Lagrimas de Sangue escrita por Dark Lace


Capítulo 2
Seja feita a sua vontade


Notas iniciais do capítulo

Era originalmente capitulo único, porém eu o dividi porque era monstruosamente grande. xD

Enjoy it! ^.~



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Ariel acordou de sobressalto, abrindo os olhos e puxando o ar violentamente, tanto que seu tronco arqueou. Parecia ter voltado de uma imersão profunda e demorada, arfava. A primeira coisa que percebeu foi a dor. Sua cabeça doía, os olhos estavam desfocados, as costas latejavam tão intensamente que era penoso estar deitada, seus membros pesavam e não conseguiu mexer um dos braços. Por sinal, onde estava? A última coisa de que se lembrava, era ter sido atingida por um raio em meio à batalha e agora estava em um estranha cela quadrada azul-sujo, meio apertada e baixa. A visão prejudicada atrapalhava, mas acreditava ter uma janela por onde entrava a luz e uma passagem pequena, fora alguns móveis. O lugar onde fora deitada também era estranho, rígido e o tecido fazia sua pele coçar, sem contar o calor. Meu Deus, mas que calor infernal era aquele? E por que estava toda molhada?

Tentou mover o corpo, mas a dor em suas costas era insuportável. Teria sido apanhada pela tropa de Mikhail? Presa, talvez? Mas não havia nada assim na Cidade de Prata. Precisava sair dali. Rodou a cabeça em busca da corneta, havia algo de brilho metálico sobre uma mesa, encostada à parede. Moveu a perna numa nova tentativa de se levantar, mas esbarrou em algo que foi ao chão. De imediato uma caixa preta se iluminou e passou a berrar impropérios. Era uma fera da Besta? Esticou o braço para o cinto, apesar de saber que, certamente, não portava mais sua espada. Estava muito lenta.

A porta então se abriu. Ariel viu uma mulher entrar, carregando algo como uma bacia.

— Ah, olá, minha querida! Que bom que acordou — sorriu ela e apoiou a bacia na mesinha ao lado da cama.

Ariel não podia enxergar sua face com precisão, mas sabia que se tratava de uma humana. Havia ido parar na esfera mortal com aqueles seres carniceiros.

— Deve estar confusa, isso é normal. Você bateu a cabeça com muita força — completou ao ver que a mulher lhe encarava sem nada falar. — Lembra-se de alguma coisa? Tem alguém pra quem queira ligar e chamar? — A estranha continuou calada, com a testa franzida, parecia desconfiada. Oras, era ela quem devia estar desconfiada, afinal. Afundou um pano limpo na bacia, mas ao tentar aproximá-lo dela, viu-a recuar, assustada.

— Calma, está tudo bem — sorriu com ternura. — Não vou te fazer mal. Sua cabeça está machucada e teve febre durante a noite, só quero refrescá-la um pouco. — A expressão da mulher não suavizou, tentou se aproximar de novo e, dessa vez, apesar da cara desconfiada, ela não recuou.

Aquilo não parecia certo à Ariel. E o que era febre?

A mulher era uma senhora, frágil até, mesmo ferida, tinha certeza que a derrotaria em dois movimentos, por isso a permitiu se aproximar. A senhora pôs um pano frio em sua fronte e com outro lavou seus braços e tronco, exalava um aroma maravilhoso que fez sua cabeça pesar e nublou seus olhos. De repente, toda raiva que sentia desapareceu, as dores amainaram e foi englobada por uma doce neblina.

Quando despertou, novamente, sua situação havia mudado. A cabeça já não doía tanto e a vista entrara em foco, apenas as costas e ombro enfaixado incomodavam. Sentou-se. Era noite lá fora e não sabia por quanto tempo dormira. Mikhail devia estar à sua procura e, na verdade, já deveria tê-la encontrado.

O calor continuava terrível. Levantou-se e o cômodo girou, derrubando-a na cama novamente. Levou a mão à cabeça, mas que era isso? Tentou novamente, mais devagar dessa vez, e conseguiu ficar de pé. Andou pelo quarto com dificuldade, o cenário ainda estava instável, mas precisava partir. Abriu a porta.

A casa era pequena e simples, toda num tom de amarelo feio e, para sua infelicidade, tinha dois andares. O fato dos degraus não se manterem parados foi um obstáculo, agarrou o corrimão para o caso de cair.

— Hei, Bela Adormecida, o que está fazendo?

Ariel ergueu a cabeça ao ouvir a voz grave, um homem estava de pé no fim da escada, abraçado com volumes. Era alto e de boa constituição física, o cabelo desgrenhado lhe caía no rosto e estava sujo, cheirava a álcool e vícios. Mais uma vez a mão de Ariel voou para a espada perdida. Trincou os dentes e pensou em correr, mas no primeiro passo, seu pé vacilou.

Ângelo tinha acabado de chegar quando viu a garota no alto da escada, assustada, mas determinada. Apesar de toda estropiada, ela parecia valente e burra, pois, pelo visto, decidira que estava boa o suficiente para sair correndo e iria rolar a droga da escada. Largou os pacotes do mercado no chão e correu, a alcançou antes que ela passasse do segundo degrau, mas perdeu o equilíbrio e quem terminou todo ferrado, lá embaixo, foi ele, com a baixinha sobre si.

— Mas que beleza — disse Ângelo, jogado no chão. Verificou se não tinha quebrado nada e se sentou. — Você está bem, garota?

O mundo de Ariel ainda girava e o ombro pulsava em ondas de dor. Droga, só queria ir embora e agora devia algo ao humano.

— Sinto muito pelo inconveniente — respondeu, sentando-se também. Sua voz estava estranha.

— Inconveniente? — Desatou a rir. — Cê ‘tá de sacanagem, né? Me fazer rolar a escada é uma desgraça, não um inconveniente, garota. — Conteve a gargalhada e enxugou os olhos, as costelas doíam um pouco. Tomara não tivesse quebrado nenhuma. — Mas ‘tá tranquilo, pelo menos descobri que você sabe falar. Minha mãe já tava achando que era muda. — A cara da menina estava engraçada, ela o olhava como se fosse uma vaca de pijamas. — Ok, linda, vamos pro quarto. — Levantou-se e fez menção de erguê-la no colo.

— Não quero voltar, preciso ir embora e não admito que me leve nos braços — disse, autoritária.

Ângelo levantou a sobrancelha, como era?

— Garota, olha só, você está pior que trapo velho e com a camisola da minha mãe, não vai pra rua assim. Até que esteja boa ou que alguém apareça pra te buscar, vai ficar no quarto. Porque não passamos essa semana inteira cuidando de você para que dê uma de maluca e jogue todo nosso esforço fora, ok? — Ergueu-a no colo e a carregou escada acima.

Uma semana?!

— Me ponha no chão! — Dormira por sete dias?! Precisava se apressar, como estaria a batalha sem ela para liderar?

— Já disse que não. — Terminou de subir, abriu a porta do quarto e a colocou na cama. — Pronto e nada de se revoltar, ok?

A palavra caiu como uma luva para Ariel e ela deu um sorriso irônico.

— Não posso prometer, sou boa em me revoltar. — Manteria a dignidade, já que suas forças, pelo visto, ainda não haviam voltado. Do contrário, aquele humano jamais a prenderia ali com sucesso.

— Verdade? — Ângelo sorriu também e cruzou os braços. — Pois eu sou muito bom em persuadir esquentados. Agora fique quieta aí um instante que vou trazer sua comida.

Disse e saiu do cômodo.

Ariel estava frustrada. Mikhail não a havia vencido, mas a tirara da luta. Não podia tocar a corneta em busca de ajuda, pois se Mikhail e seus anjos a estivessem procurando, encontrá-la-iam em segundos.

Levantou-se e foi até janela, era apertada, não conseguiria passar por ela com suas asas. Então não tinha jeito, teria que esperar suas feridas curarem para voltar e rezar para que seu exército aguentasse até lá. Rezar? Mas para quem? O Pai nunca a tinha ouvido. O pesar se abateu sobre ela e o sentimento de solidão quase a sufocou.

— Voltei com o rango — disse Ângelo, escancarando a porta. — O que agora? Vai pular da janela? — riu.

— Pensei nisso, mas ela é pequena demais — respondeu automaticamente.

Ariel o olhou, ele trazia uma bandeja com três pratos. Por que aquele homem continuava tentando manter uma conversa? Seria por sua condição? Saberia ele que ela era um anjo e a levaria em algum culto fanático no qual beberiam seu sangue em nome do Pai? Já havia ouvido algo do tipo entre os Anjos da Guarda. Ah, adoraria que o fosse, pois os degolar, um a um, iria acalmá-la.

Ângelo ficou sem saber se a garota estava brincando ou não, sua expressão era séria e triste. Talvez fosse maluca.

— Tudo bem. — Colocou os pratos na mesa e se sentou. — Posso comer com você? — perguntou enquanto ela ainda o olhava de maneira estranha. — Não gosto de comer sozinho e quase nunca tenho companhia.

Ariel estreitou os olhos. Já ouvira falar que eles eram extremamente carentes, mas, no momento, devia a vida àquele humano. Sentou-se em silêncio.

Ângelo a olhou de esguelha, ela beliscava o prato.

— A mulher que está cuidando de você é minha mãe, Marta. Ela disse que você é muito forte e teve sorte, podia ter morrido. — Deu uma garfada e olhou para a garota, não viu reação nela. — Ela cuida de você de dia, porque à noite faz plantão no hospital, é enfermeira; e por isso eu fico de olho à noite. Agradeça-me por vir sempre fechar a janela, ou os mosquitos a teriam levado. — Riu, mas ela não o acompanhou.

O silencio pesava. Algo na atitude da mulher incomodava Ângelo, ela parecia estar tão longe que tinha dúvidas se poderia tocá-la ao estender o braço.

— Eu encontrei você, sabe? Estava caída perto do Mercado Público e já era madrugada. — Garfou, mastigou e engoliu. — Tava toda ensanguentada e rasgada. De início achei que estava morta, mas quando eu te chutei, você gemeu. — Ela o encarou. — Ow, ow, foi de leve, ok? Só pra me certificar — ratificou com as mãos para cima. — Daí te trouxe pra casa. Precisava ver a cara da minha mãe, quase tomei uma surra aquele dia, depois de burro velho.

Apesar de não compreender a necessidade de falar daquele homem, a informação que ele dera fora válida. Quando foi atingida pelo raio, devia ter sido arremessada para fora do portão, mas e suas coisas? Sua armadura e espada?

— Você precisa comer — disse Ângelo ao terminar seu prato e ver o da outra quase intocado. — Não vai melhorar se não comer. — Recebeu um olhar frio e autoritário. Quem quer que fosse essa baixinha, ou era prepotente ou importante, talvez os dois. — Me pareceu que tinha algum lugar pra ir, não vai chegar lá sem comer. — Isso pareceu convencê-la e a viu segurar o garfo. Ângelo sorriu.

Ele a esperou terminar e recolheu tudo.

— Trago seus remédios mais tarde, descanse um pouco. — Sorriu, novamente, e saiu.

O homem tinha razão quanto ao fato de que precisava se fortalecer caso quisesse ir embora. Olhou o céu antes de se deitar e fez uma prece rápida: “Pai, proteja meus irmãos, seus filhos, não deixe que caiam mais que o necessário, o mínimo. ”

Após a prece o sentimento sufocante arrefeceu.

~*~

Mais tarde, Ângelo subiu com os remédios e encontrou a garota dormindo. Depositou tudo na mesa e puxou uma cadeira para perto da cama. Ela era estranhamente incrível. Assim que a achou, ficou sem saber se era homem ou mulher, mas que era bela, ah, era. Seu rosto tinha traços delicados, porém marcantes. As maçãs eras altas e arredondadas, o queixo bem delineado e forte, o nariz fino e empinado. A tez clara lembrava o mármore bege de seu trabalho, do qual nunca lembrava o nome e sabia que era caro. Os lábios rosados em botão e os fartos cachos acobreados o faziam lembrar aquelas pinturas que vira nas galerias de arte e em museus quando era criança, em seus passeios de escola. Mas apesar de toda a beleza delicada, algo em sua estrutura transpirava virilidade, dava aquele arrepio que se sente quando os grandes líderes e cavalheiros faziam seus discursos motivacionais antes das batalhas épicas, nos filmes.

Desde que a garota chegara ali o clima da casa mudara. Sua mãe, que tinha problemas em dormir por causa do trabalho, ressonara feito bebê na última semana e até ele próprio se sentia mais leve, livre, protegido... Era uma sensação estranha que se intensificava com a proximidade da mulher. Não sabia quem ela era, mas graças a Deus que a encontrara. Ela era especial e, exatamente por isso, sabia que estava encrencado. Nessa vida injusta, pessoas especiais sempre são caçadas, coagidas e exploradas de alguma forma e aqueles que as tentavam salvar, se fodiam. Fato.

Bem devagar, tirou um cacho que teimava em prender-se aos cílios da garota e a encarou com ternura. Deslizou os dedos por sua bochecha. No dia seguinte descobriria seu nome.

~*~

Ao acordar, Ariel se inteirou da rotina. Marta entrava em seu quarto de manhã cedo e lhe banhava. Descobrira o motivo de seus sonos serem tão relaxantes, tinha Alfazema fresca na água. Na Cidade de Prata eles cultivavam campos de Alfazema, era uma erva poderosa e sagrada, um presente do Pai à Terra, para que seus filhos pudessem se aproximar dele sempre que necessitassem. Seu poder purificador era ampliado de acordo com a pureza da alma de quem usava, com os anjos, podia salvar vidas. Após o banho, recebia pequenas pedras amargas que aliviavam a dor e pesavam em seu espírito, nublavam os sentidos, então vinha a refeição e se deitava. Era acordada por Marta para nova refeição e lhe deixavam disponível a “TV”, a tal caixa que gritava impropérios. À tarde recebia um lanche e a mulher se despedia para o trabalho, algumas horas depois chegava o homem tagarela.

Ariel só interferiu nas pedras amargas, não lhe faziam bem, pediu que não mais as trouxessem, eles insistiram e ela não tomou. Três dias disso se passaram e ela entendia cada vez menos. Cortou a conversa com o homem, que disse se chamar Ângelo, que ironia. Ele lhe trazia a janta, comiam juntos e ela o despachava do quarto.

Por que aqueles humanos a tratavam com tanta caridade? Já ouvira de seus irmãos sobre a tal bondade e solidariedade humana, mas nunca a tinha visto. Via humanos se aproveitarem dos mais fracos, os usarem como pedras para sua subida. Por isso aquela experiência lhe estava sendo tão estranha, em nenhum momento tentaram lhe manipular ou usufruir de seus dons. Na verdade, agora duvidava de que soubessem a verdade.

Naquele dia, quando Marta saiu para trabalhar, Ariel quis vasculhar o ambiente. Saiu do quarto e encarou as escadas, ficariam para daqui a pouco. Andou pelo segundo andar, havia mais dois cômodos, um estava trancado e o outro devia ser o quarto de Marta, uma pesada cruz de madeira fulgurava na parede sobre a cama.

Desceu as escadas devagar, como imaginava, suas pernas já estavam firmes o suficiente. O andar de baixo também era simples e o que mais chamava atenção era uma enorme imagem da Virgem Santa na única parede que não estava abarrotada de quadros, relógios e penduricalhos. No centro da mesa de 6 lugares, que ocupava quase todo o espaço da sala, ficava um jarro com Alfazemas e trigos. Sorriu, e pegou um ramo. Apenas o aroma já a revigorava.

Aquela família era cristã, amavam o Pai e parecia verdadeiro, não apenas uma fachada para suas ações hipócritas. Contudo, se baseava no fundamento da fruta podre na cesta, mesmo que aquela família tivesse fé verdadeira, em algum momento seria corrompida.

Foi durante esse pensamento que Ângelo chegou carregando seus pacotes. Percebera que o homem sempre trazia a comida para o dia seguinte.

— Nossa, olá! — disse, depositando os sacos de papel sobre a mesa e abrindo-os. — Achei que estava me ignorando, com sucesso.

O encarou, ele estava novamente sujo e desgrenhado, cheirando a álcool e vícios.

— Não o estava ignorando. — Uma curiosidade repentina a acometeu. — Onde estava?

— Como? — Ângelo parou o que estava fazendo na mesma hora. A garota não era de conversar, o ignorara por dias e de repente vinha lhe pedir satisfações? — Estava trabalhando. Por quê? — Voltou a desempacotar os mantimentos.

— E em que trabalha? — Cruzou os braços, ao menos ele não chafurdava na escoria apenas por prazer, ainda assim era irrelevante.

Ângelo a olhou novamente, a pose da baixinha quase a deixava maior, com o peito inflado e os cachos jogados nos ombros.

— Eu é que pergunto, por que está tão interessada na minha vida, assim, de repente? — disse, abraçando os vegetais e indo para cozinha.

— Não estou interessada na sua vida, só não entendo. — Remoeu um pouco suas dúvidas, seria incompreensível para os mortais?

— O que você não entende? — gritou do outro cômodo.

— Sua família é abençoada, sua mãe e você tem fé verdadeira, mas apesar disso e de todo o amor que lhe é oferecido você vai a antros diariamente, escolhe a corrupção. — A frustração transpareceu em sua voz e não foi uma pergunta. — Por quê?

Ângelo acabou de guardar os vegetais e fechou a geladeira com um baque. Voltou a sala e se escorou no portal.

— Do que você está falando, garota? Do que acha que sabe? – Seu tom foi amargo e hostil, ele estava ciente disso. Aquela maluca perdida não lhe daria lição de moral, ninguém tinha esse direito, muito menos alguém como ela.

Ariel se calou, viu a expressão sempre sorridente do homem se alterar para uma mais violenta, raiva e incompreensão passaram por seus olhos castanhos.

—Sim, somos cristãos! Sei lá se temos fé verdadeira ou não, mas depois de tudo, não deixamos de acreditar. Isso deve valer de alguma coisa. — Seu rosto se entristeceu e os ombros caíram. — Trabalho no bar de dois clubes noturnos que também funcionam como inferninhos, mas minha mãe não sabe disso. Ela acredita que sou auxiliar de cozinha em um restaurante no outro bairro. — Desencostou do portal e ergueu a cabeça, encarou a garota com confiança. — Mas não faço nada de errado! Posso servir bandidos, traficantes, assassinos e ladrões, mas isso não me faz um deles e não me venha com discurso moralista! É assim que alimento minha família, dinheiro é dinheiro!

Ariel esperou a fúria dele passar, havia entendido errado, quase pode ouvir seu amigo falando por suas costas.

— Não pretendo fazer qualquer discurso, ou julgá-lo. Só queria entender. — Suavizou a voz e a expressão, já se sentira acuada e não faria o mesmo com o homem que vinha cuidando dela.

Ao ver os traços decididos da garota assumirem um ar terno, sua ira assentou e então veio a melancolia.

— Me desculpe — disse, sentando em uma das cadeiras. — Eu não deveria ter me alterado. Vou explicar melhor. Senta aí. — Puxou a cadeira ao seu lado, sentando-se também.

Ariel hesitou, mas achava que devia isso a ele, seu julgamento precipitado o magoara. Apesar de que jamais se imaginara sentada, conversando com uma daquelas criaturas.

— Há dez anos, morávamos em outra cidade, eu, mamãe, meu pai e meu irmão mais novo, Felipe. — Começou depois de Ariel se sentar. Cruzou as mãos sobre a mesa e deixou o corpo pesar nos cotovelos. Ainda não sabia o porquê de estar tendo aquela conversa com alguém que mal conhecia. — Éramos felizes e tudo corria bem. Mamãe não trabalhava ainda, ficava em casa cuidando da gente, até que um dia meu pai sumiu. Procuramos por ele por meses, os familiares e amigos ajudaram, mas só tivemos notícias quatro meses depois quando um grupo de marginais apareceu na porta de casa, cobrando dinheiro que meu pai devia e notificando sua morte.

O relógio da sala despertou às 8 horas da noite, momento do jantar de Ariel.

— Depois disso minha mãe adoeceu de preocupação. Não tínhamos dinheiro algum e a dívida era muito alta. Não tivemos tempo para o luto por meu pai. O grupo voltou dois meses depois e avisou que nos matariam se, na próxima vez, não entregássemos o dinheiro. — Ângelo fazia pausas entre uma sentença e outra, como se digerisse cada uma delas. — Uma tia disse para fugirmos e conseguiu um lugar seguro para ficarmos por algum tempo. Fomos de ônibus e fizemos várias baldeações, para dificultar se nos procurassem, minha tia disse ser necessário. Ficamos na casa de um conhecido dela, por um ano, sem sair daquelas paredes até que minha mãe resolveu ser seguro voltar a viver.

Ariel olhou para os quadros, havia várias fotos nas quais aparecia um menininho de cabelo escuro e encaracolado, com bochechas gordinhas.

— Mamãe comprou essa casa e foi uma festa quando nos mudamos, até meu irmão desaparecer. Foi num dia de verão, estávamos no parquinho quando aconteceu. Achei que mamãe morreria. Dois dias depois, Felipe apareceu na porta de casa, sozinho. Foi muito estranho, mas só pensávamos em agradecer até que ele adoeceu. Os médicos não descobriram o que ele tinha e meu irmão, de 5 anos de idade, agonizou por quatro meses, morrendo aos poucos. Ele estava irreconhecível no fim. — Lágrimas escorriam por seus olhos. — Eu tinha 12 anos na época e achei que alguém tinha feito algo com ele, pensei em vingança por muito tempo. Minha mãe entrou em depressão e minha tia quis que eu fosse morar com ela. Não fui. Desde então eu me esforço para cuidar do que restou dessa família.

Agora Ariel entendia menos ainda. Porque uma família de fé tão forte passara por tudo isso? Por que o Pai não os auxiliara?

— Mas... — fungou e limpou o rosto com o braço — minha mãe não deixou de crer em nenhum momento. Ela rezava fervorosamente e dizia que tudo tinha um propósito, que Deus zelava por nós e que tudo daria certo se confiássemos nele. Apesar de nada ter dado certo até agora, ainda confio. Realmente não sei o porquê e não entendo isso que você disse, de sermos abençoados. Não somos. Pode ser apenas ingenuidade minha ou talvez seja melhor pensar que existe mesmo um plano por trás de toda essa merda, que vai dar em alguma coisa boa. É melhor do que acreditar que sofremos por sofrer e ponto.

A boca de Ariel estava aberta.

O telefone tocou e Ângelo correu para atender. Enquanto ele falava, Ariel estava estupefata, como o discurso dele podia ser tão parecido com o de seus irmãos? Os filhos adorados do Pai possuíam sua total atenção, as guerras e pestes eram frutos de seus atos egoístas, mas uma vez corretos, eram protegidos e salvos.

O cheiro de enxofre interrompeu os pensamentos do anjo. Ariel os sentiu chegar, 4 ou 5. Levantou-se e lamentou novamente pela espada, precisavam fugir dali, mas antes que chegasse até Ângelo, ele veio e seu rosto era a máscara do desespero.

— Preciso ir! — gritou ele, agarrando uma coisa pendurada num prego e dando às costas.

Ariel não podia permitir que ele saísse sozinho agora.

— Espera! Eu vou com você!

— O que?! — Ele parou com a porta aberta.

— Quero ir com você, não posso deixá-lo sozinho. — Disse adiantando-se a ele na saída.

— Mas garo-

— Ariel. Meu nome é Ariel. Eu já não estou mais tão ferida, nem com a camisola de sua mãe e de nenhuma forma vou lhe abandonar neste momento. — Marta havia lhe dado um vestido quando negara umas calças estranhas e azuis, mas ainda que estivesse com aquela tal ‘camisola’ iria escoltá-lo. Se demônios estavam a persegui-lo, a culpada era apenas ela.

E era num momento como aqueles que descobria o nome dela.

— Está certo, Ariel. — Bateu a porta e trancou.

Eles correram, ele preocupado em pegar o primeiro táxi que passasse, e ela em como os defenderiam das 5 bestas que os perseguiam. Por sorte o carro chegou antes das feras.

— O que está havendo? — Ariel perguntou assim que o carro entrou em movimento. Arfava devido a corrida e isso era estranho, não devia se cansar assim tão fácil, fora a sensação de ardência nos membros. Havia algo de errado com ela.

— Minha mãe — pontuou. — Desmaiou de repente no trabalho e não conseguem acordá-la.

O desespero estava lá, na voz de Ângelo, e ainda sim Ariel o viu tirar um terço velho da sacola que carregava e começar a rezá-lo.

A prece ressoou em seu âmago e alimentou sua alma, o cansaço e desconforto desapareceram. A fé humana promovia milagres, fortalecia a si e a seus irmãos, forjava escudos, reforçava a guarda, mas, aparentemente, eles nunca tiveram fé o suficiente. Esperava que o Pai também o estivesse ouvindo, aquela família não merecia mais sofrimento.

O carro parou em frente ao complexo do Hospital Municipal e, em dez minutos, Ângelo a arrastou pelos corredores labirínticos até a ala de sua mãe.

— Ângelo! — gritou uma enfermeira, amiga de sua mãe, que vinha correndo pelo saguão. — Graças a Deus que chegou! Não sabemos o que houve. Ela estava bem até há pouco, disse algumas coisas desconexas, teve uma convulsão e apagou.

— Onde ela está? — perguntou, aflito.

— Vem, eu te levo — disse, arrastando-o por uma porta.

Nessa comoção, Ariel foi esquecida. Calculava poucos minutos até que as bestas os alcançassem, mas havia outro problema. Aquele lugar... o que era ele? Andou pelo corredor vendo as pessoas mutiladas, doentes e moribundas, ao lado dos familiares que choravam e lamentavam. O ar era pesado e fedia a enxofre. Havia demônios ali, por que não podia vê-los? Um grito chamou sua atenção, vinha da porta onde Ângelo havia entrado. Correu até ela. Na sala havia equipamentos diversos, que emitiam bipes estridentes, ligados a uma pequena cama de metal e sobre ela estava Marta. Os humanos se moviam como formigas pelo local, gritavam nomes estranhos e tentavam, em vão, afastar Ângelo que estava agarrado à mão da mãe.

O homem gritava, clamava ao Pai por piedade, compaixão e proteção. Era isso que Marta havia ensinado a ele, devia funcionar, tinha que funcionar. Ela dizia para nunca perder a fé, mas estava tão difícil. Ele caiu de joelhos e cruzou as mãos, rogando, implorando.

Onde estava o Pai? Onde estava Ele quando seu filho necessitava? Aquela cena fez mais um pedaço do coração de Ariel se partir.

Ângelo era um homem bom. Passara pouco tempo no mundo mortal para fazer tal julgamento, mas o fazia em vista das ações dele: ele acolhera uma estranha em sua casa, dividira o pouco que tinha, dera-lhe atenção e carinho. Sofreu toda a vida, porém não se amargurou, seguiu acreditando, confiando, tendo fé no Pai, no destino escolhido para os abençoados. Era isso que ele merecia, mais dor? Era isso que mereciam seus irmãos? Não...

O cheiro de enxofre se acentuou enquanto o corpo de Marta sacudia-se com os choques na maca.

Andou até o lado de Ângelo, podia sentir seu espírito pulsar.

— Homem — chamou, mas ele não pareceu ouvir. — Ângelo! — Sua voz potente reverberou no quarto e ele lhe olhou em meio às lagrimas. — O Pai não vai escutar e sua mãe perecerá.

— Não! Eu tenho fé, eu... — Ele gritou, depois a voz morreu e passou a balbuciar, misturando as palavras.

— Não perca sua fé, mas a deposite em mim! Preciso que confie se quiser salvar sua mãe e a nós — disse e estendeu a mão, os demônios respiravam em seu pescoço.

Ângelo a encarou, ela estava diferente, parecia cintilar. Podia ser efeito dos olhos molhados, mas algo naquela visão o inspirou, era uma corda de salvação. Agarrou a mão estendida.

— Ariel, você é esquisita, mas tenho fé em você. Não sei porque, mas tenho. — Seu peito se encheu de ternura quando pronunciou essas palavras, teve esperança.

Ariel deixou a onda poderosa lhe varrer, a força da crença dele preencheu seus músculos e espírito. Fechou os olhos, sentindo o corpo expandir e quando os abriu, chamas flamejavam em suas pupilas, então pode ver todos os 7 cães no cômodo, rosnando e cacarejando.

“You’re not alone

Together we stand

I’ll be by your side

You know I’ll take your hand”

Sem soltar a mão de Ângelo, ergueu-o do chão e se aproximou da mulher. Os outros humanos pararam de se mexer em volta dela, retiravam suas máscaras e um bipe contínuo soava ao fundo. Estendeu a mão sobre a testa feminina e uma tênue luz dourada emanou, envolvendo o corpo de Marta.

— Esta alma não pertence a vocês, caídos! Eu os comando que vão, em nome do Pai! — disse arrogante e raivosa, entoando a prece sagrada ao final. As bestas debandaram, correndo do quarto em dor, guinchando sua fúria.

Ângelo observou tudo aquilo espantado, quem era Ariel? Havia um cheiro terrível no ar. O que foi a luz? Todos as pessoas a olhavam pasmas, talvez decidindo se chamavam ou não a segurança, quando o bip contínuo foi quebrado e se tornou novamente intermitente. Ariel puxou o homem do cômodo em meio a exclamações de “milagre”.

— Ariel, o que foi? Eu preciso voltar lá e o que foi aquilo?! — Ângelo se debateu, sua mãe estava viva! Não sairia de perto dela agora, mas precisava saber o que era aquilo tudo.

— Ângelo, sua mãe não vai acordar, não ainda. O que fizeram foi além dos meus poderes atuais, estou fraca, porém ganhei mais tempo. Isso é maior do que imagina, maior do que você e sua mãe. — Enquanto falava, raios de luz entravam pelas janelas. — Temos que sair daqui. Corra! — disse, puxando-o pelo corredor.

— Como é? Quem fez o quê? Do que você está falando? Onde a gente tá indo?! — Que loucura era aquela?!

— Não faça perguntas, só corra! — Passou escorregando por algumas salas, o lugar tinha muitas portas e corredores iguais, acabou perdida num beco sem saída. — Droga.

— Será que você pode me explicar o qu- — Puxou o pulso da mão da garota quando ela parou. Tentou aproveitar a chance para interrogá-la, mas foi interrompido por uma rajada de vento que passou entre eles, a centímetros do seu nariz, e se chocou contra a janela do corredor, espatifando-a. — Meu Deus! — Olhou para o corredor, procurando a origem daquele troço e viu quando um foco brilhante se formou no ar e veio na direção do peito de Ariel. Antes que pudesse pensar a respeito, passou os braços por sobre os dela, a puxou com violência para si, apertando-a contra o peito, e pulou da janela.

Ariel percebeu seu movimento e no momento do salto tentou libertar suas asas, mas elas não responderam.

Caíram na piscina lateral do Hospital. Ângelo sabia que ali ficava a estação de recuperação dos internados, passou o final da infância brincando por ali, e torceu para que a piscina fosse mesmo onde lembrava. Graças a Deus era. Afundaram na água gelada. Na queda, Ângelo havia girado o corpo afim de que fossem suas costas a chocar-se com a água, elas agora doíam como o inferno, afinal, estavam no quinto andar. Mas já era uma baita sorte estar vivo e sentindo as pernas.

Saíram às pressas da água e, dessa vez, foi Ângelo quem rebocou Ariel pelas ruas vazias. Era meio da madrugada ainda. Não sabia se as coisas que lançaram aquilo estavam atrás deles (porque alguém tinha que ter lançado aquele troço), deduzia que sim e que era a eles a quem Ariel tinha se referido, então, por garantia, queria se distanciar.

Durante a corrida, o chão explodiu duas vezes momentos depois de passarem. Pois é, isso confirmava sua teoria. Mais à frente era o Mercado Público, conhecia-o como ninguém, conseguiria se esconder lá se conseguisse chegar, pois a última explosão havia pego seu pé esquerdo. Correu para a entrada e derrubou uma tenda de laranjas ao passar, esperava que os atrasasse, seja lá o que fossem. Dez minutos depois, estavam enfiados sob o balcão de propagandas.

(Sussurros)

— Que tal você começar a me explicar agora? — disse Ângelo, encolhido e agarrado aos próprios joelhos. O espaço era muito apertado e ainda estavam molhados.

Ariel respirou fundo e encarou o homem.

— Sou um anjo e estou sendo perseguido por ter me rebelado contra Mikhail, A Espada de Deus. — A verdade era sempre o melhor caminho a se tomar, mas a cara de Ângelo quase a fez duvidar.

— ... — Aquela mulher era mesmo lunática. Anjo? Mikhail? Oi?

— Que bom que entendeu. Agora temos que-

— Como assim entendi, você está louca? Por acaso tinha fugido de um hospício quando te encontrei? — Ele procurou nela indícios de brincadeira, por mais que aquele fosse um péssimo momento para isso, mas não encontrou.

— Não sou louca. Sou um anjo, já disse, Mikhail e suas tropas estão atrás de mim e se não sairmos daqui logo, vão nos pegar.

Ângelo ainda estava em choque, seu queixo devia estar no chão. Ou aquilo era verdade ou ela acreditava que era, se bem que coisas estranhas aconteceram desde que a havia encontrado, mas daí a ela ser um anjo? Anjos existiam mesmo? Olhou bem para o rosto ao mesmo tempo delicado e forte, os cachos cobre pingavam e mesmo no escuro ela irradiava uma luz dourado-clara, se concentrou nos olhos, algo fluía dentro deles, eles queimavam sua alma como brasas, vasculhavam seu coração e lhe diziam que tudo ficaria bem, que ele estava seguro. Ok, se iria acreditar nisso, onde estavam as asas?

— Está bem, Ariel. Vamos supor que isso que me disse é sério, então o que faremos? — Apertou mais os joelhos de encontro ao peito. Sentia-se como uma criança confabulando contra os pais. Por que Ariel se rebelara? Ela era como Lúcifer?

— Não faremos nada. Você vai continuar aqui e eu vou sair, não precisa se envolver — disse, começando a se esgueirar para fora do palco.

— Mas é claro que não! — Seu tom se alterou e os dois congelaram. Agarrou o pulso feminino. — Você não vai a lugar nenhum sem mim.

— Ângelo... — Por que o humano insistia nisso? Talvez por sua mãe? Ou agora que sabia de sua origem se achava especial? Não teria entendido o perigo que passava?

— Sem essa de ‘Ângelo’, não vou te deixar sozinha nessa — foi enfático e irredutível. — Agora me diga o que precisamos fazer.

“Por quê?” Era tudo que passava pela cabeça de Ariel. Por que aquele humano fazia isso por ela? Antes que chegasse à uma conclusão o palco voou de cima de suas cabeças e se quebrou contra a parede no fundo do galpão.

Ângelo encarou o vazio à sua frente, perdido. Ariel o viu estremecer e procurar os atacantes no ar, ele não podia ver os dois guerreiros à frente.

 Arcanjo Ariel, viemos em nome do Príncipe. Você está presa e será condenada, entregue-se em paz. — Os dois disseram em uníssono.

— Sinto muito, irmãos, entreguem meus cumprimentos a ele, mas eu não irei. — disse e girou o corpo, na tentativa de agarrar a espada na bainha de um deles, mas foi afastada com um safanão que lhe arremessou nos escombros do palco.

— Entregue-se, Arcanjo, ou a levaremos a força. — dito isso, eles marcharam em direção a ela.

Ângelo não pode enxergar com quem Ariel falava, mas a viu ser arremessada na parede e ouviu a madeira se quebrando quando ‘a coisa’ se aproximou dela. Iam matá-la! Seu coração apertou no peito. Por quê? Mal a conhecia... mas a luz que irradiava dela, seu cheiro e feições haviam ficados impressas em sua alma e nada tinha a ver com o fato dela ser um anjo ou uma louca. Estava começando a amá-la e não perderia mais uma pessoa querida.

Levantou-se do chão e correu na direção de Ariel, cobrindo-a com o corpo, a madeira parou de estalar no mesmo instante, ‘a coisa’ havia parado.

— Ariel, eu vou te tirar daqui, aguenta firme. — Ela ainda estava estirada no chão e o lado da cabeça sangrava. Agarrou-a com um dos braços, bem apertado e rezou novamente, se Deus era mesmo tudo aquilo que sua mãe falava dele, então devia ajudar agora, afinal ela era um anjo! Os filhos preferidos de Deus!

‘A coisa’ continuava sem se mexer, mas ainda estava ali, podia sentir. Foi quando ouviu rosnados encherem a sala, nem pensou no que seriam, traçou uma reta e correu. Suas costas doíam demais e não conseguiu velocidade o suficiente, antes que saísse do prédio algo o atingiu por trás, fazendo-o cair com Ariel. Ainda tentou se erguer, mas as costas agora ardiam, havia uma imensa queimadura nela da qual vertia sangue. Ouviu o cascalho estalar atrás de si e os rosnados aumentarem, olhou para a face inconsciente de Ariel, queria tanto protegê-la... A raiva cresceu dentro de si, por sua impotência, pelos desígnios de Deus, pela vida miserável que havia levado. Ergueu-se com dificuldade e encarou o vazio repleto de rosnados.

— Saiam daqui! Quem quer que sejam! Não permitirei que a lev- — Em meio a seu discurso inflado seus olhos rolaram e apagou, sufocado com o enxofre.

~*~

Ariel acordou tossindo.

— Arcanjo? — Uma voz ríspida e gutural a chamou.

Ariel abriu os olhos e se viu rodeada de bestas, demônios e caídos. Sua mão voou até a espada perdida e a frustração voltou. Estava indefesa. Lembrou-se de Ângelo e girou a cabeça, procurando, o encontrou caído a alguns metros. Levantou-se.

— Arcanjo, não ferimos o humano e não queremos batalhar, apenas conversar, pois essa é uma oportunidade que jamais acreditamos que teríamos.

O caído que lhe falava tinha um grande porte, enormes asas de couro negro e uma túnica azul. Sua voz parecia rachada e sua aura era manchada de tons púrpura, os olhos eram preto piche, mas fora isso, era como um de seus irmãos.

— Não desejo conversar, quero que libertem a mulher que gerou o humano. — O lado de seu corpo doía e algo se grudava a seus cabelos.

— Não a estamos mantendo presa.

— Como não estão! Eu presenciei sua ação! — disse, indignada. Não seria envolvida com as perfídias do demônio.

— Arcanjo, acalme-se. O que sabe está errado. Nós fomos banidos porque, como você, fomos contra as regras da Cidade de Prata e Mikhail nos puniu. Quando nos precipitaram no abismo, nos sentimos traídos, abandonados pelo Pai, rejeitados como seus filhos, descartáveis. Com o tempo, Lúcifer descobriu que, assim como os anjos, podíamos interagir com os humanos, mas os odiávamos, os filhos preferidos do Pai! Até que vimos que eles eram como nós. — Apontou o humano caído. — Veja seu companheiro, que sofreu toda a vida sem qualquer auxílio, acreditando no Pai e em sua misericórdia. Ele também o ignorou, Ele também os ignora, Arcanjo Ariel. Essa é a verdade.

Ariel estava atônita.

— Mas e quanto a tudo que sabemos, nossos irmãos mortos pelas hordas, a mulher...

— Você precisa de respostas, mas não há tempo para todas elas. Basta que saiba que não estamos em extremidades opostas, Ariel. Tudo o que fizemos foi atender ao desejo da mulher que há muito era ignorada pelo Pai. É o que fazemos, Arcanjo, auxiliamos aqueles que não mais esperam no Pai, que, como nós, aceitaram a verdade.

— Mas as hordas...

— As hordas são constituídas por aqueles que afundaram no desespero. As bestas são caídos deformados pela tristeza e agonia, pela incompreensão e solidão. Encheram-se de ódio pelos humanos, por serem favoritos e eles esquecidos. Mas nós podemos controlá-los, Ariel, e com a sua ajuda podemos mudar isso! Podemos conseguir a atenção do Pai! Fazê-lo ver!

A ideia brilhou na mente de Ariel, a possibilidade, mas as baixas seriam muitas, tanto sangue derramado... deveria acreditar que o Pai não se importava a ponto de permitir tal massacre?

— Pense nisso, Arcanjo, pois em breve será uma de nós e há alguém que a espera ansioso. — A figura deu um sorriso triste e desapareceu junto das bestas.

Assim que a tropa se retirou, Ariel correu em direção a Ângelo, ele estava muito ferido e já sangrara demais. Sentou-se ao seu lado e pôs a cabeça dele em seu colo.

“When it gets cold

And it feels like the end

There’s no place to go

You know I won’t give in

No, I won’t give in”

— Hei… acorde — disse, suavemente, e passou a mão sobre o rosto pálido, emanando uma fraca luz dourada. Seus poderes ainda não estavam totalmente restabelecidos.

Ângelo ouviu seu nome ser chamado e, na escuridão que lhe engolfava, um ponto de luz lhe atraiu. Abriu os olhos, lentamente.

— Olá — sorriu. — A coisa foi embora?

— Ainda não, mas temos um tempo. — Sorriu também, pela primeira vez desde que tudo começara. Aquele simples humano a havia salvado mais vezes que pudera contar.

— Que bom... — Suspirou e subiu a mão para acariciar o rosto da mulher. — Eu sei que estou um trapo e devo parecer delirante, mas você é tão linda, é a coisa mais perfeita que já vi.

O sorriso de Ariel foi triste.

— Os anjos são a perfeição divina. — Se permitiu o carinho. A mão de Ângelo era áspera do trabalho, mas gentil e sua aura multifacetada tinha muitos pontos negros, contudo, agora, as cores vivas brilhavam radiantes.

— Não, não desse jeito. Sua determinação e coragem, a delicadeza com que faz as coisas, apesar de tudo, sua luz... tudo em você a faz perfeita. — Enrolou os dedos nos cachos cobre, sentido a maciez, queria fazer aquilo desde que a encontrara. — E eu sou somente humano, um dos mais idiotas... — riu, engasgado. — Porque acredito que te amo.

Ariel não soube o que falar. A vida toda tinha ouvido declarações de amor de seus irmãos pelos humanos e agora um deles se declarava a si. Seu peito esquentou, assim como suas bochechas, e uma sensação gostosa e reconfortante se espalhou por seu corpo. O sorriso foi involuntário.

— Você não é ‘só’ humano... toda a vida eu o invejei por sua condição. — Acariciou sua testa com a mão livre, vendo o sorriso masculino aumentar. — Mas também o odiei por seu livre arbítrio e pelas escolhas que faziam...

Ariel ouviu uma trombeta soar, a hora havia chegado, não iria mais fugir.

— Você ficará aqui, eu já volto. — Levantou-se e o recostou junto a parede traseira.

— Mas, Ariel... — Tentou reclamar e segurar seu braço, mas os seus estavam levemente dormentes, não conseguiu.

— Shiiu, está tudo bem, eu ficarei bem e virei te ajudar — disse, segurando sua mão. — É o que fazemos, é minha missão, proteger você. — Sorriu uma última vez, entendendo, finalmente, as palavras de Rahatiel e Lamechial.

— Sei disso — sorriu. — Tenho mesmo fé em você.

Ariel sabia que venceria, Mikhail ou o Diabo, ela venceria. Deixou Ângelo no fim da sala e andou até o centro do amplo cômodo para encontrar aqueles que viriam buscá-la.

Três fachos de luz entraram pela claraboia de vidro do teto, abrindo buracos e fazendo o vidro despencar e espatifar no chão, como centenas de pequenas estrelas cadentes. O luar entrava diretamente no recinto. Ariel não se moveu e caco algum tocou seu corpo.

— Arcanjo Ariel, você está presa e será condenada, em nome do Príncipe viemos lhe buscar. Irá se entregar?

— Não — disse e investiu. Só teria uma chance de agarrar uma espada, apenas uma.

Quando o anjo ao lado de seu alvo ia lhe empurrar, como da outra vez, agachou-se rente as pernas do primeiro e lhe dobrou o joelho. Este agarrara a espada, mas antes que desembainhasse, o do lado atacou-a. Com uma girada de corpo, Ariel agarrou o cabo da espada do primeiro e se impulsionou para o alto, para os ombros do oponente, escapando do golpe.

O terceiro anjo foi em sua direção, aproveitou que estava sobre os ombros do primeiro e saltou para as costas do terceiro, já com a espada desembainhada na mão. Foi derrubada e chocaram metal contra metal duas vezes, mas sua força, agora, não se comparava à deles. O segundo anjo acertou um golpe em sua lateral, abrindo-lhe um rasgo nas costelas. Cambaleou alguns passos para trás, recuando. Não podia apertar o ferimento, pois a espada pesava demais e precisava das duas mãos para sustentá-la, tentou erguê-la quando viu o golpe vindo, mas não foi o suficiente. Fechou os olhos. O golpe não veio, mas sentiu o sangue espirrar. Ao abri-los pode ver Ângelo, de pé a sua frente, com a espada transpassada na barriga.

“Keep holding on

Cause you know we’ll make it through,

We’ll make it through

Just stay strong

Cause you know I’m here for you,

I’m here for you”

Ângelo viu Ariel ser atingida e soube que ela morreria, não iria permitir. Tinha decidido, agora de última hora, que realmente a amava e não daria uma de covarde, sua mãe também não duraria muito, sabia disso. Faria o que precisava ser feito por aquela que amava. A maioria dos amigos que tinha, foram assassinados por traficantes, morriam por overdose, em assaltos ou aleatoriamente. Quantos tinham a chance de se sacrificar por alguém? Era uma sorte, pensou antes de correr. Talvez sua mãe tivesse mesmo razão e houvesse um plano divino, ele vivera até aquele dia para salvá-la, tinha certeza disso.

Quando a espada passou por sua barriga, finalmente pode ver seus algozes. Três anjos imponentes e dourados, portando espadas e armaduras, lhe encaravam. Eram belos, mas terríveis. Não eram os demônios que esperava. Teve medo, mas Ariel estava ali e tudo ficaria bem.

Quando o anjo puxou a espada, o corpo de Ângelo pendeu para trás, nos braços de Ariel e ela foi ao chão com o peso.

— Ângelo! O que fizestes?! — gritou em desespero. O sangue esvaia rapidamente, nada podia fazer.

— Fui seu anjo da guarda — riu, fazendo o sangue sair em maior quantidade.

— Não podia ter feito isso, eu sou o anjo, é minha missão, eu devia ter- — Abraçou-lhe o tronco, queria curá-lo, podia curá-lo!

— Não. Quem disse que apenas os anjos devem se sacrificar por nós? — O sangue borbulhou em sua garganta. — Eu te amo, Arcanjo Ariel, e nós nos sacrificamos por aqueles que amamos, coisa de humanos... — tossiu um riso, cuspindo sangue. — Você já deve ter feito isso demais por nós.

O silencio e o pesar apertaram o coração de Ariel. Não, ela não havia feito, ela não entendia. Por todo aquele tempo, ela os odiou na crença do amor do Pai por eles e agora o Pai o deixaria morrer sob a espada de seus ‘soldados’.

— Arcanjo Ariel! — bradou o primeiro anjo.

— Não, Ângelo... eu vou te ajudar, vamos sair daqui. — Agarrou-o pelos ombros, quando sua respiração ficou mais difícil, e o ergueu.

— Não! Escute... você tem razão, precisa lutar, Ariel... — Estava ficando mais difícil falar. — Eu acredito em você, outros também irão. Não vai sair daqui... Minha mãe passou a vida acreditando... que Deus a ouviria, se isso não acontece... todos deviam saber. Deus devia saber... o que seus filhos passam... — Tossiu um grande jato de sangue.

Ariel apertou com as mãos a ferida aberta, mas não adiantava. Nunca se sacrificara pela humanidade, por seu bem-estar e aquele simples homem o fizera por ela... seu pranto correu.

— Não chore minha... anjinha, vou estar te esperando... onde quer eu vá. Agora vem cá que... eu quero lhe contar um... segredo — disse e ergueu o braço em uma débil tentativa de trazê-la para mais perto.

Ariel notou seu esforço e acatou o pedido, quando estavam próximos o suficiente, Ângelo colou a boca na dela. As lágrimas de Ariel se juntaram ao sangue dele. Um misto de sensações perpassou o corpo do Arcanjo, tristeza, emoção, felicidade, dor, saudade, raiva, amor. Tudo girou num turbilhão até que a cabeça dele pendeu solta, para trás.

Ariel o deitou no chão, ainda chorava.

— Eu também o amo, humano — sussurrou para ele.

“There’s nothing tou can say

Nothing you can do

There’s no other way when it comes to the true

So keep holding on

Cause you know we’ll make it through

We’ll make it through”

O anjo bradou novamente e Ariel se ergueu, ensanguentada. Seu corpo brilhava em um dourado ofuscante e lágrimas de sangue escorriam de seus olhos. Chorava por seu amor, por seu amigo, pela humanidade, pelos irmãos caídos, por si mesma... chorava pela perda e pela verdade.

— PAI!! Este é o Seu desejo?! Estes são os Seus desígnios?! Pois bem, eu os cumprirei! — Abriu os braços e sua forma se alterou, cresceu e se alargou, recuperando sua verdadeira forma, as seis asas brotaram de suas costas e a armadura dourada a cobriu. A espada se materializou em sua mão e a corneta pendeu em seu cinto. — Me perdoem, irmãos. — Entoou uma prece rápida.

Em cinco movimentos, os anjos jaziam mortos no chão e a espada do ‘Leão de Deus’ flamejava em vermelho.

— Mikhail!!! — Bradou aos céus. — Me aguarde, pois eu não temo mais o Inferno. — Andou até o corpo de Ângelo e tocou sua face carinhosamente, ao se erguer ele vestia uma túnica branca e estava limpo, já não possuía ferimentos. Deixou em suas mãos ramos de Lavanda, que perfumaram o recinto. Olhou uma última vez para ele e alçou voo, o céu clareava e a aurora estava para romper. — Estaremos juntos, Ângelo, seja onde for, possam os céus caírem ou o inferno subir. — A ideia do caído lhe parecia excelente agora.

Lamechial observou Ariel se tornar um ponto brilhante no céu, enquanto subia. Ele a olhou até que sumisse. Não fora coincidência ela ter sido achada por aquela família. Sua amiga vivera no engano e ele tinha escolhido um caminho para que ela percebesse seu erro. Não pretendera nada daquilo, somente fizera a vontade do Pai. Honrara seu nome e sua missão, e agora temia. Temia que os desígnios do Pai fossem a destruição da Cidade de Prata, de seus irmãos e tudo o que conhecia. Fizera ele o certo? Seria verdade o que o demônio dissera? Seu ímpeto era ajudar Ariel, mas não era um guerreiro.

Saiu das sombras e andou até o mortal. Aquele homem oferecera amor a Ariel e havia recebido a salvação em troca, porém o coração do Arcanjo carregaria mais essa ferida. Não estava em suas mãos interferir no destino, estava? Ajoelhou-se ao lado do corpo. A alma ainda não havia deixado o invólucro físico, estava carregada de preocupação. Olhou novamente para cima, em pouco tempo seria dia e Ariel ia lutar, precisava decidir-se. Fechou os olhos e se ergueu com o humano nos braços. Aquela era sua escolha e se a vontade do Pai sempre prevalece, talvez aquele fosse o seu destino. Ajudaria Ariel da maneira como podia. Envolveu-os com sua luz e voou o mais rápido que pode.

No lugar onde havia sido a luta, agora só jaziam os ramos de lavanda, cercados por milhares de pequeninos cacos que refletiam a suave luz do luar. Aquele lugar presenciara o sacrifício, o amor e a pureza, seria, para sempre, sagrado à todos aqueles que possuíssem fé para percebê-lo.

~*~

Quando a aurora rompeu e os portões foram abertos, sua silhueta se desenhou a frente de um exército negro. Não estava ali para matar ou destruir e sim para fazer o Pai ouvir, e se, para isso, ela tivesse de o fazer, faria. Mas apenas hum haveria de ser punido, independente do rumo dos acontecimentos. Mikhail pagaria, por sua arrogância e ignorância. Ela marchou Cidade de Prata adentro com a face manchada pelas lágrimas, e o velho terço enrolado em sua bainha dourada.

“So far away

I wish you were here

Before it’s too late

This could all disappear

Before the door close

And it comes to an end

With you by my side

I will fight and defend

I’ll fight and defend”

(I won't give up - Jason Mraz)

 

 


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Notas finais do capítulo

Finalmente editado!!

Espero que tenham gostado!



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