, mas ela perguntou:

“Vai sem camisa? Não acho que vai seduzir muita gente por lá”.

Eu sorri, deixando escapar uma risada.

“Eu sou muito seduzente” brinquei.

“Muito” ela concordou.

Eu continuei andando. Quando voltei para meu cubículo, Melissa não estava mais lá. Enfiei minha camiseta abarrotada, e fiquei encolhido contra a parede, perguntando-me o que diabos eu estava fazendo.

Sempre houve alguma cosia que me definia. Uma frase, especialmente, de Mario Quintana. “Deus é mais simples que as religiões”. E eu sempre acreditei nisso. Quer dizer, eu não precisava orar nem ir à igreja. Eu tinha fé e isso bastava.

E, naquele momento, eu tinha que ter mais fé do que sempre tive. Mais fé do que no começo da invasão e mais fé do que quando fiquei sozinho. Mais fé do que todas as vezes que fui espancado – seja por meu pai ou pelos soldados. Mais fé do que sempre tive.

Meus pensamentos encaminharam-se para Felipe, meu irmão. Ele tinha os mesmos cabelos louros que puxou do meu pai, mas tinha os olhos azuis da minha mãe. Ele só tinha dez anos. Onde estaria? Provavelmente não estaria morto. Não, ele sempre foi um lutador. Eu tentava protegê-lo quando tudo ficava difícil demais até pra mim, mas se eu consegui, ele conseguiu.

Lembrei-me das palavras de Jeffrey; “Modificamos ele um pouco”. Jeffrey disse que não é muito melhor do que estar aleijado. Meu Deus, o que diabos fizeram com ele? Mesmo sendo forte, tinha 10 anos. Eu tenho que manter a fé: não é tinha é tem. Sim, ele tem que estar vivo. Eu vou achar o corpo dele e vou cortar as bolas dele fora se ele estiver morto.

Tenho que tentar descobrir algo sobre ele. Será que os americanos guardam fichas? De quem eles mantiveram sozinhos? De quem eles capturaram? De quem eles mataram? Se sim, ele está em uma das três listas. Eu sei que estou.


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Notas finais do capítulo

Expectativa? O Patrick não vai no próximo capítulo, ainda não; vai depois daquele. Enfim, vai rolar uma conversa com Gabriel. Uma CONVERSA.



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