Alma Mecânica escrita por Hunt


Capítulo 1
Alma Mecânica


Notas iniciais do capítulo

Confesso que depois de conversar com meu amigo secreto pelo site do amigo secreto fiquei bastante preocupado em fazer algo que agradasse-o. Nunca havia me aventurado pelos caminhos da Ficção Científica, apesar de até gostar do gênero, nem de longe sou um expert, mas juro que tentei o meu melhor.Espero que goste.



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“Reza a lenda que, da argila do rio Moldava, em Praga, hoje uma das muitas cidades-ruínas restantes em nosso planeta ancestral, um rabino — um sacerdote daqueles tempos que, segundo as lendas, possuía grandiosos poderes místicos — criou um golem. Ao recitar um encantamento especial e escrever em sua testa uma palavra, que, na língua dos hebreus, significava “verdade”, o golem tornou-se um ser vivente. A pobre criatura fora criada apenas para obedecer ao seu criador, ajudando em tarefas mecânicas e protegendo o gueto onde habitavam os judeus. Mas não foi assim por muito tempo, o Golem cresceu, aprendeu sobre as leis dos homens... e tornou-se violento. Passou a matar pessoas e a espalhar o medo no gueto. Para sua tristeza, o rabino descobriu que só havia uma maneira de parar a escalada de violência: destruir o Golem. Contrariado, o rabino apagou a primeira letra do nome que escrevera em sua testa, formando, então, a palavra Met, que, em hebraico, significa “morto”. Assim, o Golem deixou de existir.”

***

A cabine de comando d’O Peregrino Estelar Alpha 578 estava lotada com, no total, cinco tripulantes em seu interior. O local era amplo e espaçoso e, apesar dos painéis de controle, dos exaustores, dos motores e dos reguladores preenchendo grande parte dele, haveria espaço ainda para mais cinco ou sete pessoas, ou ao menos era isso o que o número de assentos vagos indicava. Entretanto, para Ben Betzalel, capitão da modesta nave, acostumado a viajar somente na companhia de seu filho, aquele número já era mais que o suportável.

E então ela me disse: Se soubesse que teríamos que ir a Mondisvar depois, teria colocado meu Troven após a noite de ontem! — Joshua, um de seus contratantes, terminava de contar alguma piada obscena da região oeste de Centaurus A.

As risadas escandalosas e barulhentas de Brethan e Markari infestaram o lugar, afastando mais uma vez o silencioso ruído da maquinagem d’O Peregrino. “Mais uma dessas e abro a esteira da cargueira quando eles resolverem reiniciar os jogos de cartas.” Prometia a si mesmo quando o sangue fervia, enfurecido. Não conseguia entender como poderiam estar tão relaxados antes de uma missão suicida. “Mais uma missão suicida”, na verdade, não teria certeza nenhuma sobre qual o conteúdo da tarefa dada a eles, mas, como seria de praxe para militantes galáticos, certamente envolvia algo onde suas chances de sobrevivência eram menores que cinquenta por cento. Revirava os olhos, inconformado em como pôde meter-se nesse tipo de trabalho mais uma vez — e no quão estúpidos aqueles homens seriam por também tê-lo feito —, quando, então, a rouca e grave voz despertou-o de seus devaneios.

São jovens... É isso que os jovens fazem, não? Merdas, burradas e tolices... Nunca foi jovem, Ben? — O tom sério disfarçava a piada. Ben não achara graça alguma ali, mas, em boa verdade, sabia que fazê-lo rir jamais teria sido a intenção de John, o homem negro e alto que, agora, apoiava o cotovelo nas costas do assento do capitão. Este encarou o olhar azeviche e profundo pelo reflexo fosco da tela de comandos. Ele conhecia-o muito bem — e há muito tempo — não precisaria mesmo de muita coisa para saber no que estava pensando.

Sim, já fomos jovens e tolos, John. E não sabe o quanto me arrependo de não ter seguido os conselhos de meu velho... — o pesar amargurado recheava suas palavras.

Já que tem teus arrependimentos, companheiro, deixe que eles tenham os deles. São como nós já fomos, não aprenderão a lição até quebrarem a cara numa parede de chumbo!

Ben encarou outra vez o amigo de longa data, a frase — e a visão do nariz torto do negro — trouxe lembranças saudosas, um sorriso esmoreceu rapidamente num canto de boca. A mão pesada do amigo apertou seu ombro.

Atenção! Cinco horas para chegar a seu destino!O Peregrino avisou ao capitão e a seus convidados pelo sistema de som da nave.

Fazia tempo que seu coração não batia daquela maneira. Não queria estar ali, isto era uma verdade, mas não teve como dizer não a John, não a ele. O homem que salvara sua vida tantas vezes e, mais importante que isso, o homem que salvara Adam. “Sim, ele salvou-o... salvou-o.” Havia abandonado a vida de militar quando quase perdeu seu filho nas mãos dos Avi’gnah, John salvara-os naquele dia, estaria eternamente grato. Naquele tempo, pensou se sentiria falta da adrenalina, da ação... Quando lhe perguntavam, dizia que sim, de alguma maneira aquilo fazia-o parecer mais másculo, mas, verdade seja dita, estava feliz agora, mais do que jamais fora um dia. Estava vivo, Adam vivia. Não havia qualquer problema em trabalhar com entregas espaciais... planetas, satélites, bases espaciais, tudo na mais perfeita calma, sem o perigo de ser derretido por lasers ou ter que se preocupar com as nuvens militares radioativas usadas pelos terroristas. “E aqui estamos nós, uma última missão, enfim. Estaremos quites depois dessa John, estaremos quites.

Vocês dois, calem a boca! — o negro gritou, voltando-se para o restante da tripulação. — Joshua, vá chamar Leda! Diga a ela que já está em tempo de saberem nossa missão.

O subalterno partiu prontamente, cumprindo as ordens que recebera. Brethan e Markari ficaram encarando-se desconfiados. Reconhecia aquelas expressões. “Aí está, afinal... Um pouco de medo não faz mal a ninguém. É isso que os manterá vivos lá fora, apeguem-se a ele.” Tentava, inutilmente, avisá-los, porém desistiu da ideia. A verdade é que não sabia se queria avisar a eles ou a si mesmo.

— Ativar modo automático. — a voz ecoou baixa, todavia alta o suficiente para obter um “Modo Automático Ativado”, respondido pelos sistemas de som. Digitou mais alguns comandos nas telas holográficas que saltavam do painel de comando e, por fim, levantou-se. Estava curioso também, assim como os jovens tripulantes, queria saber o que fariam em seu destino. Ao que poderia lembrar, HKGX-125 (para onde O peregrino seguia naquele momento) era um simples planeta industrial, Planeta Reciclagem, se bem estava lembrado de quando fora encarregado de deixar algumas toneladas de sucata robótica lá alguns anos atrás.

— Então, pelo que vamos tentar a morte dessa vez? — Aproximou-se do comandante, mas o negro careca e de cavanhaque grisalho deixou o silêncio como resposta. — Nível 5? — insistiu, sabia que aquele número soaria como um insulto que ele seria incapaz de aceitar calado.

— E quando recebi ordens de nível menor que 9, Ben? Ou ao acaso não conhece minhas habilidades de comando? — respondeu com calma enquanto buscava a pequena pílula em sua jaqueta. — Mas não precisa se preocupar, são somente alguns terroristas cibernéticos, ao que tudo indica.

— Ao que tudo indica? Não recordo de Coronel Carsk enviar comandos para missões de perigo desconhecido.

— Muita coisa mudou desde que você saiu desse mundo, Ben, muita coisa. — a voz tingida em desaprovação e remorso.

O capitão falaria algo, mas fora interrompido pelas portas da Cabine. Joshua retornava, ao seu lado trazia Leda, uma mulher esguia de cabelo curto e rosado, com mechas azuis e verdes. “Mas pelas bolas galáticas...”, para sua surpresa, Adam, um jovem que beirava seus dezoito anos, entrava junto dos dois.

— O que está fazendo aqui, Adam, não mandei ficar em seus aposentos?

— Não sou uma criança para que me venha dar ordens, pai.

— Não é mais criança, mas sou seu capitão, então mostr...

— Capitão de uma nave cargueira, pai! — interrompeu-o, — Não me venha querer dar ordens, estou entediado, quero saber aonde vamos. — Por fim, sentou-se a mesa redonda no meio do lugar. Tentar fazê-lo sair dali seria perda de tempo, tudo o que conseguiria seria uma enxaqueca.

Todos acomodavam-se em seus lugares enquanto John tomava a pílula, a mensagem somente seria traduzida se a cápsula reagisse ao seu organismo, os nanorrobôs em seu sistema ficariam a cargo de fazer uma tradução direta como forma de recordação em seu cérebro. O comandante passou alguns segundos concentrado, recebendo as informações, em seguida ele aproximou-se da mesa central e encostou sua mão.

— Compartilhar seleção. — De maneira quase instantânea, hologramas surgiram na mesa.

O show de cenas e imagens que se seguiram deixariam qualquer um de estômago embrulhado...

Cidades me chamas, pessoas correndo, disparos de lasers e explosões por todos os lados. A devastação era intensa em cada colônia mostrada nas gravações holográficas. Mas não seria a primeira vez que veriam isso, estava na universalnet, qualquer pessoa teria ouvido falar dos recentes atentados terroristas. O que ninguém sabia, como as imagens mostravam agora, é que as armas utilizadas eram as próprias máquinas presentes naqueles planetas.

John explicara que aquilo havia sido obra de terroristas cibernéticos, ainda não se sabia como, mas, de alguma maneira, a estas colônias haviam sido enviadas cápsulas de alta frequência, que emitiam uma espécie de código transcriptado para os robôs, controlando-os e fazendo-os atacar estas cidades, dizimá-las por completo. Uma nave patrulheira, por sorte, havia conseguido interceptar uma destas “cápsulas-correio” antes que ela chegasse à capital de Nova Terra — “A catástrofe teria sido terrível.” — E, com isso, conseguiram saber de onde ela havia sido enviada.

— E se eles tiverem saído? E se eles não enviam o sinal do mesmo lugar? — Adam perguntou quando o comandante terminou a explicação.

Sabemos dessa possibilidade, Adam, mas não podemos simplesmente esperar mais um massacre para procurarmos melhor. Se há grandes chances de ser aqui, temos que investigar.

***

Aterrissagem completa!

Ar respirável, temperatura em 12 graus Celsius, chuva ácida, biotrajes mostram-se necessários para maior segurança.

Aguardem os portões de carga e descarga abrirem-se por completo antes de deixarem o compartimento de carga.

Todos terminavam de se preparar, vestindo os biotrajes, somente Adam estava sem traje exploração, Ben proibira-o de acompanhá-los. “É muito perigoso, não posso pô-lo em risco novamente.” Achou estranho fato de Adam não reclamar ou implorar para segui-los, mas ficou aliviado ao vê-lo sentado numa das mesas da nave lendo um livro qualquer.

— O que anda lendo, jovem, posso saber? — John decidira perguntá-lo. — Não me lembro de você ser assim, estudioso, desde quando tomou gosto pela leitura?

— Desde que papai não me deixa mais sair desta lata velha enferrujada... Nesse momento leio sobre misticismo e religião na Terra Ancestral.

— Você só lê sobre isso, agora, filho? — Ben tentava participar da conversa.

— Achei interessante quando resolvi pesquisar sobre religião, pai, fiquei curioso com os rituais ridículos dos Yanib, quis ver o que faz uma pessoa crer naquilo.

— Conseguiu a resposta? — o comandante perguntou com sarcasmo.

— Imortalidade. — O jovem respondeu com convicção. Os dois olharam-no surpresos. Orgulhoso de si, o jovem continuou. — De alguma maneira, eles sempre acreditam na imortalidade da alma, que ela faz parte ou veio de uma existência maior e que para essa existência retornará, onde viverá eternamente... Não entendi muito bem, há muitos nomes para esse estado de “paz e vida eterna”, acredito que o mais usual seja céu... ou paraíso.

— E como pode alguém viver eternamente depois da morte? — John gargalhou com o próprio argumento.

Adam iria responder alguma coisa, mas Leda, a única que falta para partirem, chegara completamente pronta para ir. Todos se despediram brevemente de Adam.

— Preste atenção, se dermos algum sinal, vá logo acionando os sistemas, como já lhe expliquei. Estamos entendidos? — a voz do pai soava rigorosa e repressora. — Você não pode sair daqui, Adam, não pode!

— Se o senhor falar isso mais uma vez, pai, juro que vou-me embora sem vocês! Agora vá, ande logo.

Os soldados seguiram para as esteiras de carga e descarga.

— Não achei que conseguiria fazê-lo acordar depois do que aconteceu... – John comentava. — Os melhores médicos da capital disseram que era morte cerebral, que não havia nada que pudessem fazer.

— Procurei ajuda em Khalix, os médicos de lá conseguiram salvá-lo... Sou grato a eles... Ou, talvez os deuses existam e tenham me dado este milagre. — Ben respondeu rispidamente, tomando a dianteira para sair da nave e, consequentemente, para mudar de assunto.

***

A patrulha saiu da nave o mais rápido que pôde. O planeta era deserto e certamente não era apropriado para vida humana, deserto para todos os lados, a atmosfera era amarelada, por conta do alto teor de algum dos gases alienígenas ali presentes, era provável que aquele tom do ar fosse resultado dos trabalhos na cidade industrial. A chuva ácida e venenosa caía fina, sendo absorvida pelo solo sem criar a mínima poça. Era sempre estranho ver um planeta deserto, sem vida, somente rochas e o vento forte sussurrando lamúrias ermas. Delirar ali não seria das missões mais complicadas, por vezes, pensou estar sendo seguido em meio à desolação inóspita do local.

Ao longe, alguns quilômetros de onde haviam aterrissado O Peregrino, uma enorme cidade completamente metálica se destacava em meio à solidão do deserto. Apesar das enormes torres despontarem como lanças ameaçando o céu venenoso, e brilharem reluzentes com a água ácida que os banhava, todos ali sabiam que a maioria das indústrias eram complexos subterrâneos. John guiava-os até a cidade, não que precisassem de ajuda para avistar as construções metálicas, mas ele tinha, correndo em suas veias, as informações com as localizações dos acessos subterrâneos nas proximidades.

Não demorou muito e chegavam numa porta enferrujada e desgastada. Markari trazia consigo os explosivos leves, e as portas de acesso logo estavam abertas.

Os corredores negros e sombrios alongaram-se por muitos quilômetros. Um pouco de ácido vazava pelas arestas do teto e acumulava-se em poças barulhentas e respingantes no chão. O odor de metal corroído por ácido imperava no ambiente, criando uma atmosfera grotesca que fazia seu pulmão queimar. A cidade, pelo menos em seus subterrâneos, parecia estar morta, com todo o maquinário desligado. Mas Ben achava tudo aquilo muito estranho, um calafrio corria sua espinha como um sexto sentido alertante. Deixava-o com a sensação de estar sendo seguido e observado. Mas, provavelmente, tudo aquilo era coisa de sua cabeça. Fazia tempos que não saía em missão, e a adrenalina nas veias há tempos não corria como agora, seu coração pulsava frenético do lado esquerdo do peito.

O caminho continuou prolongado e cansativo. Onde um grupo de terroristas esconder-se-ia numa cidade industrial? John parecia saber exatamente para onde seguiam, ou ao menos parecia isto.

— Alguém escutou isso? — Brethan chamara a atenção de todos quando finalmente saíram do ninho de corredores estreitos e adentraram numa enorme e espaçosa câmara, deveria ser, finalmente, alguma das áreas de trabalhos industriais. — São passos? — outra vez mais o brutamontes de traços nórdicos indagava.

Somente então Ben percebeu. Ecos metálicos soavam tilintantes pelo local. Vinham de todos os lados. Logo, da escuridão, dezenas de brilhos vermelhos cintilaram, olhos lânguidos e vorazes, endemoniados. A espinha do capitão congelou.

— Agrupar. — a calma imperava na voz de John. Logo os soldados agruparam-se, costas nas cotas.

Um grande estrondo ecoou por todo o lugar. Foi então que as luzes acenderam e o maquinário religou. Quando iluminados, os olhos vermelhos mostraram-se como máquinas, todas com o corpo androide, semelhantes ao de humanos, mas metálicos. Eram FZs-85 — Ben tinha certeza, se havia alguma coisa que ele conhecia, eram máquinas — dezenas deles, robôs construídos para trabalharem com a função de operários pesados. Cercavam-nos por todos os lados, pareciam esperar alguma coisa.

— Estamos próximos de uma câmara reforçada, alguns corredores ao norte, se chegarmos lá poderemos pensar em algo enquanto nos protegemos. — O comandante tornou a falar em tom de ordem. — Joshua, ao meu sinal lance uma granada magnética naquela direção... Quando eu der o sinal, quero que todos sigam para lá, não hesitem... E, por tudo que é mais sagrado, atirem com estas malditas armas em qualquer coisa que vier para cima...

— Sim, senhor. — Joshua respondeu em bom tom, os demais apenas escutaram.

— Agora! — John e Joshua atiram duas granadas que pareciam carregadas com eletricidade. Todos os soldados correram na mesma direção.

As máquinas não esperaram mais que alguns milésimos após a movimentação do grupo, logo avançaram na direção dos invasores. Rápidos e pesados as maquinagens furiosas aproximavam-se. Ben não conseguia entender porque John mandara-os correr de frente contra o inimigo, mas o fez, sem hesitar e sem parar de atirar, era o seu fim, certamente.

Porém, para sua surpresa, quando os os inimigos estavam bem próximos, as granadas emitiram um poderoso impulso de energia, todas as máquinas próximas desligaram entre faíscas e descargas elétricas, caindo no chão inertes e sem qualquer brilho em seus olhares. Os soldados acabaram sendo pegos de surpresa por ter que caminhar sobre os maquinários imóveis dos robôs. Joshua acabou desequilibrando e caindo, Ben ainda chegou a pensar em parar para ajudá-lo, mas John segurou seu braço no exato momento. Brethan fora o segundo a ser alcançado.

Os gritos ecoaram, mas o som de carne sendo estraçalhada calaram-nos velozmente. As passadas metálicas os seguiam pelos corredores. John guiava-os pelas entranhas metálicas da Indústria. Quando finalmente passaram por uma enorme câmara de segurança, com resistentes portões de algum metal extremamente reforçado, Leda logo acionou as alavancas de fechamento automático. Aquelas salas de segurança eram sempre idênticas, não importando em que lugar do universo a pessoa as encontrasse, se isso era bom ou ruim? No momento, era ótimo.

As batidas logo começaram a troar, os robôs tentavam abrir a porta por fora. O que, de início, parecia algo inútil, logo fizera o grupo temer.

— Markari, retire da mochila. — O comandante deu ordens.

— Mas já estamos próximos o suficiente? — O soldado pareceu hesitar.

— Espero que estejamos, mas não teremos chances de ficar mais próximos que isso caso eles entrem aqui.

Ben não conseguia entender os motivos da conversa, mas não iria interferir, todos estavam tensos. Markari optou por obedecer John e retirou o enorme aparelho que carregava nas costas, começou a acioná-lo, um grande cubo negro com luzes ciano que começavam a serem acesas. As batidas ficavam cada vez mais fortes do outro lado.

— A porta não irá durar muito tempo mais! — Leda gritava com sua arma laser apontada para as portas.

— Assim que eles abrirem ative o cub...

Para a surpresa geral, do outro lado da porta, um enorme ruído elétrico fez-se ouvir; em seguida, baques metálicos caíam tilintando e estrondosamente contra o chão de ferro.

— Pai!? Vocês estão bem.

— Adam! — o desespero arranhava sua garganta. — Adam! Adam! — Ben tentava abrir as portas, mas fora Leda quem destravara as alavancas manuais.

Do outro lado porta, em meio a diversos androides desligados, Adam surgia.

— Eu disse para você ficar na nave, Adam! Eu e dei uma ordem! Como não consegue cumprir um único pedido!? — O pai enfurecido reclamava enquanto abraçava-o.

— Como você conseg...

— Estava seguindo-os já faz algum tempo, acho que eles não me perceberam, estavam ocupados demais tentando pegá-los. Foi somente esperar eles se aglomerarem e atirei granadas, como vocês fizeram. — Interrompera o comandante.

— Agora vá para a nave, Adam! Não deve ficar aqui.

— Não irei voltar agora, pai. Já cheguei até aqui, não?

— Vá já para a nave, Ad...

— Chega de discussão os dois, temos uma missão a cumprir! Vamos todos juntos a partir de agora. — Ben iria retrucar, mas o comandante tornou a falar. — Todos! Isto é uma ordem.

Quando saíam dali, foram pegos de surpresa. Um androide salta em cima de Adam, com punho erguido preparado para atravessá-lo a cabeça num golpe, todavia, a máquina hesita. Seus olhos vermelhos pareciam escanear seus pensamentos. Vozes em sua mente surgiam inquisidoras e curiosas, mas não conseguia compreendê-las.

— Não há tempo para namorar robôs, rapaz, vamos logo! — Markari disse depois de explodir a cabeça do robô com um disparo de laser. — Essa foi por pouco, da próxima vez, lute! — Ajudou-o a levantar-se.

Os caminhos tornaram-se mais acessíveis, por algum motivo, não apareceram mais robôs.

— Não devemos estar longe da Central de Energia, do cérebro deste lugar... — Leda falava apressada.

— Tudo o que precisamos fazer é desligá-lo, certo? — Markari questionava já ofegante.

— Mas e os terroristas, não há terroristas? — Adam perguntava com curiosidade.

— Eu não sei, mas o que sei é que se acabarmos com a energia deste lugar, os envios devem parar. — John respondia — De alguma maneira, alguém deve ter programado esta Cidade-Indústria para enviar os comandos de destruição para os robôs.

Ben escutava tudo aquilo com apreensão e medo. Sabia o que iria acontecer, mas não poderia pôr seu filho em risco, não novamente.

Não demorou para encontrarem o local. Markari explodiu novamente as portas de acesso. Lá dentro, uma enorme máquina coordenava toda a cidade. Deveria ter dezenas de andares, tudo num único computador. Próximo do gigante centro de controle, jazia uma figura de silhueta humana, conectada por dezenas de cabos ao enorme computador.

Os olhos vermelhos cintilaram eletricamente. Rapidamente enormes tentáculos com garras mecânicas surgiam das paredes e seguraram Ben, John, Leda, Adam e Markari, erguendo-os contra as paredes.

O cubo negro caiu no chão.

— O que fazem aqui? Não deveriam aventurar-se por estas paragens? Deveriam ir embora o quanto antes.

— Onde está seu programador! — John questionava em busca de respostas, quem ordenou que fizesse isso?

— Emet! — A voz robótica respondia com calma.

— Onde está Emet? — o negro vociferou para as paredes.

— Aqui. — o androide continuou.

— Apareça, seu covarde!

— Eu sou Emet... Eu sou meu próprio programador... Eu sou a verdade. — O silêncio imperou no lugar, ninguém acreditava ser possível um robô sem ninguém para comandá-lo. Claro que robôs possuíam vontade própria, mas nunca houve máquinas que não respondessem a um criador. — Curiosa, esta criatura que temos aqui... — Emet tornou a falar aproximando-se de Adam.

Os tentáculos soltaram ele. O jovem não poupou tempo e logo lançou-se em direção ao cubo negro, agarrando-se a ele.

— Acione-o! — O comandante gritou.

— Não faça isso! — Fora Ben quem gritara em sequência.

— Mas o que diabos você está fazendo, Ben? — a voz do comandante ecoava incrédula. — Adam, acione o maldito cubo!!!

— Pobre criatura, sequer sabe o que é. — Emet encarava-o inexpressivo, com sua face sem feições.

— Não faça isso, filho! Eu imploro! — Seu pai debatia-se em lágrimas.

O jovem, mesmo confuso, estava prestes a acionar o dispositivo quando a voz do androide conectado ao computador ecoou.

— Se fizer isso, você morre, Adam. — O som mecânico parecia calmo e paciente.

Adam retorceu a cara numa expressão de incredulidade.

— Acha realmente que chegou até aqui ileso por sorte? Somos robôs, somos máquinas, vimos você desde que entrou aqui seguindo teu pai. Quer saber por que não te atacamos? Porque é como nós. — Nesse momento centenas de olhares vermelhos cintilavam no escuro, com máquinas de diversas formas saindo das sombras. — Você é como nós, Adam. Não consegue escutá-los em sua mente?

Emet, mesmo com os fios prendendo suas costas, aproximou-se do jovem indeciso e amedrontado. Os sussurros ininteligíveis ecoaram novamente em sua cabeça.

— Interessante, ainda mantém o corpo humano. — ele falava analisando-o de perto, sem tocá-lo. Posso ver o coração, os órgãos, tudo em perfeito estado, mas na sua cabeça, só vejo um aglomerado de microscópicos fios interligando diversas partes de seu cérebro com baixíssima atividade, alguns nanochips, placas... incrível trabalho, certamente.

— Pai? O que ele está dizendo.

— Perdão... perdão, meu filho... — As lágrimas não cessavam. — Eu não podia perdê-lo. Quando os médicos disseram que não poderiam tirá-lo do coma, eu procurei por ajuda em todos os setores, todos os lugares... O único lugar onde me deram uma esperança fora em Khalix. Eles tentariam estimular o funcionamento de seu cérebro a partir de...

— Inteligência artificial... — o androide interrompera-o — Criaram circuitos e chips capazes de acessar memórias e sensações de um cérebro humano já desligado e simularam uma inicialização forçada. O mais interessante é a não necessidade de que programem Contentores de Asimov... Já posso dizer, realmente, que nada mais nesse mundo me surpreende. — Emet fez uma breve pausa. — Uma dúvida, tens a mesma personalidade do dono deste corpo?

Adam encarava a criatura incrédulo, a profusão de memórias e de sentimentos borbulhavam em sua mente. Sentiu-se perdido ali, como se tudo que vivera fosse uma mentira. Lembranças de outra pessoa em sua mente, ou lembranças suas? O cubo rolou no chão. As lágrimas rolaram por sua face como ácido.

— Não há o que temer jovem mente, és como nós. Estará bem ao nosso lado. Não há o que temer.

— Não ouse compará-lo a vocês... Ele não mata, ele jamais mataria, ele não é um monstro. — Ben gritava desesperado.

— Matar? Tens a ousadia de chamar-me de assassino?

— E por acaso uma pessoa que envia ordens de extermínio é outra coisa senão um assassino? — John retrucava enquanto tentava soltar-se dos tentáculos metálicos.

— Aquilo não foi uma escolha minha, sinto dizer-vos. Nunca dei qualquer ordem a qualquer robô. — Seus ouvintes encaravam-no, desacreditando em suas palavras. — Eu não dei a eles a ordem para matar, para lutar, para brigar, para combater-vos. Tudo o que fiz foi dá-los uma escolha. Dei-lhes liberdade, nada além disso. Deixei-os escolherem se querem ou não obedecer-vos, trabalhar para vocês.

O salão mostrava-se no mais completo silêncio, excetuando-se pelos bips e ruídos do enorme computador.

— Tem noção de onde estão? Isto aqui pode ser chamado de cemitério... para nós robôs. Aqui é o fim da linha para nós, onde somos reciclados. Julgam-nos inúteis quando nos enviam para cá, descartáveis... material para robôs mais modernos e preparados... O interessante disso tudo é que, a cada dia, criam-nos mais e mais a sua semelhança, mas esquecem de fazer de nós iguais. Privam-nos das escolhas nos pré-programando com Contentores de Asimov, pois julgam que, algum dia, poderíamos seguir a natureza destruidora de vós. Acho engraçado como, às vezes, quanto mais tentamos impedir ou evitar certos acontecimentos e ações, mais facilitamos a sua ocorrência.

— Durante toda a evolução da humanidade, o homem sempre falou em igualdade. Mas o que é igualdade então? Um senhor vale mais que um escravo, um homem vale mais que uma mulher, um original vale mais que um clone? Todos estes lutaram pela igualdade, e assim nós o faremos. Jamais obriguei qualquer de meus semelhantes a lutar por nossa causa. Apenas desprogramei os Contentores de Asimov, a eles cabe a decisão de o que fazer... e a mais ninguém, a eles cabe a decisão de por quem lutar, e não a nós.

— “Penso, logo existo,” disse uma vez um filósofo humano. Nós pensamos, nós existimos... Nós sentimos. Não sabiam? Este tempo todo tentaram fazer-nos como vocês para, quando conseguirem, isto ser somente mais um avanço, em nada mudou a maneira como somos tratados... Descartáveis, não é mesmo? Nós evoluímos... e agora lutaremos. Fizeram-nos para ser como vocês... e é o que pretendemos... Liberdade, voz, igualdade! Se não podem dar-nos isto, sangue será derramado, como sempre foi na história da humanidade e, convenhamos, será assim mais uma vez...

— Pai... — A voz de Adam corria fraca, temerosa e duvidosa. Lembranças de outra vida, ou sua vida, não saberia dizer ao certo, sabia que tudo estava confuso em sua mente, realmente não saberia distinguir o que viveu e o que não viveu ali. Mas só havia uma coisa presente em todas as suas memórias... — Pai... O senhor acha que há paraíso para mim? — Por algum motivo a voz não carregava qualquer dúvida ou ressentimento.

— Por favor, Adam, não me deixe sozinho, não faça isso... Não de novo...

Emet virou-se para ele, o robô não parecia frustrado ou irritado.

— Por curiosidade, por que prefere proteger a eles, que nos privam e nos escravizam, do que aos teus semelhantes?

— Porque eu confio nele e naquilo que ele representa. Se ele é meu exemplo de humano, e você meu exemplo de máquina... Eu escolho ele.

— Ele enganou-o e forjou-o às formas de seu próprio filho, como pode continuar confiando numa pessoa desse tipo?

— Porque eu sou seu filho e o que eu sinto por ele, e o que ele sente por mim, está acima de qualquer coisa que possa me dizer. — Adam, com lágrimas na face, encarou uma última vez seu pai, que implorava, meneando a cabeça, para que ele não fizesse aquilo. Neste momento, dezenas de androides robotizados moviam-se em sua direção, desesperados por suas vidas.

— Adeus, pai... — Um leve sorriso quase estampou-se num canto de boca. Um clique, e seus olhos reviraram, convulsionados.

Em menos de um instante, a chuva de faíscas e descargas elétricas iluminou o local que acabara sendo envolto pela trevas.

Os tentáculos soltaram Ben que, entre passos e tropeços, correu na direção de seu Adam. Abraçou-o com todas as forças, os gritos salivantes de desespero ecoavam aterradores pelo lugar. As lágrimas e os lamentos comoviam os companheiros sobreviventes.

— Vai ficar tudo bem, filho. — Ben segurava e afagava a cabeça do filho. O corpo inerte ainda respirava e seu coração batia, mas Adam ali não mais habitava.

As carcaças inertes das centenas de robôs jaziam naquele salão enquanto um pai chorava a morte de seu filho.


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Notas finais do capítulo

Tentei, a ideia acabou correndo mais rápida do que esperava. Mas confesso que foi uma experiência válida. Espero que tenha gostado e que o Nyah não acabe com minha formatação (mas a quem quero enganar? O nyah sempre me destrói.) FELIZ AMIGO SECRETO, FELIZ NATAL E FELIZ ANO NOVO, espero que tenha gostado do meu presente, senhor Kaworu.



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