It's You - Katniss & Peeta escrita por CamsPepe


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Hey, pessoal! Como vocês sabem, a tia Suz foi bastante vaga em relação à reaproximação da Katniss e do Peeta. Depois de ler os livros, fiquei remoendo isso dentro de mim até que........ booooooooom ........ a ideia surgiu e eu comecei a escrever. O que realmente aconteceu somente a tia Suzy pode falar, mas essa é a minha ideia sobre o que realmente ocorreu e sei que muitos de vocês pensaram em outras coisas, mas leiam de mente aberta hihihihi Tentei manter ao máximo as personalidades da Katniss e do Peeta - espero ter conseguido - mas adicionei também algumas coisinhas minhas. Desculpem-me se o capítulo ficou muito grande, mas sabem como é, quando começo a escrever não paro mais! Enfim, sem mais delongas... Espero que gostem!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/574674/chapter/1

Ouço Greasy Sae entrando pela porta dos fundos como faz todas as manhãs. Ela carregava consigo uma cesta com frutas – senti o cheiro de morangos, que por acaso me lembravam muito de Madge e Gale – e leite na outra mão.

- Bom dia, Katniss. – ela diz e eu apenas aceno com a cabeça. – Como quer seu café da manhã hoje?

- Tanto faz. – respondo minha costumeira frase.

- Eu estava pensando em pão com queijo de cabra e chocolate quente, o que acha? – ela tagarela.

Eu realmente não teria prestado atenção se ela não tivesse dito “pão” e “chocolate quente”. Eram duas coisas que lembravam-me muito de Peeta. Bom, pelo menos, o antigo Peeta. Não havia o visto mais desde seu retorno ao distrito 12 com aquelas prímulas da noite que certamente faziam-me recordar minha irmãzinha. Entendo que sua intenção tenha sido das mais generosas, mas não pude fazer nada além de correr. Depois daquela vergonhosa tarde, Peeta nunca mais havia me procurado e nem eu procurado a ele.

- Não temos pão. – viro bruscamente minha cadeira afim de poder encará-la. – Muito menos chocolate.

- Isso dificilmente será um problema. – ela dá de ombros. – Peeta voltou a assar pães e tem os distribuído por todo o 12. As pessoas estão se recuperando da guerra, estamos indo devagar... Mas todos têm contribuído com sua parte.

- Bom, ele não tem distribuído pães por aqui. – sou grossa para esconder que, na verdade, me magoa que Peeta lembre da existência de todos menos de mim. – Ninguém aparece por aqui além de você. Nem mesmo Haymitch.

- Não é isso que me parece... – Greasy Sae diz assim que a porta dos fundos se abre.

Não posso negar que me surpreendi quando vi Peeta adentrar, assim como não posso negar que foi uma surpresa um tanto agradável. Mal percebi o que ele tinha em mãos já que a visão de seu rosto bem cuidado e, pode-se dizer, um tanto feliz me chamava a atenção. Peeta estava ligeiramente mais musculoso e mais bem alimentado, seu rosto num formato mais redondo e mais saudável. As cicatrizes em seus pulsos estavam quase sumindo assim como as cicatrizes em seus braços – afinal, não fora só eu a remendada daquela explosão. Ele parecia muito com o velho Peeta, a não ser pelas profundas olheiras em seus olhos que lá ainda permaneciam –talvez ainda piores do que quando ele voltara da Capital.

- Bom dia, Greasy. Katniss. – ele sorri abertamente para Greasy Sae enquanto fala e apenas acena para mim com um sorriso mais contido. – Eu trouxe o pão, os queijos... Tudo o que você pediu.

- Muito obrigada, meu querido. – Greasy pega tudo o que está nas mãos de Peeta e se apressa em arrumar minha refeição.

- Então, acho que vou indo. – ele articula suas mãos de forma estranha e lança olhares nervosos a mim.

Assim, percebo que não tenho sido uma anfitriã agradável. Passei todo o tempo encarando Peeta de forma estranha, acompanhando todos os seus movimentos com meus olhos sem nem mesmo disfarçar.

A ideia de tê-lo, o velho Peeta, perto de mim depois de tanto tempo e perdê-lo de novo para revê-lo sabe-se lá quando casou uma agitação dentro de meu ser inexplicável. Antes que eu pudesse sequer parar para pensar no que eu iria dizer, a frase já havia saído:

- Por que não fica? – Peeta olha-me de um jeito estranho ainda não convencido do que eu havia falado. Tento me consertar da melhor maneira possível. – Afinal, você quem trouxe tudo isso. Não é justo que você não aproveite.

Peeta ainda parece meio apreensivo, mas se junta a mim na mesa na cadeira mais distante.

É difícil não saber o que se passa em sua cabeça. Quem sou eu para Peeta agora? Uma bestante da Capital que matou seus familiares e tentou matá-lo? Katniss Everdeen, o Tordo, a líder da revolução que nos tirou das garras do opressivo governo de Panem? Ou simplesmente Katniss, a garota para quem ele jogou o pão queimado quando tínhamos apenas 11 anos, a garota quem ele salvou de morrer de fome?

Pelo modo como ele sentou-se longe, reservado, eu era apenas Katniss Everdeen, uma estranha. Tentei me convencer de que ser uma estranha era a melhor das opções, mas sabia que no fundo preferia que ele me achasse até mesmo uma bestante da Capital. Pelo menos assim, eu saberia que ele tinha algum sentimento por mim, mesmo que fosse o ódio.

Há uma linha tênue entre o ódio e o amor, mesmo que esse não fosse o caso.

Em minutos, a mesa estava cheia de frutas – amoras, morangos, blueberries –, pães de diferentes tipos, queijo de cabra, leite e chocolate quente. Fazia um tempo que eu não tinha um café da manhã assim tão farto. Provavelmente desde a Turnê da Vitória.

- Bom, crianças, eu tenho netos para cuidar. Aproveitem. – Greasy Sae suspira e antes de sair, bagunça os cabelos loiros de Peeta e me diz um “volto logo”. Sabia que ela estaria aqui mais tarde para me obrigar a almoçar. Era nossa rotina.

Vou pegando os pães da cesta e mergulhando-os no chocolate quente assim como Peeta fez na primeira vez em que tomamos. Como de cabeça abaixada sem nunca tirar meus olhos de Peeta. Ele come em silêncio absoluto sem dirigir nem mesmo o olhar a mim e parece mais concentrado em tirar as nozes do pão do que qualquer outra coisa. Fico surpresa ao sentir frustração. O que eu estava esperando? Que ele corresse para mim e voltasse a ser o mesmo Peeta de sempre? Mesmo que ele fosse, eu não mereceria essa atitude dele.

Você poderia viver centenas de vidas e não merecê-lo, dissera Haymitch uma vez e, por mais que me magoasse, eu sabia que ele estava certo.

- Era um pão com nozes. Real ou não real? - fala Peeta subitamente tirando-me de meus pensamentos.

- O quê?

- O pão que eu te joguei naquele dia, Katniss. Era um pão com nozes. Real ou não real? – ele repete e eu pareço ainda mais confusa. Sabia que ele lembrava o momento, mas sua pergunta me pegou de surpresa. Ele ficou impaciente com minha demora. – Real ou não real, Katniss? Real ou não real?!

- Real.

- Foi o que eu achei. – ele suspira e volta a tirar as nozes do pão.

Fico revoltada que ele leve essa lembrança de qualquer jeito como se fosse qualquer outra lembrança. Fico ainda mais revoltada ao perceber que ele tem tido lembranças e sequer tem conversado sobre isso. Era normal que ele não quisesse compartilhar comigo, mas sei que nem mesmo com Haymitch ele o faria – nem mesmo se Haymitch tivesse a capacidade para ouvir alguém.

- É só isso? – pergunto irritada. – “Foi o que eu achei”? – imito sua voz.

- O que mais você quer que eu diga? – ele revira os olhos.

- Nada, Peeta. Não quero que você diga nada. – e assim saio da cozinha em direção a sala pisando fundo e levando comigo somente a caneca com chocolate.

****

Mais tarde, quando percebo que fui um tanto egoísta em querer que ele me contasse tudo, volto para a cozinha com a esperança de encontrá-lo, mesmo sabendo que ele não está lá. Seu pão está na mesa pela metade assim como sua xícara de leite. Sento-me na mesma cadeira que ele se encontrava antes e reprimo a vontade de ir a sua casa pedir-lhe desculpas. Seria sorte até mesmo se ele abrisse a porta para mim.

Passo um tempo encarando a comida que fora de Peeta até decidir arrumar a mesa. Geralmente Greasy Sae quem faz isso, já que mal tenho forças – ou paciência – para outra coisa que não seja minhas necessidades vitais como comer, dormir ou usar o banheiro. Até mesmo lavo a louça tentando esquecer os momentos anteriores, mas nem mesmo o forte cheiro de detergente ou a pele da minha mão descascando conseguem causar esse efeito. É simplesmente impossível esquecer que Peeta esteve aqui. É simplesmente doloroso encarar o fato que de ele não precisa mais mim, diferentemente de mim que – por mais que eu jamais admita – preciso dele.

Greasy Sae aparece mais duas vezes naquele dia – no almoço e no jantar – para ter certeza de que eu vou comer. Em momento algum ela comenta sobre Peeta, apesar de eu perceber que ela quer fazê-lo. Eu também não dou abertura e logo me ponho a falar sobre como lavei a louça, como me sinto melhor e até mesmo com vontade de caçar. Não sei até que ponto Greasy acredita, mas sei que ela não engole tudo o que lhe digo. Quando se despede, ela se mostra feliz pelo meu avanço e promete voltar no dia seguinte. O mesmo de sempre.

Assim que acabo de comer, me direciono ao banheiro para tomar banho. Tiro minha roupa e me encaro no espelho. Minha barriga, apesar de ainda possuir cicatrizes avermelhadas, já está bem melhor e não parece mais tão remendada como antes. As cicatrizes logo sumiriam. A única que permaneceria seria a do meu braço onde Johanna havia cortado para tirar o meu rastreador no Massacre Quaternário. Sempre que olhava aquela marca lembrava-me da minha antiga companheira de quarto e, pode-se dizer, amiga. Meu rosto já aparentava ser o mesmo de sempre – quem o olhasse mal saberia que eu havia acabado de passar por uma guerra. Meus cabelos haviam começado a crescer de novo e finalmente eu conseguiria trançá-los.

Após o banho, deito-me na cama e espero o sono chegar. As noites têm sido de longe a parte mais difícil do dia. Não saberia dizer quais eram as piores: se eram aquelas que um pesadelo me acordava e que eu não conseguia mais dormir ou se eram as que eu não acordava dos pesadelos. Reviro na cama diversas vezes até que finalmente estou sonolenta e caio no sono nunca preparada para o que vem a seguir.

O túnel cheira a mofo e parece vazio, abandonado, silencioso. Estou sozinha, sei disso, mas sinto olhos me observando. Caminho por aquele esgoto por um longo tempo ouvindo somente o barulho dos meus passos leves no concreto. No fim, bem distante de mim, vejo a luz e sei que, de uma forma ou de outra, aquela é a minha passagem para fora daqui, mas sinto que por algum motivo não posso ir embora. Não ainda.

- Katniss! – ouço alguém gritar ao longe e me viro para a direção da voz. Sei que a reconheço. – Katniss! Katniss!

Vejo uma pessoa correndo de encontro a mim bem ao longe.

Finnick Odair.

- Finnick! – grito e corro de encontro a meu amigo. Chocamo-nos em um forte abraço de reencontro. Não posso acreditar que Finnick está aqui.

Quando nos soltamos, olho Finnick de cima a baixo e percebo que ele está machucado pela guerra e que em seu pescoço há um cicatriz vermelha enorme. Lembro-me do que aconteceu enquanto fugíamos pela Capital.

- Katniss, precisamos ir! – ele grita arrastando meu braço na direção contrária a luz.

- Não, Finnick, não! – desvencilho-me de seu aperto. – A saída é para lá!

- Não há tempo! Não podemos ir de encontro a ele! Temos que salvá-los!

- De encontro a quem? Do que está falando? – grito tentando parar Finnick no lugar, porém ele continua correndo para a escuridão.

- Snow. Ele está lá. Ele vai nos quebrar. – ele parece aterrorizado ao dizer o nome do presidente Snow. Sua expressão lembra-me muito de quando voltamos da arena para o 13 e Annie estava sendo torturada para quebrá-lo.

“Ele vai nos quebrar” dissera Finnick. Quebrar-nos como fizera quando sequestrara Annie e Peeta.

Peeta.

É quando a ouço. Sua voz agoniza meu peito e o comprime e de repente não posso respirar. Tento convencer-me de que não é real.

- Katniss! Katniss! Katniss! Katniss! – a voz de Prim repete meu nome sem parar.

Caio de joelhos no chão e aperto a mão em meus ouvidos. Não é real.

- Mags! – Finnick grita em agonia no chão. Posso ouvi-la também. Posso ouvir Mags e Prim gritando nossos nomes, as vozes vindas da escuridão.

- Não é real, Finnick! Não é real! – pego seu rosto e tento fazer com que ele me olhe, mas ele se recusa.

Então, três pessoas aparecem ao lado da luz que seria o fim desse local horrendo. Annie e Peeta. E Snow.

A voz de Peeta berra tão alto que todas as outras parecem de fundo – Mags e Annie chamando por Finnick e Prim chamando por mim. Peeta não grita meu nome, ele apenas grita. Sei que ele está sendo torturado e que não há nada que eu possa fazer.

- Convença a mim. – ouço a voz de Snow em minha cabeça. Olho para seus olhos de serpente e seu sorriso cínico. Ele sabe que me quebrou.

Olho para o outro lado onde há uma explosão e ouço o barulho de dois tiros de canhão. E assim eu sei que minha irmãzinha Prim e Mags estão mortas. No mesmo minuto, no lado escuro, vejo que Finnick está cada vez mais longe e que um exército branco caminha em nossa direção. São bestantes. Tento gritar para que Finnick volte a mim, mas é em vão quando ele tem sua cabeça arrancada de seu corpo. Mais um canhão.

Olho para Snow mais uma vez com um olhar suplicante. Ele segura Peeta – que ainda grita a todo pulmão – pelos cabelos e tem uma faca em seu pescoço. Ouço-o rindo.

- Eu não fiz o que você queria? – peço em meios as lágrimas. – Não te convenci de que amo Peeta?!

Apesar de tudo, sei que este é o meu fim. Prim, Finnick, Mags... Todos mortos. O que posso fazer é continuar sentada esperando para que tudo acabe.

- Sim, senhorita Everdeen. – Snow me confirma. – E era exatamente disso que eu precisava.

Estou gritando porque sei que o que mais abomino está para acontecer. E ao ouvir-me, sua faca adentra o pescoço de Peeta e corta sua garganta da maneira mais sádica possível.

Abro os olhos rapidamente para dar de cara apenas com o teto de meu quarto. Estou ofegando e suando. Sento-me na cama para me acalmar e com as mãos trêmulas pego o copo de água que sempre deixo ao meu lado.

Não há túneis. Estou em meu quarto. Sozinha. Annie está bem. Peeta está bem. Snow está morto. Mas eu estou quebrada.

Levanto-me e caminho até a janela, observando a casa de Peeta que é bem em frente a minha. Todas as luzes estão desligadas. Ainda sinto a necessidade de caminhar até sua casa e checar se tudo está bem, mas tenho que me convencer disso sem de fato fazê-lo. Imagino que Peeta está dormindo – talvez tendo tantos pesadelos quanto eu, talvez tendo sonhos tranquilos. Repito a mim mesma que ele está bem.

É nessas noites – a maioria das noites, para ser sincera – que mais sinto falta de Peeta. Sinto falta de seus braços durante a noite para acalmar-me de qualquer pesadelo que seja. Peeta era o único que conseguia fazê-lo. Seus braços me passavam confiança, segurança e o sentimento de estar em casa. Podia ser egoísmo meu usá-lo para isso enquanto Peeta tinha sentimentos por mim. Mas não agora. Não agora que para ele eu era apenas uma estranha. Não agora que eu sabia que precisava dele mais do que para isso. Eu simplesmente precisava dele.

Vejo a luz de um quarto acender na casa da frente e sento-me na poltrona ao lado da janela.

- Peeta está bem. – falo antes de fechar as cortinas e passar o resto da noite acordada.

****

Quando Greasy Sae chega na manhã seguinte já estou na cozinha, muda, como sempre. Ela já tem tudo nas mãos, inclusive o pão. Começa a tagarelar sobre seus netos, as reconstruções no distrito. Aparentemente já havia começado as construções da escola, da antiga sapataria dos pais de Delly Cartwright, do açougue, da padaria de Peeta e de um novo hospital.

Pensar em um novo hospital me lembra de minha mãe e de Prim que certamente gostariam disso. Imagino minha irmã crescendo num lindo distrito 12, podendo comprar quantas balinhas e bolos decorados ela quisesse não pelo que ganho por ser Vitoriosa, mas pelo seu salário por ser médica. Muito além disso, penso em ver o rosto de Prim feliz por poder estar ajudando os outros.

- Estou muito feliz, de verdade, que ele tenha voltado a pintar. – Greasy fala e é ai que presto atenção.

- Espera. Quem voltou a pintar? – pergunto mesmo já sabendo a resposta.

- Você presta atenção em alguma coisa que eu te digo, menina? – ela se vira para mim, mas mesmo assim responde: - Eu estava dizendo que Peeta acordou muito cedo esta madrugada para fazer os pães já que queria ficar a manhã inteira pintando e que estou muito feliz de vê-lo pintando novamente. Ele até teria vindo se não... Bom, deixa para lá.

- Se não o quê, Greasy? – pergunto ficando mais curiosa. Odeio o fato de que até ela sabe mais sobre Peeta do que eu.

- Bom, você sabe, menina... Ele não está cem por cento ainda. Ele ainda tem uns daqueles flashbacks bizarros, de vez em quando.

Lembro-me de quando Peeta teve seu flashback enquanto desarmávamos um casulo na Capital. Seu ataque custou a vida de Mitchell e quase as nossas próprias. Lembro-me também da vez que ele sofreu outro de seus ataques e me pediu para deixá-lo, e ao invés disso eu simplesmente o beijei e pedi que ficasse comigo. Lembro-me de sua resposta: sempre.

Sabia que Greasy Sae esperava uma resposta minha, mas não havia o que responder, porque nem eu mesma sabia o que sentia em relação a isso. Em vez de remoer isso dentro de mim, foco-me na parte em que ela disse que ele teria vindo. Será mesmo que ele teria vindo? Mesmo após a desfeita de ontem? E por que um flashback o faria não vir? Não posso pensar em nada além de que ele deu o flashback como uma desculpa para não me ver. Não me surpreenderia após o que eu fiz.

Levanto-me, aceno para Greasy e saio de casa rapidamente. Precisava falar com alguém que não só me entendesse como também me conhecesse por quem verdadeiramente sou. Infelizmente, essa pessoa era Haymitch. Caminho pela Aldeia dos Vitoriosos até a casa dele e nem sequer me importo em bater na porta. Era pouco provável que Haymitch estivesse acordado a essa hora da manhã e mesmo que estivesse ele não a atenderia.

Penso em somente entrar e confrontá-lo, perguntar-lhe o que acontecia com Peeta e por que ele não estava cuidando de nós como deveria, mas uma voz – uma que eu não esperava – me fez parar pouco antes de adentrar a cozinha.

- Foi mais um daqueles flashbacks terríveis, sabe? – Peeta fala. – Os dos piores.

- Aqueles que você nunca sabe se são reais ou não? – Haymitch pergunta e sua voz parece surpreendentemente sóbria.

- Não. Aqueles que não há como saber se são reais ou não. Aqueles que nunca saberei. – ele suspira.

Espio o cômodo de um modo que nenhum dos dois me veria ali. Haymitch está sentado em uma cadeiras da cozinha com uma garrafa de aguardente branca na mão – mas não parece tomá-la – e Peeta está sentado em sua frente com os cotovelos nos joelhos e o rosto enterrado nas mãos.

- Você sabe que sempre pode perguntar a ela. – Haymitch lhe diz e Peeta finalmente o olha. Quase arquejo quando vejo seu rosto com olheiras profundas, olhos vermelhos e lágrimas caindo.

- Você sabe que eu não posso. – ele sibila.

- Não, garoto, o que eu sei é que você não quer.

Peeta se cala e volta a esconder o rosto. Haymitch continua o encarando até que suspira e pergunta:

- Você quer me contar sobre o que foi?

Peeta nega.

- É muito pessoal... Não sei se conseguiria.

Haymitch toma um gole da garrafa – provavelmente o último – e a joga na lixeira. Em seguida, caminha até o armário ao lado da geladeira e pega outra garrafa, mas não a abre.

- Experimente. – ele abre os braços e cambaleia até a cadeira novamente quando diz.

- Tem a ver com ela e com... – Peeta engole em seco e se recusa a continuar.

- Com aquele priminho maravilhoso caçador dela? – ele ironiza. Já era tempo, afinal o que é uma conversa com Haymitch sem um pouco de ironia?

Então percebo que eles falam de mim. Eu era a “ela” presente na conversa em todos os momentos. Não sei se vou aguentar escutar mais disso, então vou até a porta, a abro e depois a fecho com força. Ambos sabem que estou aqui agora.

- Haymitch! – grito e me encaminho para a cozinha.

A cena da cozinha está diferente agora. Haymitch está tomando goles e goles de sua aguardente branca e Peeta se encontra lavando a louça, de costas para mim.

- Finalmente deu o ar da sua graça, docinho. – Haymitch largou a garrafa apenas para bater irônicas palmas. – Decidiu tomar um ar e agradar-nos com sua visita?

- Não, vim ver se você já tinha morrido de overdose. – falo como quem pergunta como vai o dia e sento na cadeira antes ocupada por Peeta.

Haymitch revira os olhos e toma mais um gole.

Fico com raiva. Fico com raiva porque Peeta disse a Greasy Sae que estaria pintando a manhã toda e, mesmo que ele não me deva nenhum tipo de satisfação, ele está aqui conversando com Haymitch. E fico com raiva porque Haymitch, de fato, está escutando-o. Haymitch não escuta a ninguém, muito menos a mim. Haymitch, o mesmo que havia o deixado na arena para morrer, o mesmo que me escolheu em vez dele, estava escutando Peeta como se sua vida dependesse disso.

- Você não estava pintando, Peeta? – pergunto irritada.

- Não meta o garoto no meio disso, Katniss. Ele veio para me ajudar e cuidar dos malditos gansos.

- Bom, Haymitch, você quem deveria estar cuidando dos malditos gansos.

Peeta deixa um copo cair na pia e causa um barulho ensurdecedor.

- Eu já estava de saída, Katniss, não se preocupe. – ele diz e sai pisando forte pela porta dos fundos.

Fico olhando para por onde ele saiu e fico com ainda mais raiva. Raiva de mim por tratá-lo assim.

- Por que você faz isso? – Haymitch me questiona.

- Faço o quê?

- Trata o garoto dessa maneira. Até parece que vocês não passaram por esse monte de coisas juntos.

- E você, Haymitch, por que faz isso? – levanto da cadeira bruscamente. – Por que o deixa no Massacre Quaternário, por que o abandona na primeira arena e depois dá uma de mentor preocupado? Por quê, Haymitch?!

- O que acontece entre mim e o garoto não diz respeito a você, garota em chamas. – ele diz o apelido com nojo. Podia dar um soco nele agora mesmo por usá-lo, mas me seguro. Fico calada porque ele tem razão, sei que tem e jamais admitirei. – O que traz a sua infeliz presença ao meu lar?

- A única coisa que poderia nos juntar.

Haymitch não precisa nem pensar para responder essa afirmação.

- Peeta.

****

Saio da casa de Haymitch com a certeza de que ele é um maldito bêbado e de que tenho agido errado com Peeta novamente.

Quando chego em casa Greasy Sae já está preparando o almoço e me dá uma bronca quando diz o quanto ficou preocupada. Eu me desculpo, mas não sinto isso verdadeiramente. Sequer consigo me sentir culpada ou agradecida por ela se importar comigo. Acho que, na verdade, tudo o que quero é que parem de se importar comigo. Greasy Sae não admite mas sei que a Capital lhe paga para cuidar de mim, para ver se me alimento, se durmo. Sei que quanto mais cedo aprender a fazer minhas coisas sozinha, mais cedo me livrarei dela, da Capital e da minha pena por ter matado Alma Coin.

Greasy volta mais uma vez naquele dia e vai embora com o mesmo discurso de sempre. Ontem lavei a louça, hoje sai de casa. Para ela, são sinais de que estou me recuperando, mas ambas sabemos que por dentro fico cada vez pior. Todos sabem.

Naquela noite, após tomar banho, sento-me na poltrona e observo a casa de Peeta de novo. Imagino o que ele está fazendo. Será que está assando pães? Talvez assando um bolo que vá decorar mais tarde? Quem sabe só pintando em uma de suas telas ou desenhando em um de seus cadernos.

Lembro-me de quando Peeta e eu ficamos semanas em meu quarto para completar o livro de meu pai. Peeta desenhava e eu o observava. Ele tinha aquele semblante infantil, puro. Era o velho Peeta – o Peeta que vi em seu olhar algumas vezes após seu retorno da Capital. Lembro-me também de quando me mostrou suas telas no trem antes do Massacre Quaternário. Cenas sangrentas da primeira vez em que participamos dos Jogos Vorazes e eu estava em todas elas. Ele dissera que eram seus pesadelos, que ao contrário de mim, ele sofria em silêncio e depois pintava. Penso se ele ainda tem esses pesadelos, se ainda os pinta, se ainda sofre em silêncio – e sei que é muito provável que sim.

Em algum momento, caio no sono.

Acordo gritando e sei o porquê. Meu sonho envolvia Johanna sendo afogada na Capital, Enobaria rasgando a garganta de Finnick e Prim e Peeta sendo mortos por Gale com uma flecha atravessando seus corações. Sei que não é real, mas é impossível deletar as imagens de minha cabeça. Enrolo-me em posição fetal e deixo as lágrimas caírem enquanto tento apagar tudo aquilo de minha mente.

Percebo que estou no meu quarto, como sempre, mas que dessa vez o sol já havia nascido. Minha cama está devidamente feita com a toalha molhada em cima, exatamente como a deixei a noite. Continuo sentada na poltrona de frente para a casa de Peeta. A claridade que entra rapidamente pela janela me cega por um instante, mas não o suficiente para que, ao virar, eu veja o vulto de uma pessoa abrindo a porta desesperadamente e entrando no quarto.

- Katniss?! – Peeta pergunta aflito.

- Estou aqui. – falo com a voz fraca. Pigarreio e repito mais alto.

Peeta suspira.

Ver seu rosto, vê-lo bem após o pesadelo que tive era tudo o que eu precisava. Ele já está na minha linha de visão e, apesar das insistentes olheiras, ele parece o mesmo. Até seu olhar denuncia o antigo Peeta, o garoto do pão, e eu relaxo.

- Desculpa entrar assim, é que eu e a Greasy estávamos na cozinha e eu ouvi um grito... – ele fala se aproximando de mim, mas apreensivo.

- Está tudo bem. – balanço a cabeça. – Foi só um pesadelo.

Não sei explicar o porquê, mas me sinto ligeiramente feliz ao ouvir isso. Sinto-me agradecida por saber que, apesar de tudo, talvez Peeta ainda se importe comigo.

- Tudo bem, eu vou descer e...

Antes mesmo que eu perceba, seguro sua mão e falo:

- Não. Fica comigo.

Peeta parece confuso. Seu olhar passa de meus olhos vermelhos à minha posição diversas vezes até que ele balança sua cabeça – como se tentasse tirar algum pensamento de dentro dela – e vem em minha direção. Ele se senta no braço da poltrona, puxa minha cabeça de encontro a seu peito, me abraça e sussurra:

- Sempre.

Segurando um bolo de sua camisa em minhas mãos e sentindo aqueles braços ao meu redor sei que finalmente, depois de muito tempo, estou em casa.

Lembro-me da primeira vez em que ouvi esse diálogo entre nós. Eu havia machucado o pé enquanto pulava a cerca eletrificada do distrito e Peeta teve que me levar até a cama em seu colo. Quando chegamos lá, pedi a ele que ficasse e ele falou algo incompreensível, mas ficou. Não foi até a segunda vez que descobri de fato o que ele havia me dito. A maldita segunda vez foi em sonho enquanto eu estava no distrito 13 e Peeta sendo torturado pela Capital. Então, eu ouvi o “sempre” e de algum modo eu soube que fora aquilo que ele havia falado da primeira vez. Da terceira vez, Peeta estava tendo um de seus ataques e me mandou matá-lo. Eu não o fiz, nunca o faria. Apenas pressionei meus lábios nos seus e implorei para que ficasse. Quando ele respondeu, eu soube que sabe-se lá como o meu Peeta ainda estava ali tentando voltar para mim. E agora, da quarta vez, talvez ele tivesse finalmente conseguido retornar.

Passamos dez, quinze, vinte minutos daquele modo até que Greasy Sae grita perguntando-nos se estava tudo bem. Peeta responde que sim e que logo eu iria descer para tomar meu café da manhã. Quando ele se levanta sei que tenho de largá-lo, apesar de não querer. Sabia que se ele descesse aquelas escadas ele iria embora, então eu estaria novamente sozinha. Ele me solta, olha em meus olhos profundamente e caminha para a porta.

- Peeta? – chamo-o antes que ele possa sair.

Ele responde, mas não se vira:

- Sim?

- Você poderia preparar um chocolate quente para mim? O da Greasy é bom, mas sabe como é... prefiro o seu. – falo. Sei que não é nada disso, que mal me importo com o gosto de um chocolate quente e sei que faço isso para que ele não vá. Também sei que sou egoísta, mas não consigo evitar.

- Claro. – ele responde e me lança um sorriso antes de sair pela porta.

Apronto-me o mais rápido que posso e desço as escadas rapidamente até a cozinha. Greasy Sae está lá lavando o que usei na refeição passada e Peeta está na bancada ao seu lado. Na mesa, todo o café já posto somente esperando por mim. Sento-me e já ataco os pães de Peeta que ainda estão quentinhos e que fazem o queijo se derreter por dentro, e eu me delicio. Em menos de um minuto, uma caneca pousa em minha frente. Viro-me para Peeta e lhe digo um “obrigada” de boca cheia. Ele ri de meus modos – ou a falta deles. Quando está prestes a sair pela porta, Greasy Sae lhe pergunta:

- Por que você não faz companhia para a menina? – ela aponta para mim. – Você está sozinho em casa e ela vai ficar sozinha aqui. Façam companhia um para o outro.

Peeta me olha em dúvida como se esperasse que eu discordasse ou concordasse de Greasy Sae. Eu dou de ombros, como se tanto fizesse, mas por dentro quero realmente agradecer Greasy Sae mais tarde – e dessa vez de verdade.

- Vou deixar vocês dois aí. Mais tarde eu volto, Katniss. – Greasy sorri para nós dois e sai como se não desse a Peeta uma opção.

Ele senta-se novamente na cadeira mais distante de mim e dessa vez não come nada, apenas me observa. Pondero se devo brincar com algo como “pode chegar perto, eu não mordo”, mas sei que essa não é a verdadeira Katniss e sei que talvez ele tenha lembranças meio turvas sobre eu lhe morder ou não. É muito provável que a única coisa de que ele se lembre é de que eu mordo, de fato.

Ao invés de dizer qualquer bobagem, eu apenas como o encarando e penso em algo inteligente para dizer. Algo que eu realmente queira dizer. E algo que acabe com o clima tenso em que nos encontramos.

- O chocolate está bom? – ele pergunta direcionando a caneca com a cabeça. Assinto, pois estou com a boca cheia. – E os pães?

- Está tudo ótimo, Peeta. Obrigada. – ele abre a boca para falar algo, mas logo a fecha e olha para os cantos. Sinto que ele quer me perguntar algo, então o encorajo: - Sabe que pode me perguntar qualquer coisa, não é? Manda aí.

Peeta suspira e me manda um sorriso.

- Até parece que você leu minha mente.

Quem me dera, penso mas me mantenho calada e espero que ele continue.

- Hã, seus pães favoritos... são pães de queijo. Real ou não real?

- Real. – respondo e conheço Peeta suficientemente bem para saber que essa não era a pergunta que ele queria me fazer, mas decido não o pressionar.

Ele suspira e sussurra um leve “obrigado”. Continuo comendo e olhando-o enquanto seu olhar vaga por todo o recinto. Quero lhe perguntar tantas coisas. Quero lhe perguntar sobre seus flashbacks – que Haymitch se recusou a me contar –, sobre seus pesadelos, suas pinturas e até mesmo sobre a reconstrução da padaria. E quero, acima de tudo, pedir-lhe desculpas.

- Então, Greasy Sae disse que você voltou a pintar. – começo e espero por uma resposta sua.

- Sim.

Peeta é tão vago que me deixa irritada, mas continuo:

- Isso é bom.

- Dificilmente. – ele responde. Penso se tem a ver com pesadelos, comigo tentando matá-lo ou o que quer que seja e me encontro em lugar nenhum. Não estou acostumada com um Peeta enigmático, apenas com aquele que me contaria tudo num piscar de olhos.

- Como assim? Você adora pintar.

- Deixa para lá, Katniss. Eu... eu não quero falar sobre isso, ok? – ele se esquiva. – A única coisa que jamais consegui pintar foi um arco-íris. Real ou não real?

- Real. – respondo rapidamente e volto ao assunto anterior. – Bem que você podia me mostrar algumas de suas telas... Você me mostrou suas pinturas antigas no trem durante a Turnê da Vitória. Real ou não real?

- Real. – ele responde, mas parece em dúvida. – Não é?

- Sim, Peeta. Isso é real.

Ele sorri para mim e meu rosto toma uma forma que não é exatamente um sorriso mas também não é a carranca triste que se encontrava nos últimos tempos.

Quando acabo de comer, Peeta se oferece para lavar a louça e eu decido ajudá-lo. Ele lava, eu seco e por fim guardamos juntos. Começamos em silêncio, sem olhar um para o outro, apenas fazendo nossas funções. Assim que o olho, percebo que ele sorri. Sorri de verdade. Não qualquer sorriso, mas o sorriso. O sorriso brincalhão, um tanto infantil e feliz que pertencia ao antigo Peeta.

Talvez o antigo Peeta não fosse mais o doce padeiro, bom com as palavras, decorador de bolos. Aquele que mal acreditava em sua própria capacidade e faria de tudo para salvar os outros. O altruísta. Talvez esse fosse o atual Peeta. Talvez Peeta já tivesse passado por cima de tudo, já tivesse superado todas as torturas sofridas pela Capital. Talvez agora o velho Peeta era aquele que acreditava que eu era uma bestante, o irônico que usaria todas as palavras para me machucar, o manipulado. Talvez, finalmente, meu Peeta estivesse de volta.

- Me desculpe. – falo enquanto estamos guardando as coisas no armário.

- Pelo quê?

- Pelo modo como te tratei nos últimos dias.

Como te tratei desde a primeira colheita, seguro esse pensamento.

- Está tudo bem, Katniss. – ele balança a cabeça e sorri. – Eu entendo.

- Não, Peeta. – nego veemente. Pego suas mãos nas minhas e faço com que ele me olhe. – Não há desculpa para isso. Eu te tratei mal. E isso foi errado. Estamos juntos nessa. Nós protegemos um ao outro, lembra?

- Sim, Katniss. Obrigado.

Então, ele se inclina, beija minha testa e me abraça. Surpreendo-me quando desejo que aquele beijo tivesse sido plantado em outro lugar, mas me reprimo. Sei que ele tem que ir embora agora, mas não quero soltá-lo nunca mais. Pelo menos não agora que ele finalmente havia voltado. Mesmo assim, os braços de Peeta se afrouxam ao meu redor até finalmente me soltarem. Ele olha em meus olhos mais uma vez, sorri e em sua íris azul eu tenho certeza que claramente o vejo.

Peeta está de volta.

Antes de sair pela porta, ele se vira e fala:

- Pode passar lá em casa qualquer hora dessas, sabe... Para ver minhas telas.

Ele já havia saído, mas sussurro mesmo assim:

- Com certeza, irei.

****

Quando Greasy Sae me encontra na parte da tarde, ela abre um grande sorriso. Estou deitada no sofá escrevendo o livro que o Dr. Aurelius havia recomendado que eu escrevesse e acho que, pela primeira vez, o toco sem chorar ou me tornar catatônica. Greasy bagunça meus cabelos e comenta o quanto já estão grandes. Digo a ela que sinto uma enorme vontade de trançá-los. É assim que caminhamos para a cozinha e ao invés de preparar meu almoço, Greasy Sae acaricia meus cabelos da raiz à ponta e os trança bagunçada e lateralmente. Quando me olho no fundo de uma panela, eu me reconheço pela primeira vez em meses.

Assim que começa a cozinhar, Greasy Sae me pergunta sobre Peeta. Digo-lhe que tomamos café da manhã juntos e que ele fora embora, mas sei que não é essa a resposta que ela procura. Ela diz que a população que retornou ao 12 pergunta por mim e, que sempre que encontram Peeta, ele diz que estou bem.

- Você devia levá-lo como exemplo, menina. – ela fala enquanto mexe com a colher de pau. Paro de ver Greasy Sae como uma simples vendedora ilegal do Prego e a vejo agora como uma mãe, uma avó de sabe-se lá quantos netos. A única demonstração de cuidado e preocupação que tenho tido nos últimos tempos. – Ele sai, conversa com as pessoas, se demonstra preocupado.

- Esse é Peeta. – falo simplesmente.

Esse sempre fora Peeta. Peeta quem tinha o dom de fazer com que as pessoas gostassem dele. Ele era doce, amável. Inclusive fora Peeta quem fez com que as pessoas gostassem de mim com suas histórias sobre meu canto, ou ser completamente apaixonado por mim desde os 5 anos. Se fosse por mim, por minha carranca, ironia, por meu egoísmo, as pessoas me odiariam tão fortemente quanto pudessem.

- Ele tem acalmado o 12 sobre seu estado. – Greasy diz. – Ele é um bom garoto. Tem ajudado também aquela tal de Nelly... Aquela que tem a sapataria lá mais adentro da cidade.

Incomodo-me ao ouvir isso. Incomoda-me que Peeta tenha ajudado Delly ultimamente e que mal tenha trocado uma palavra comigo – a não ser pelos últimos três dias. Tenho que me lembrar de que Delly e Peeta são como irmãos e ambos perderam as famílias, mas não consigo refrear esse sentimento afinal eu também perdi minha família e não há ninguém aqui para mim.

- Delly. Delly Cartwright. – corrijo.

Greasy Sae dá de ombros como se tanto fizesse o nome da garota.

- Passei na casa dele agora mesmo antes de vir para cá. – ela sorri. – Ele estava pintando de novo.

- E sobre o que são as telas dele? – me interesso pela conversa, enfim.

- Não sei. Ele não deixa ninguém ver. Nem eu, nem a tal de Delly. Nem mesmo Haymitch.

Isso me surpreende. Tenho certeza que, antes de ir embora, Peeta me convidou para ver suas telas. Se antes eu já estava curiosa para vê-las, agora eu explodia de curiosidade. O que será que há em suas telas que ele não mostre para ninguém, exceto eu? Sinto-me de uma maneira ou de outra especial e gosto desse sentimento.

- Greasy, você disse que ele estava pintando...?

- Sim, menina. Lá nos fundos, no quintal.

Posso estar sendo maluca por fazer isso. Saio de casa pela porta da frente e atravesso o enorme gramado verde da Aldeia dos Vitoriosos. Sei que vou levar outra bronca de Greasy Sae por sair de casa sem comer, mas de verdade eu não me importo. Bato na porta de Peeta uma, duas, três vezes até ouvir passos caminhando em minha direção.

A porta se abre revelando um Peeta que eu nunca havia visto. Ele estava com um avental de padeiro e limpava lá suas mãos sujas de tinta. O avental tinha diversas cores espirradas em si, como azul, verde, vermelho sangue, mas as mãos de Peeta estavam sujas de branco, prateado e preto. Imagino o que ele estaria pintando passando de cores tão vivas à cores tão mortas. Quando vê que sou eu, Peeta parece confuso e ligeiramente surpreso.

- Katniss, que surpresa... inesperada.

- Inesperada? – questiono e solto um riso tentando acabar com a tensão, mas ambos sabemos que eu não acho graça de nada faz um tempo. – Você quem me convidou.

- É, eu sei... É que...

- Você não esperava que eu fosse vir. – completo.

Ele suspira. Ouço ele falar algo baixo como “você leu minha mente de novo”, mas não tenho certeza.

- É. – ele confirma. – Mas você está aqui...

- Estou aqui. Você não vai me convidar para entrar?

- Claro que vou, que modos os meus... – ele sai do caminho e eu entro, mas quando ele vai fechar a porta nós nos embolamos e ele acaba por cair em cima de mim. Tento me equilibrar, mas caio até estar encostada na parede e Peeta me acompanha.

Olhos em seus olhos e ele nos meus. Estamos próximos. Muito próximos. Posso sentir seu hálito quente em meu rosto quando ele sussurra:

- Desculpe. – mas mesmo assim, continua parado no lugar colado a mim.

E então sei que quero beijá-lo. Sei que posso me mover, que nossos lábios vão se encontrar, mas não o faço. Não o faço porque sei que vou sentir aquela ânsia novamente – a mesma que senti na praia no Massacre Quaternário e na caverna da primeira arena. E quando senti-la, sei que desejarei jamais parar de beijá-lo.

Peeta se afasta.

- Então, eu te chamei... para que mesmo? – ele se vira, mas percebo que está corando e encabulado. Sei que provavelmente também estou.

- Ver suas telas.

- Ah, sim. Vem por aqui. – ele pega minha mão e me leva até os fundos de sua casa.

No quintal, há várias telas num canto encostadas na parede e viradas para trás. Ao lado delas há outra tela, uma que ainda está no suporte – provavelmente a que Peeta estava pintando antes que eu o interrompesse. Não consigo nem distinguir as formas lá pintadas, já que Peeta vai a ela rapidamente e a esconde de mim. Não preciso nem abrir a boca para perguntar-lhe o porquê – Peeta já conhece todas as minhas expressões – e é realmente como lêssemos a mente um do outro.

- Ela não está acabada ainda. – ele explica.

- Tudo bem. Você pode me mostrar quando ela estiver. – eu sugiro. Ele não se convence muito e imagino o que será que tem naquela tela. – Me mostra as outras.

Caminho para perto dele e me sento na grama. Ele me acompanha e senta ao lado das telas já prontas. Ele respira fundo como se preparasse para me mostrar.

A primeira tela é de um floresta e logo a reconheço: a primeira arena que participamos dos Jogos Vorazes. Entre as árvores de diferentes tamanhos e cores, há uma que se destaca por ser maior que qualquer outra. Nessa árvore em questão, há um personagem – uma menina, sei por seus cabelos longos penteados em uma trança. Mal consigo ver sua expressão, mas acho que ela parece alarmada e esperançosa. A seu lado há uma mochila num vívido tom de laranja.

- Sou eu? – pergunto e passo o dedo pela pintura um tanto receosa. Não sei se Peeta se incomoda que eu a toque, mas não parece se importar.

- Sim.

- Da onde tirou isso, Peeta? – questiono-o. Ele parece incomodado, mas quero que me fale, então mesmo quando ele devia seu olhar eu continuo o encarando até conseguir uma resposta.

- Katniss, é... complicado.

Complicado? De tantas coisas complicadas pelas quais já passamos, o complicado para ele é me dizer o que são realmente essas pinturas? Complicado foi quando ele foi sorteado e eu voluntária para os Jogos Vorazes. Complicado foi quando fomos fadados a voltar para o Massacre Quaternário. Complicado foi quando eu sabia que ele estava sendo torturado na Capital e não havia nada que eu pudesse fazer. Complicado foi o tempo em que ambos achávamos que o outro estava morto. Abrir-se para o outro não devia ser complicado, devia ser um alívio.

- De todas as coisas complicadas... – eu murmuro. – Peeta, já passamos pelas fases complicadas.

- Tudo bem. – ele respira fundo. – Ainda tenho flashbacks, Katniss.

Pelo seu olhar, acho que ele esperava que eu ficasse surpresa, mas eu não estava. Sabia disso. Greasy havia me contado e eu havia conversado com Haymitch sobre isso. Insisto para que continue.

- Às vezes, sei que eles não são reais. Eles vêm turvos, desconexos, sem sentido. Outros sei que são reais porque são lembranças dos Jogos e eu os revi. Mas há vezes... que não posso distinguir quais são reais e quais não são. Eles vêm vívidos, nítidos e eu sinto o que realmente senti nos momentos em que os vivi ou que teria os vivido. Então, sempre que os tenho, eu pinto.

Deixo que suas palavras entrem em minhas cabeça. É por isso que Peeta nunca mostra a ninguém suas pinturas. E talvez por isso ele tenha me mostrado, afinal eu sei dizer quais de suas lembranças são reais e quais não são.

Então, dessa vez, ao invés de pintar seus pesadelos ele pinta coisas ainda piores. Ele pinta os frutos de sua tortura. Momentos que o aterrorizam até mesmo quando ele está acordado e no controle da situação.

Este momento, porém, não parece uma lembrança ruim. Parece apenas uma pintura de uma garota em meio as árvores, então sei que ela provavelmente tem um significado para ele maior que isso.

- Bom, posso te dizer que essa é real. – é a única coisa que falo.

- Sim. – ele ri. – Sei que esta é real. Foi quando você gritou meu nome na arena e depois saiu para me procurar perto do rio. Pedi a Haymitch para rever os Jogos depois de pintar isso.

Lembro esse momento. Foi quando Claudius Templesmith – a voz dos Jogos Vorazes – anunciou que poderia haver dois vitoriosos caso pertencessem ao mesmo distrito. Antes que eu pensasse, já havia gritado o nome de Peeta. Lembro de estar sim aflita e esperançosa. Aflita porque não sabia onde estava Peeta desde que ele havia me salvado do ataque de Cato e esperançosa porque poderia fazer o que quis desde o início: levar tanto eu quanto ele de volta para o distrito 12.

Peeta deixa a pintura de lado e pega a próxima. Nessa há uma bela visão da Capital a frente. Um garoto loiro – provavelmente ele mesmo – está em pé no parapeito de um telhado e sua expressão é assustada. Suas mãos se estendem na frente do corpo como tentasse se proteger de alguma coisa que não aparecia na tela. Pela visão que tenho da cidade e pela forma como o parapeito é construído sei que o local se trata do telhado do Centro de Treinamento.

- O que é essa?

- Sou eu caindo do telhado do Centro de Treinamento antes do Massacre Quaternário. Você me empurrou. Real ou não real? – ele pergunta. Sinto raiva por ele ter coragem de me perguntar isso, mas tento me lembrar de que todos os seus pensamentos estão confusos agora.

- Não real. – digo, mas sinto que preciso lhe explicar. – Naquele dia, nós fizemos um piquenique no telhado. Nós brincamos com o campo de força que havia ali. Nós jogávamos a maçã e ela voltava para nós. Lembra disso? Foi um dia antes de entrarmos na arena. Tínhamos certeza de que iríamos morrer, então passamos todo o tempo que pudemos juntos. Eu nunca empurraria você.

Peeta suspirou, mas não parecia surpreso.

- Eu imaginei, mas mesmo assim... Eu não podia ter certeza.

Ele balança a cabeça com o pensamento e me mostra a pintura seguinte. Há uma TV, mas não consigo dizer exatamente o que se passa nela – esse não é o destaque no quadro. O destaque do quadro são os dois personagens que a assistem. Um de cabelos curtos e loiros – certamente Peeta – e a outra com cabelos escuros, longos, soltos e ondulados que deita em seu peito – estou certa de que sou eu.

- Assistimos abraçados ao último Massacre Quaternário. Real ou não real?

- Você estava obcecado em vencer. Fez com que eu e Haymitch treinássemos e assistíssemos a todos os outro Jogos da possível concorrência. Nem mesmo no trem você se aquietou. Então, aquela noite, quando eu tive um pesadelo e você não apareceu... Sabia que você estava assistindo aos Jogos dos outros competidores. Está vendo aquela caneca ali? – passo a mão sobre as canecas na mesa de centro. Ele assente. – Chocolate quente. – nós sorrimos. – Eu simplesmente me aconcheguei em você e assistimos ao último Massacre, o que Haymitch ganhou. Então, sim, é real.

Peeta sorri e acho que ele se lembra da cena. Eu definitivamente lembro. Haymitch chegou logo em seguida e nos sentimos culpados. Quando ele nos contou que, após o erro que lhe dera a vitória, seus familiares e todos que amava havia sido assassinados, nos culpamos mais ainda.

Lembro de Maysilee Donner, amiga de minha mãe e tia de Madge, a aliada de Haymitch quem ele tentou inutilmente salvar. A dona do broche de Tordo que eu usara em ambos os Jogos a pedido de minha única amiga. Lembro-me da tristeza que senti ao vê-la morrer na arena, ao saber que ela era a causa da doença que afligiu a Sra. Undersee desde sua morte. E lembro que por isso decidi salvar Peeta. Não poderia perdê-lo da mesma forma.

Na tela que se segue, reconheço de cara a arena do Massacre. Ao fundo há a floresta e exatamente na fronteira vejo três pequenos personagens. Mais a frente, o personagem de Peeta está na água, deitado, e o meu lá também se encontra em pé. Não entendo muito bem a cena, não consigo distinguir os personagens mais distantes nem mesmo o que Peeta e eu fazemos na água.

- Você me ensinou a nadar na praia da arena. Real ou não real?

- Sim, real. Era, na verdade, só uma desculpa para te falar que logo teríamos que nos separar dos nossos aliados, mas eu tentei te ensinar a nadar sim. – Peeta assente e logo vai passar para a próxima, mas lhe pergunto: - Você não poderia simplesmente ver os Jogos para saber essa?

- Eu tentei. Haymitch tentou me mostrar, mas... Só aparecíamos ao fundo. O foco daquele momento era o que Johanna, Finnick e Beetee estavam fazendo. Fiquei decidindo se você estava me ensinando a nadar ou tentando me afogar.

Parece uma piada, mas sei que Peeta está falando sério quando diz isso. Vejo-me surpresa. Não fazia ideia de que não focariam em uma cena dos amantes desafortunados do distrito 12.

- Como você aprendeu a nadar? – Peeta pergunta subitamente.

- Meu pai achou um lago na floresta enquanto caçava. Nem mesmo me lembro de ter aprendido. Só sei que aprendi e que nos anos seguintes eu e meu pai sempre íamos. Era nosso local secreto e especial. Nunca levei ninguém mais lá.

Além de Gale, mas não digo isso. Não digo porque não o levei lá para apreciar o local, mas porque achei que nosso ponto de encontro havia sido grampeado e precisávamos falar sobre fugas e levantes em outros distritos. Não digo porque não fora nada especial para mim, como era quando eu ia sozinha ou com meu pai. Mas principalmente não digo porque não acho necessário falar isso a Peeta. Mesmo que não sinta nada mais por mim, quero me reaproximar e falar de Gale certamente não é a forma para isso.

Peeta reflete e acho que decide não falar nada. Mostra-me a outra tela que já estava em sua mão. Nessa há um close muito maior em nós que nas outras. Estamos ambos de perfil – eu estou com maquiagem e cabelos feitos, mas minha expressão é de quem sente raiva e ódio; Peeta está com o cabelo penteado e parece estar de terno, mas seu rosto tem um doentio tom de roxo. Percebo que no quadro eu estou enforcando-o.

- Você tentou me matar depois que eu disse para Ceasar e para toda Panem que era apaixonado por você. Real ou não real?

- Não real. – eu falo, mas me sinto culpada. Sei que eu realmente devia ter aquela expressão naquela noite. – Eu te empurrei e você machucou suas mãos com vidros quebrados. Fiquei com raiva por você ter dito aquilo, sim. Pensei que você me fez parecer fraca.

- Mas não tentou me matar? – Peeta pareceu pouco convencido.

- Não. Nunca tentei te matar, a não ser por aquela vez com a colmeia de teleguiadas. Mas você sabe o porquê. – Peeta assente. Lembro-me do que Haymitch me dissera após me afastar de Peeta. – Fiquei irada com você, você não faz ideia. – Peeta ri. Fico maravilhada com o fato de que ele ainda consiga fazer esse som mesmo após tudo o que passamos e o que ele ainda passa. – Haymitch me disse que você me fez parecer desejável. Acho que ele estava certo, afinal. Ninguém teria gostado de mim se você não os fizesse gostar.

Peeta me olha profundamente. Parece confuso, mas ao mesmo tempo seu olhar é doce. Ele estende a mão por um momento, acho que para acariciar meu rosto, mas logo desiste. Ao invés disso, ele apenas sussurra:

- Katniss, eu sei exatamente porque as pessoas gostam de você. Tenha

certeza de que não é por mim.

Não sei o que responder e também não sei se quero saber o que ele quer dizer com isso, então me calo. Quando ele percebe que não o responderei, ele passa para a próxima tela. Estamos juntos, olhando um para o outro, numa praia. Ambos usamos as roupas da arena do Massacre Quaternário. Os cabelos de Peeta estão bagunçados, com um pouco de fuligem e seu rosto está cheio de arranhões. Meus cabelos estão soltos, por algum milagre, e se há algum machucado em meu rosto, não consigo vê-los. A mãos de Peeta estão estendidas, dando-me algo pequeno e rosa: a pérola.

- Estávamos encenando. Eu te dei aquela pérola e você me disse que precisava de mim. Real ou não real?

- Real. – quando ele fala, lembro-me exatamente do momento que nem em duzentas vidas eu esqueceria. – Você disse que precisava me salvar porque havia pessoas no 12 que precisavam de mim. Minha mãe, Prim, Gale. Que eu não devia me sacrificar te salvando porque ninguém precisava de você. E eu percebi que eu precisava.

Peeta assente e abaixa a cabeça, mas o que ele falou volta para minha mente. Estávamos encenando, dissera ele.

- Mas não é real. – falo pegando-o de surpresa. – Não, eu me lembro bem. Não estávamos encenando. Estávamos conversando como Katniss e Peeta, não como os amantes desafortunados do distrito 12.

Peeta olha para mim sorrindo. Ver esse sorriso em seu rosto é algo tão gratificante que, pela primeira vez desde a morte de minha irmãzinha, eu me sinto feliz. Seus olhos brilham quando olham para mim e acho que ele tenta disfarçar que está feliz, mas é vão. Ele então parece olhar para todos os lados e tenta conter seu sorriso. Conheço Peeta bem e sei que ele quer me fazer uma pergunta pelo modo como se porta. Depois de tudo o que falei a ele, sei que ele confia em mim novamente. Sei que ele vai me perguntar o que quer que seja, então lhe dou um tempo para que se recomponha.

Quando ele volta a olhar para mim, seus olhos me seguram. Nem se eu quisesse poderia desviar. Peeta sussurra tão baixo que tenho que me esforçar para ouvir:

- Você ainda precisa de mim. Real ou não real?

- Real, Peeta. – lhe digo. – Só tenho você além daquele bêbado do Haymitch. É claro que preciso de você.

Penso no que pensei no Massacre Quaternário: que se Peeta morresse, as pessoas chorariam e ficariam de luto, mas ninguém sentiria sua perda para sempre. Ninguém além de mim. E sei que, ao dizer isto, nunca falei algo tão verdadeiro em toda minha vida. Preciso de Peeta. Sempre precisei de Peeta e, provavelmente, sempre precisarei.

****

Quero dizer que as semanas seguintes passam lentamente, mas estaria mentindo. As próximas três semanas passam mais rápidas do que qualquer outra desde o fim da guerra.

A minha rotina antes monótona agora é cheia de coisas diferente graças a Peeta. A única coisa que permanecia igual eram as noites e noites controladas pelos pesadelos em minha cabeça e nosso café da manhã. Ele e Greasy Sae chegam juntos – eu provavelmente já estou acordada devido aos pesadelos – e trazem um café farto. Peeta e eu limpamos a louça enquanto Greasy prepara nossa refeição, depois Peeta e eu nos sentamos em cadeiras paralelas, conversamos e comemos nossas frutas, pães e afins.

Após, Peeta encaminha-se para a reconstrução de sua padaria enquanto trato de continuar escrevendo o livro. Há coisas que podemos apenas fazer sozinhos – apesar de que já o acompanhei até a cidade e de que ele já leu boa parte do que escrevi. Às vezes, também vou a floresta caçar. Pego meu arco e minhas flechas no antigo local de encontro meu e de Gale.

Pensar em Gale agora tem se tornado frequente, mas não da maneira que eu esperava. Penso em Gale agora como um grande amigo – o melhor deles – que constituiu grande parte de minha infância e meu crescimento, mas sei que Gale é passado. Sinto sua falta, mas quero que seja passado. Agora, distante e sem pressão, posso perceber o que sentia por Gale. Ele sempre fora meu porto seguro, mas nunca meu amante. Eu sempre deverei a ele por nossa amizade, por cuidar de mim e principalmente por manter minha família viva, mas nunca poderei devolver o amor que ele sentia por mim da mesma forma. Sei disso agora.

Ao invés de lamentar-me por Gale, passo mais tempo com Peeta. A dor não passa, mas pelo menos quando estamos juntos esqueço da morte de Prim, do distanciamento de minha mãe e Gale, da morte de Finnick. Quando ele está longe, sinto todas as dores novamente, mas sei que Peeta tem me tornado uma pessoa melhor.

Agora, ele não pinta somente seus flashbacks. Sugeri a ele que pintasse as coisas que o deixam feliz. É mais comum vê-lo fazer bolos – eu apenas observo e acho fascinante – mas de vez em quando ele pinta algo feliz em alguma tela. Num dia chuvoso e claro, até tentamos descobrir as cores do arco-íris, mas fora em vão. Prometi a ele que ainda o pintaríamos. Vejo pinturas do pôr-do-sol, esquilos, crianças na Campina... Há apenas uma – incompleta – pintura que nunca vi. A mesma que ele escondera no dia em que fui olhar suas telas, mas deixo passar.

Sempre no final da tarde, vamos visitar Haymitch. Eu alimento os gansos enquanto Peeta limpa Haymitch e o faz comer. Acho que eles conversam também quando estou do lado de fora, mas não tenho certeza já que decido não espiar. Apesar de ainda ser um maldito bêbado, Haymitch tem melhorado. Vejo que ele toma banho e agora dorme em sua própria cama – durante o dia, mas pelo menos é um começo. Continua sendo irônico comigo e um doce com Peeta, mas pelo menos é agradecido a nós e eu aprecio isso. Tem tornado nossa convivência muito mais fácil, para falar a verdade. Peeta tem que me lembrar constantemente de que sem ele não estaríamos aqui e sei que é verdade. Agora, sem nós, ele também não estaria aqui. Gosto disso porque odeio dever algo a alguém.

De vez em quando, também levo Peeta no lago e tento ensiná-lo a nadar. Sua perna mecânica o atrapalha um pouco, mas vejo que ele não se importa. Não há uma vez que estejamos no lago que ele não esteja sorrindo. Não sei se é o contato com a natureza, comer frutas frescas ou ouvir os tordos cantando. Na verdade, tenho a leve impressão de que o que deixa-o feliz é o fato de que trago ele aqui. Ele sabe o que significa.

Apesar disso, ainda não entendo muito bem o que há entre nós. Quase nos beijamos duas vezes até então.

Uma vez, estávamos no lago e o frio se instalou rapidamente. Corremos para a casinha pequena que lá existe e Peeta logo tratou de acender uma fogueira. Estávamos ensopados, pois mergulhamos de roupa e a única coisa que havia ali era um velho cobertor – provavelmente deixado por Bonnie e Twill do distrito 8. Nós nos sentamos o mais perto do fogo possível, Peeta me puxou para seus braços e nos enrolou na coberta numa tentativa de nos esquentar. E ali, conversando sobre coisas banais, foi que quase nos beijamos da primeira vez.

Em outro momento, estávamos arrumando a bagunça de meu quarto quando Peeta abriu a última gaveta do criado mudo e achou a pérola que havia me dado no Massacre Quaternário. Ele me questionou por que eu havia a guardado e que utilidade teria aquilo para mim. Respondi com sinceridade que quando ele estava na Capital esta era a única lembrança que eu tinha dele, então a guardei. Não havia mais sentido em esconder as coisas e meus sentimentos de Peeta, então lhe contei toda a verdade sobre o que a pérola significa para mim. Então, quase nos beijamos novamente.

No dia seguinte, como de costume, fingíamos que nada havia acontecido. Era difícil entender por que não havíamos nos beijado. É difícil entender o que há entre nós.

As únicas partes do dia que permanecem iguais são as noites. A única parte do dia em que nos mantemos separados. Todas as noites deito em minha cama sem Peeta e desejando que o mesmo esteja ali. Todas as noite vejo Snow em meus pesadelos, vejo Rue e Prim serem mortas, perco Peeta. Alguns são piores que outros, mas todos horrendos. Todas as noites acordo gritando e olho para porta esperando que Peeta entre e me acalme com seus braços, com seus lábios, mas é vão. Ao invés disso, eu me sento na poltrona e observo a casa de Peeta até que ele saia para distribuir pães pelo 12 e finalmente volte para mim.

Essa manhã, porém, o sol nasceu e não vi Peeta sair de casa. Sabia que ele estava lá – em algum momento durante a madrugada as luzes se acenderam e não desligaram mais. Penso que devo estar perdida no tempo, sem noção de horário, mas sei que não quando ouço o barulho de alguém na cozinha.

Quando desço dou de cara com Greasy Sae lavando a louça e, como eu já sabia, Peeta não está lá. Ela me deseja um bom dia, pergunta como passei a noite, mas não comenta a ausência de Peeta. Eu também não, já que mal abro a boca para sequer respondê-la. Ela prepara meu café e vai embora, como todos os dias, dizendo que volta logo. Tomo um gole do leite e mordisco alguns morangos, mas fico por isso.

A manhã se passa arrastada enquanto eu permaneço na cozinha esperando Peeta para que comêssemos juntos. O resto do café permanece intocado. O prato, os talheres, a xícara em minha frente permanecem limpos. A cadeira permanece no lugar. Quando o sol está a pino e não há ninguém em casa além de mim, levanto e pego meu livro, mas não sinto vontade de escrevê-lo. Tínhamos combinado de fazer um bolo hoje e decorarmos como quiséssemos, mas Peeta não aparece.

Na hora do almoço, Greasy Sae chega, mas não a vejo. Diferentemente dos outros dias, ela não me procura e nem chama por mim – ela somente deixa a comida pronta e espera que eu a coma. Estou deitada no sofá esperando que as horas passem até que eu de fato tenha algo para fazer. Só sei que ela esteve lá porque sinto o cheiro de cozido de carneiro quando vou ao banheiro. O cheiro faz meu estômago roncar, então me rendo e como um prato.

No final da tarde, saio de casa para a de Haymitch – ainda tenho minhas esperanças de encontrar Peeta por lá. Quando chego logo alimento os gansos como normalmente. Não entro porque temo que Peeta esteja lá conversando com Haymitch sobre algo que eu não deveria saber. Quando termino, decido entrar, mas tudo o que encontro é uma cozinha vazia e suja. Subo as escadas e vou para o quarto de meu mentor, que está jogado na cama com uma garrafa de bebida vazia a seu lado.

- Acorda, Haymitch. – eu o sacudo. Ele abre os olhos, mas os fecha de novo e se vira para o outro lado. Eu o sacudo novamente. – Acorda!

- Bom dia para você também, docinho. – ele fala com um sorriso irônico no rosto. Eu bufo.

- O dia já acabou, Haymitch. Levanta daí. – eu o empurro da cama. Ele solta um gemido, mas parece acordado dessa vez pelo menos. Ele levanta do chão massageando as costelas e olha carrancudo para mim.

- Posso saber o que você faz aqui? – ele pega a garrafa e tenta tomar um gole, mas está vazia de fato.

- Te acordar, te alimentar e te limpar.

- Essa tarefa é do garoto. – ele diz.

Eu não falo nada, apenas espero que ele entre no banheiro e tome banho sozinho. Ele entra, fecha a porta e eu fico esperando do lado de fora até que ele volte. Haymitch sai do banheiro não mais cheirando a álcool e nós descemos até a cozinha. Ele se senta e eu coloco em sua frente um prato do que sobrara do cozido de carneiro de Greasy Sae. Ele come de boa vontade, mas lentamente – o que tira um pouco da minha paciência. Eu permaneço do seu lado até que acabe de comer. Durante todo o tempo, Haymitch não menciona Peeta e nem eu. Ele apenas aceita de bom grado o que lhe dou e fica calado. No fim, lhe dou uma pequena garrafa de aguardente branca e vou embora.

Caminho lenta pela Aldeia desejando que o dia seguinte seja melhor. Estou quase em minha casa quando ouço gritos de agonia do outro lado do gramado e percebo que eles vêm da casa de Peeta. Não penso duas vezes antes de sair correndo para salvá-lo do que quer que fosse. Meu primeiro pensamento é que ele esteja sendo torturado por Snow, mas repito várias vezes a mim mesma que ele está morto. Decido que não importa o que seja – Peeta precisa de mim.

Entro na casa sem bater ou avisar. Estou ofegante e um pouco tonta e não faço ideia de onde Peeta esteja. Todas as luzes da casa estão acesas, então ele pode estar em qualquer lugar. Grito seu nome uma vez, mas minha voz é abafada pelos gritos que se seguem. Eles vêm do fundo, no segundo andar. Subo as escadas correndo e vou direito ao final do corredor.

Quando abro a porta, Peeta está lá segurando as costas de uma cadeira fortemente – quase quebrando-a – e olhando fixamente para mim. Suas pupilas crescem tanto que chegam a esconder a maior parte de sua íris azul. Ele parece estar em dor. Sei que está tendo algum flashback.

- Katniss! Vá embora daqui! – ele grita e sinto um arrepio descer minhas espinha, mas não ouso ir embora. Ao contrário, eu me aproximo dele. Minhas mãos estão elevadas, como se mostrasse que não tenho nenhuma arma em mãos. – Tranque a porta e suma!

- Não, Peeta! – eu falo tentando me aproximar e segurar suas mãos, mas ele é mais rápido que eu e joga a cadeira tão forte na parede que ela se quebra. – Peeta, pare! Eu estou aqui! Está tudo bem!

- Vá embora, Katniss! Suma daqui! Vá!

Finalmente, consigo chegar perto o bastante para pegar suas mãos e apertá-las com força – enfatizando ainda mais de que estava aqui com ele. Sei que sou maluca quando faço isso – dessa vez, não há Boggs ou Mitchell que me salvem –, mas mesmo assim eu o puxo para mim e o abraço pelo pescoço. Seu corpo paralisa e ele não me abraça de volta, mas sinto que a tensão vai deixando seus músculos aos poucos.

- Eu estou aqui com você. – repito. – Eu estou aqui. Está tudo bem. Eu estou aqui, Peeta.

Então, seus braços me rodeiam e a única coisa que ele diz é:

- Você devia ter ido embora. – mas mesmo assim, ele me abraça mais apertado e respira fundo em meus cabelos.

- Está tudo bem agora. – eu sussurro acariciando seus cabelos loiros.

- Eu poderia ter machucado você.

- Mas não machucou. – eu me afasto o suficiente só para olhar em seus olhos. – Eu confio em você. Você não me machucaria.

- Eu te machuquei uma vez. – ele passa as mãos levemente no meu pescoço e volta a me abraçar.

- Não. Aquele era o velho Peeta. Você é um novo Peeta agora. Você não me machucaria. – repito de um modo que dá a discussão como encerrada.

Sei que Peeta não concorda, mas ele decide não discutir mais, então passamos mais algum tempo abraçados. Quando sinto que ele está calmo o bastante eu o puxo pelo braço e o levo até o sofá da sala. Peço a ele que se sente e vou à cozinha buscar-lhe um copo de água. Dou-lhe o copo e não somente sento ao seu lado como também me enrosco em seu peito. Ele toma a água de uma única vez como se estivesse há muito tempo desidratado, então me beija os cabelos e passa os braços ao redor de mim.

- Você quer pintar o que acabou de ver? – pergunto enquanto faço desenhos abstratos com a ponta do dedo em sua camisa branca e suja.

- Esse quadro já está pronto. – ele solta.

- É o quadro que você esconde de mim lá no quintal? – pergunto como quem não quer nada, mas na verdade estou extremamente curiosa.

- Não. – ele ri, mas não diz mais nada.

Imagino o que ele quer dizer com “esse quadro já está pronto”. Fico curiosa, afinal, ele nunca realmente me contou como funcionam os flashbacks dele. Desde que nos reaproximamos, ele não havia tido mais ataques – que eu soubesse – então nunca realmente paramos para conversar sobre isso.

- Peeta? – ele me olha. – Como realmente funcionam essas... coisas, imagens... essas cenas que você vê?

Ele parece apreensivo, mas mesmo assim responde:

- De vez em quando, elas aparecem na minha cabeça e então eu não tenho mais controle do meu corpo.

- E por que você sempre quer que eu me afaste?

- Katniss...

- Não me fale que é complicado. – digo bruscamente já prevendo que receberia essa resposta. Ele ri. Tenho certeza de que “li sua mente” novamente.

- Quando elas aparecem, sinto raiva de você. Sinto vontade de te matar. – ele me olha cautelosamente como se esperasse que eu surtasse, mas continuo ouvindo atentamente. – É por isso que doem tanto... Eu sempre tento combatê-las. Não quero que elas dominem quem sou e, principalmente, não quero machucar você.

Como se redissesse isso, ele me aperta com mais força.

- Você tem essa vontade mesmo naquelas cenas mais... mesmo com as cenas como a da praia e tudo isso?

- Em todas elas, Katniss. – ele fala como se estivesse se desculpando comigo.

Imagino se um dia esses flashbacks passarão e Peeta realmente estará livre de todos os danos que a Capital havia nos infligido desde que fomos escolhidos na Colheita.

- Por quê? O que aquelas cenas têm que te fazem ter raiva? – insisto.

- É como se fosse... uma história em minha cabeça. Eles te transformaram numa espécie de viúva-negra. Aquela que acasala e depois mata o parceiro, sabe? – ele ri. – Eles deixaram alguns bons momentos que tivemos juntos e também me fizeram pensar que você queria me matar. Foi mais ou menos uma linda cena de amor seguida por uma tentativa de assassinato.

- Como assim?

Então, Peeta cala-se e vaga seu olhar por toda a sala. Fico impaciente que ele me conte tudo isso e não explique toda sua analogia no final.

- Você quer me contar sobre o que viu agora? – insisto mais uma vez. Talvez com um assunto diferente ele se abra mais fácil.

- Não. Não faria sentido. – ele balança a cabeça. Sinto-me com raiva. Nada do que passamos faz sentido algum e ainda assim contamos as coisas um para o outro, certo?

- Você sabe se ela é real ou não?

- Não faço ideia.

- Mais um motivo para que me conte. Eu saberia se ela é real?

- Com certeza. – e ele para por ai. O que não param são os seus movimentos para livrar-se de meu corpo junto ao seu desde que o questionei sobre essa lembrança em particular. Quando ele faz um esforço maior e percebo que não vai desistir, eu mesma saio e sento no outro canto do sofá. Mas, aparentemente, essa distância não é suficiente para Peeta, então ele se levanta e caminha até o outro lado da sala. – Katniss, eu... eu não posso perguntar isso a você.

- Já te disse que você pode me perguntar qualquer coisa, Peeta.

- Eu vou te deixar com raiva. – quando abro a boca para protestar, ele acrescenta: - Muita raiva.

- Eu aguento.

Peeta respira fundo e começa a andar de um lado para o outro na sala. Ele embola suas mãos de um jeito nervoso – até mesmo doentio – e diversas vezes tenta começar a falar, mas nada sai. Espero pelo o que parece a eternidade até que ele comece:

- As lembranças que eu tenho dos primeiros Jogos condizem exatamente com a realidade. Você me salvou para se salvar. Achei que seu sentimento por mim fosse real, apesar de você ter tentado me matar depois que falei a Ceasar que era apaixonado por você. E então, as coisas começam a se embaralhar em minha cabeça... – ele a sacode e acho até um pouco engraçado, como se ele estivesse tentando exatamente desembaralhar. – Quando voltamos ao 12, você correu pela estação e beijou Gale. Foi assim que descobri que você estava atuando. – me sinto ligeiramente surpresa com isso, afinal eu não o salvei para me salvar; não tentei matá-lo e certamente não beijei Gale, mas deixo que ele continue. – E depois disso... Você me beijava para as câmeras e tentava me matar atrás delas. Repetidamente. Você me torturou ao matar minha família. Era apenas outro sádico jogo para você. E para mim, um jogo ainda pior do que os que aconteciam na arena.

“Mas sei que isso não é verdade, Katniss. Sei que você não tentou me matar e sei que você não matou a minha família. Mas também sei que você atuou. E esse flashback... ele é o único que passa dezena de vezes na minha cabeça, quase como se fosse programado. Desde que cheguei ao distrito 13, durante toda a guerra, e agora aqui também. Então, eu tenho que te perguntar, Katniss... Preciso saber se isso realmente aconteceu. Você beijou Gale na minha frente, na estação do 12. Essa foi sua forma de me mostrar que tudo o que havia entre nós era atuação. Real ou não real?”

Então, quando Peeta acaba de falar, eu sinto nojo.

Sinto nojo da Capital por criar toda uma trama para torturar um doce menino como Peeta. Sinto nojo da imagem que eles me fizeram ter na cabeça de uma das pessoas que mais me amava. Sinto nojo por usarem aquilo que era, provavelmente, o ponto mais fraco que Peeta tinha. Sinto nojo de quem concordou com isso, sinto nojo de quem o fez e sinto nojo de quem observou sem protestar. E assim, percebo que Snow não tinha a intenção de quebrar só a mim, mas a ambos. Ambos, Peeta e eu, quebrados.

E depois, quando vejo os olhos de Peeta marejarem, sinto culpa.

Sinto culpa por ter fingido meu amor por ele. Sinto culpa por ignorá-lo quando voltamos ao nosso distrito. Sinto culpa por ter me afastado dele no último dia na arena. Sinto culpa por ter o deixado lá. Sinto culpa por não ter salvado ele assim que soube que estava vivo. Sinto culpa por saber que ele estava sendo torturado e não fazer nada a respeito. Sinto culpa por ter criado uma história como essa, uma história que usariam para quebrá-lo, quando no final eu não tinha sentimento nenhum por Gale. E sinto mais culpa ainda por não ter falado a ele que eu o amava quando eu sabia que sim.

Então, ao invés de dizer a ele tudo isso, eu me levanto do sofá, pego seu rosto em minhas mãos e o beijo como queria ter feito durantes todas as três semanas. Eu o beijo como se esse fosse nosso último ou nosso primeiro beijo. Como se eu nunca mais fosse ter seus lábios ou como a excitação de finalmente senti-los. Peeta parece um pouco surpreso no início, mas me beija de volta com a mesma devoção que eu o faço. Ele me aperta fortemente contra seu corpo, como se não quisesse que eu saísse dali jamais – e eu não queria sair.

Aquela ânsia de querer beijá-lo para sempre, de que poderíamos dar quantos beijos fossem e eu nunca estaria satisfeita, volta a tona arrebatadora. Dessa vez, eu a acolho. Não tento reprimi-la, não a sinto como algo errado, como da vez na caverna ou da vez na praia. E, definitivamente, não me afasto. Estou com fome – fome por seus lábios, por seu corpo, por Peeta. Não me envergonho disso, eu apenas o beijo até ficar sem ar.

Eu me afasto o bastante apenas para segurar seu rosto com firmeza, olhar para seus olhos e falar:

- Não é real. Eu beijei Gale, sim. – Peeta para de me olhar. – Presta atenção em mim, Peeta! Eu beijei, sei que sim, mas nunca faria isso na sua frente. Nunca faria isso para te magoar ou para te atingir de qualquer forma. Nunca nem mesmo falaria disso com você. Eu não fiz isso. Não é real. Está me ouvindo? Não é real!

- Katniss... – Peeta tenta falar, mas eu o interrompo.

- Então, da próxima vez que essa imagem aparecer na sua cabeça, você vai saber que não é real. Eu. Aqui. Com você. Isso é real. – eu o beijo novamente. – Isso aqui é real e isso aqui é o presente. Você me escutou?

Peeta olha para mim novamente e abre um grande sorriso. Ele está feliz.

- Sim, Katniss. Alto e claro. – ele diz e eu o abraço fortemente, sabendo que agora estaríamos sempre nos braços um do outro.

****

Acordo de manhã me sentindo leve. O sol acaba de nascer e a brisa que entra pela janela aberta acaricia meu corpo suavemente. Tateio o outro lado da cama, procurando por um corpo quente, mas apenas encontro os lençóis remexidos e gelados. Sento lentamente tentando lembrar como cheguei aqui, na cama de Peeta. Lembro-me de que após minha “declaração”, eu e Peeta sentamos juntos no sofá, tomamos chocolate quente e, para compensar o tempo perdido, nós nos beijamos e ficamos juntos pelo resto da noite.

Saio da cama e vou primeiro ao banheiro. Lavo meu rosto e então me observo. Meus cabelos ainda estão trançados, porém eu desfaço as tranças e as refaço mais uma vez. Meu rosto está sereno, pigmentado com um rosa doce como pêssego e meus olhos estão ligeiramente mais brilhantes – nem um pouco mortos ou cansados. Sei que isso se deve à noite bem dormida que eu não tinha havia muito tempo.

Decido, então, descer e procurar por Peeta. Não é surpresa nenhuma quando eu o acho na cozinha, tirando o que parece ser uma das fornadas de pão do forno. Tento não fazer nenhum baralho ao entrar – porque gosto de observar Peeta fazer as coisas que ama –, mas é em vão.

- Bom dia, Katniss. – ele sorri abertamente.

- Bom dia. – eu sento na cadeira de frente para a bancada onde ele empacota os pães. Eles parecem deliciosos.

- Dormiu bem?

Eu assinto e ele não faz ideia de como aquilo era verdade. Não posso dizer que não houvera pesadelos, porque eu estaria mentindo, mas pelo menos tive ele ao meu lado, com seus braços me protegendo, então eu sabia que, no fim, estávamos seguros.

- É, eu também. – ele percebe que encaro os pães. – Quer um? Pode pegar... Tem o suficiente para todo mundo.

Eu o olho em dúvida – afinal aqueles são para as pessoas ao longo do 12 – mas Peeta me estende um e não posso recusar. Vou partindo o pão com mão e colocando pequenos pedaços na boca enquanto Peeta continua a tirar fornadas e mais fornadas e depois as embala. Penso que ele logo vai sair distribuindo pães pelo distrito, mas não quero me separar dele, mesmo que seja por apenas uma hora.

Apesar de termos dormido na mesma cama após uma longa série de beijos e troca de carinhos, ainda não sei bem como agir com ele, porque sinto que noite passada tenha sido uma exceção – uma espécie de recaída – e como Peeta não se aproxima, não me abraça e nem me beija, eu permaneço onde estou. Isso me faz pensar em como paramos em sua cama, já que não me lembro de muita coisa.

- Por que eu não fui para casa ontem? – pergunto.

- Acho que você estava muito cansada. – ele ri. – Você apagou no sofá uns trinta minutos depois da nossa conversa. Aí a Greasy apareceu, preocupada com você, e eu disse que ia te acordar e te levar para casa, mas ela disse que era melhor deixar você dormir. Sabe como é... Ela disse que você não dorme muito. Então, eu te levei para o quarto... Não queria que você acordasse com dor nas costas. Espero que você não tenha se importado.

- Não. Tudo bem. – eu esboço um sorriso. – Obrigada.

E o silêncio volta a se instalar. É um pouco estranho que, após tudo o que lhe falei e todos os beijos do dia anterior, nós estejamos numa situação assim. Talvez isso que seja um relacionamento de verdade – algo complicado, mas sei que é bom – diferente do que tínhamos antes. Peeta pega duas cestas enormes e coloca lá todas as embalagens com os pães. Quando percebo que ele está pronto para sair, falo:

- Acho que é minha hora de voltar para casa. – eu suspiro e caminho para fora da cozinha, mas Peeta me segura. Ele me vira para si.

- Não... Você não quer ir comigo? Várias pessoas perguntam sobre você... Eu disse que você ia aparecer uma hora ou outra. Acho que você devia ir.

Quero dizer a ele que sou a cara da revolução, o Tordo, a esperança, a motivação e que por isso não posso me mostrar quebrada e infeliz. Mas é quando Peeta sorri que percebo que não estou mais quebrada e infeliz. Fui quebrada e ele conseguiu me reconstruir; fui infeliz e ele trouxe de volta a luz e a felicidade.

- Só tenho que escovar os dentes e trocar de roupa. – digo e o sorriso de Peeta se alarga.

- Claro, eu espero.

Caminhamos um ao lado do outro em silêncio até minha casa. Quando entramos, Peeta diz que vai ficar na sala enquanto eu me arrumo e não falo nada – apenas subo até meu quarto. Lavo meu rosto mais um vez antes de escovar meus dentes e então troco minhas roupas para algo mais confortável já que irei andar pelo distrito. Digo a mim mesma que preciso parecer apresentável e bem. Ganhamos a guerra – isso é o que importa, apesar de eu achar que a vitória não compensa as vidas perdidas. Desço e Peeta está lá me esperando.

- Me deixe carregar uma das cestas, pelo menos. – eu peço.

- Está tudo bem. Eu faço isso todo dia.

- Eu sei. – lhe lanço um sorriso e puxo uma das cestas de sua mão. – Por isso mesmo eu quero fazer.

Ele não protesta, apenas balança a cabeça negativamente.

Saímos da Aldeia dos Vitorioso e caminhamos poucos minutos até chegarmos em um lugar povoado – percebo que é a antiga Costura. Posso ver como o distrito 12 mudou. Há poucas casas já construídas, casas dignas e limpas. São como a minha casa ou a de Peeta, mas menores. Ao longo, mais casas estão sendo levantadas. Não duvido que em pouco tempo teremos aqui uma grande aldeia. Mais a direita, há uma construção quase completa com sua fachada sendo iniciada e posso perceber que é o hospital que Greasy Sae havia falado. Muito maior do que eu imaginava que seria. No mesmo local que se encontrava antes, a escola está sendo reconstruída e, mesmo com pouco progresso, sei que será maior que a antiga.

- Para que tudo isso? Só salvamos dez por cento do nosso povo. – falo indignada e maravilhada ao mesmo tempo.

- O distrito 13 acabará. Dessa vez, vão ser apenas 12, com certeza. – Peeta explica. – E todas aquelas milhares de pessoas...? Estão vindo para cá. Vamos povoar o 12 como nunca antes visto. Aqui, na antiga Costura, todos viverão sem diferenças sociais. Seremos todos iguais. – percebo que ele se inclui e penso de Peeta pensa em vir para cá. – O antigo prédio da justiça será um belo gabinete para políticos. Onde o povo irá votar. Você acredita o quanto evoluímos com isso, Katniss? Poderemos escolher quem nos representa. A ditadura está acabada. Vamos viver como viveram nossos ancestrais anos e anos atrás.

A excitação na voz de Peeta me contagia por um minuto. Acabamos com a ditadura e estamos construindo uma nova Panem. Uma Panem onde as pessoas têm direito de escolher por elas mesmas, onde crianças estudam e brincam, pais trabalham e ganham dinheiro suficiente para alimentá-las. Uma Panem sem fome, sem crianças desnutridas. Uma Panem onde somos iguais. Tanto o distrito 1 quanto o distrito 12 – todos iguais.

Passamos primeiro por uma casinha pequena em construção e reconheço o Sr. Hayes – um velhinho muito simpático da Costura que trabalhava nas minas. Quero perguntar a ele onde está a Sra. Hayes, mas tenho o pressentimento de que não gostarei da resposta. Seus netos, Asher e Magnolia, estão correndo pela casa, mas não vejo seus pais e já imagino qual fora o destino deles. Assim que me veem eles pedem um abraço e eu o concedo. As crianças parecem bem felizes ao me ver e principalmente me ver perto de Peeta. Quando Magnolia percebe que encaro sua trança, ela me fala:

- Gostou do meu cabelo? – eu assinto. – É porque um dia eu vou ser igualzinha a você, Katniss. Mamãe sempre fazia a trança bonita, agora que o vovô que faz... – ela ri.

Sinto tristeza ao ouvir isso – tanto que ela quer ser igual a mim quanto o que ela fala sobre a mãe dela – mas não deixo transparecer.

- Quem sabe um dia eu venha aqui e faça uma linda trança nos seus cabelos. – eu lhe falo, dando nela um beijo de despedida quando Peeta me chama para irmos. Ela parece muito feliz quando digo e sorri dizendo que vai me esperar.

Quando saímos da casa, Peeta olha para mim e pergunta:

- Você está bem?

- Estou... eu... – digo virando o rosto para que ele não veja que a qualquer minuto posso chorar. – Está tudo bem. Vamos continuar.

- É triste, eu sei. – ele diz puxando meu queixo para cima para olhar em meus olhos. – Todos perderam alguém. E todos vamos ficar bem, inclusive eu e você.

Assinto e vou andando até a próxima casa. Passamos por várias casas, algumas já prontas e outras perto de terminar. Algumas pessoas pareciam bem, como a pequena Magnolia e outras pessoas tentavam esconder a tristeza, mas eu reconheceria um rosto de luto em qualquer lugar. Apesar disso, todos estão se recuperando e parecem bastante animados por me verem. As pessoas pedem abraços, beijos e até mesmo bênçãos. Perguntam sobre Gale, Hazelle e as crianças, e eu lhes digo que todos estão reconstruindo suas vidas no distrito 2. Perguntam sobre Haymitch, sobre minha mãe e se era verdade que Annie havia tido um bebê. Perguntam a mim sobre todos os que estão vivos e não mencionam os mortos – e sou extremamente agradecida por isso.

O último lugar que passamos é a sapataria em reconstrução de Delly Cartwright. Peeta me diz que, para passar seu tempo, ela se concentra bastante nas obras – ela sempre está lá antes mesmo do sol nascer e sai horas após ele se pôr.

- Peeta! – ela se anima ao vê-lo e nem percebe que eu venho atrás dele com uma cesta vazia de pães. – Já estava na hora! Estou morrendo de fome!

- Desculpe, Delly. – ele ri e a abraça com vontade. Sinto meu rosto tomar uma expressão estranha. – Ninguém manda você estar aqui desde quatro horas da manhã.

- A vida não para após uma guerra, irmãozinho. – Peeta lhe entrega o último pacote de pães, ela abre e come um pedaço. Ela parece deliciada. – Obrigada. Está delicioso.

- Guardei seu favorito. – Peeta lhe dá um soco no ombro. Ambos riem.

Fico incomodada com isso, então piso mais forte no chão e pigarreio enquanto me aproximo deles. Peeta se vira para trás como se nem lembrasse que estive com ele durante todo o percurso e Delly parece surpreendida em me ver.

- Katniss... Que surpresa! – Delly diz animada e corre para me abraçar. Fico assustada com isso, mas a abraço de volta. – Desde quando a gente não se vê mesmo?

- Desde que você me defendeu de Peeta no jantar no 13. – eu finjo uma risada.

- Me desculpe por aquilo de novo. – Peeta fala baixo e percebo que ele está vermelho de culpa.

- É passado. – Delly fala por mim e fico com raiva dela por isso. Ela passa seu olhar de mim para Peeta e de Peeta para mim diversas vezes antes de continuar. – Já entendi porque os pães de Peeta estão tão bons hoje. – ela sorri maliciosamente para ele. Vejo que ele faz um sinal de “não” com a cabeça, mas Delly não percebe. – Vocês finalmente se resolveram! Eu sabia que ia acontecer uma hora ou outra...

Olho para qualquer lugar, menos para Peeta. A vergonha que a afirmativa dela traz inunda minha face. Não faço ideia do que aconteceu entre nós ontem a noite e nem o que somos um para o outro agora, porque como de costume nunca comentamos disso na manhã seguinte. Não sei se somos amigos ou mais que isso. Não sei se “nos resolvemos”, como ela dissera. Peeta parece estar pensando a mesma coisa que eu, já que não fala nada – nem concorda com Delly e nem discorda dela.

Mas o modo como Delly trata Peeta e o modo como ela fala do nosso relacionamento – ou o que quer que seja isso que temos – como se soubesse mais que eu, me irrita profundamente. O abraço caloroso entre os dois e Peeta ter guardado o pão favorito dela, me incomoda. O sorriso que ele lança para ela e a camaradagem entre os dois, me atinge. Sei que o que estou sentindo é algo parecido com o que Gale sentiu todas as vezes que beijei Peeta e muito parecido com o que Peeta sentia quando eu estava próxima de Gale. Algo que eu jamais senti: ciúmes.

Talvez antes eu não tivesse motivos para ter ciúmes de Peeta, afinal sempre tive muita certeza de que era por mim que ele era apaixonado – até que alguém o fez esquecer que ele me amava. Sei que agora ele pode ter sentimentos por qualquer outra pessoa, já que não se lembra de ser apaixonado por mim desde os cinco anos, e como não faço ideia do que se passa em sua cabeça, temo que ele possa agora amar alguém que não seja eu.

Apesar disso, também penso que os beijos na noite anterior significaram alguma coisa, já que ele não me parou em momento nenhum e me beijou de volta com o mesmo ardor. Esses pensamentos que me fazem passar o braço por sua cintura, deitar em seu peito e falar para Delly:

- Nos resolvemos, sim. – então sorrio.

Percebo que Peeta parece confuso, mas ele passa os braços ao meu redor mesmo assim.

- Eu sabia! Eu sabia! – Delly dá pulinhos em seu lugar. – Bom, pombinhos, eu tenho que voltar para a minha obra. Obrigada pelos pães mais uma vez, Peeta.

E assim, Delly sai de nossa vista e caminha para uma linha de construções mais a frente. Logo que perco a visão dela, eu solto Peeta e saio caminhando novamente para a Aldeia dos Vitoriosos – completamente confusa com o que acabara de acontecer. Sei que Peeta vem atrás de mim, mas mantém sua distância, provavelmente pensando a mesma coisa que eu. No meio do caminho, porém, Peeta segura meu braço e me vira para que eu o encare, mas seu movimento é um tanto brusco demais, então ficamos muito próximos.

Primeiro, penso que ele vai brigar comigo e perguntar o que havia acontecido naquele momento. Depois, penso que ele não falará nada, já que nunca comentamos sobre isso e sempre acho que ele não tem a coragem de dar esse passo. O que me surpreende é o sorriso malicioso que toma sua face quando ele fala:

- Nos resolvemos, é?

Sinto raiva dele por falar assim comigo, porque na verdade não estou acostumada. Às vezes, tenho que me lembrar que ele, apesar de não me odiar mais, não é o Peeta que conheci – extremamente parecido, mas não o mesmo. Mesmo assim, eu bufo, solto meu braço de suas mãos e saio andando ainda mais rápido em direção à minha casa.

- Espera, Katniss! – Peeta grita e ouço seus passos cada vez mais perto de mim, então acelero o passo. – Katniss, desculpa! Vem cá. – ele me toma em seus braços novamente e me obriga a olhar para ele. – Desculpa. Não saiu do jeito que eu queria que saísse.

- E como você queria que saísse? – me sinto obrigada a perguntar.

- Queria que saísse feliz, não estúpido. – ele fala docemente.

Deixo-me delirar por um minuto. Se ele queria que saísse feliz é porque ele estaria feliz que finalmente tivéssemos nos resolvido. Penso no que isso significa – e tenho quase certeza de que é bom. Apesar disso, a cara de boba está só por dentro e não o deixo ver como aquela frase havia mexido comigo. Ao invés disso, sou dura e respondo:

- É, foi estúpido mesmo. – e me solto novamente dele, mas sinto que ele não irá desistir.

- Tudo bem, nós dois concordamos que foi estúpido, mas... – ele fala logo atrás de mim enquanto finjo que não me importo com o que ele diz. – Precisamos mesmo resolver as coisas, Katniss.

- Que coisas, Peeta?! – falo alterada e tento abaixar minha voz, lembrando que ainda estamos em público. – Aparentemente, para você, as coisas nunca acontecem! Elas não existem!

- Katniss...

Peeta olha para baixo, magoado e percebo que talvez eu tenha me exaltado demais, afinal eu também nunca havia falado sobre nada do que acontecia entre nós.

- Tudo bem, Peeta. – concordo. – Vamos conversar, mas não aqui. Vamos para casa.

Vejo ele concordar, então volto a caminhar sozinha, sem sequer checar se ele me segue ou não. Quando entro na Aldeia dos Vitoriosos vou direto a minha casa. Entro pela porta dos fundos e logo vejo o café montado para mim – Greasy Sae já havia passado por aqui, o que me alivia e me deixa inquieta. Alivia-me porque assim poderei conversar com Peeta em paz, somente nós dois. E me deixa inquieta porque não tenho certeza se vou gostar ou não da conversa e se Greasy estivesse aqui, então a adiaríamos.

Quando Peeta entra pela porta, eu já estou sentada na mesa me servindo. Ele não fala nada – nem eu – somente se senta em frente a mim e começa a comer. O silêncio não exatamente me incomoda, mas também não me satisfaz. Há tantas coisas a serem ditas que mal sei como começar.

Então, em vez de falar qualquer coisa eu o observo. Ele, cada vez mais, parece menos afetado pelas torturas sofridas na Capital. Se antes seu rosto já estava saudável, agora ele parecia esplêndido. Seu corpo tomava a forma que eu me lembrava que tinha: extremamente forte devido aos pesos que ele carregava. Já não há mais cicatrizes em seus braços por causa da explosão – ele parece novo em folha. A única coisa no rosto Peeta que permanece – e parece cada vez pior – são as olheiras grandes e arroxeadas embaixo dos olhos.

- Peeta, posso perguntar uma coisa? – digo. Ele assente. – Essas olheiras... Elas são... você sabe... olheiras mesmo?

Peeta ri.

- Sim, Katniss. O que mais seriam?

- Eu não sei, é que... você parece estar se recuperando fisicamente de tudo menos dessas malditas olheiras.

- As olheiras não tem nada a ver com a tortura. – ele dá de ombros e mastiga um pedaço de pão. Espero ele acabar para voltar a falar: - Eu só não durmo mesmo.

Penso que observo as luzes de sua casa sempre apagadas durante a madrugada, então sempre achei que ele estivesse dormindo, mas claro que não digo isso a ele.

- Você não dorme nunca? – eu finjo rir.

- Eu tenho que descansar de vez em quando. – ele também ri, mas de verdade. – Mas na maioria das noites, eu tento não dormir.

- Por que não dorme? – temo estar avançando longe demais e estar o incomodando, mas Peeta parece tão tranquilo quanto sempre enquanto conversa comigo.

- Pesadelos.

De algum modo, sabia que essa era a resposta, afinal a mesma coisa me acorda todas as noites. Só temos diferentes meios de lidar com isso – eu durmo todas as noites e quando os pesadelos me acordam, eu olho para a casa de Peeta até que ele saia e eu saiba que ele está bem; já Peeta tenta ao máximo não dormir para evitar esse tipo de imagens em sua cabeça. Sinto pena dele e me pergunto quantos dias faz que ele não dorme.

- Eu também sempre os tenho. – respondo, apesar de querer fazer inúmeras perguntas.

- Sim... Ontem a noite, seus gritos me acordaram como de costume. – ele ri.

- Me desculpe.

Lanço a ele um sorriso culpado e volto a comer meu pão com queijo e leite. É então que sua frase realmente se acomoda em minha cabeça. Ontem a noite, seus gritos me acordaram como de costume, dissera ele.

- Quer dizer que você dormiu noite passada?

- É, eu dormi. – ele sorriu, mas deixou por isso mesmo.

- Você disse que dormiu bem. – falo, lembrando do momento seguinte ao que acordei.

- Eu dormi bem, sim. – ele ri novamente. – Onde você chegar, Katniss?

- Lugar nenhum...

Apesar de falar isso, sei que Peeta sabe que tenho outros pensamentos na cabeça. Eu também dormi bem – excepcionalmente bem – porque aquela fora a primeira vez que dormi após ter um pesadelo desde que voltei para o distrito 12. Quando acordei pensando ter matado Rue ao invés de Marvel com aquela flechada, ele me segurou em seus braços, beijou meus cabelos, meus pulsos e por fim minha boca por tempo suficiente para que eu parasse de chorar. Dormi bem porque estava em seus braços – o que não me faz parar de pensar que, talvez, o mesmo motivo possa ser aplicado a Peeta.

- Você sabe como é... – ele fala de repente. – Fiquei bem depois que vi que você estava lá.

Sua frase logo me levou há tempos atrás quando a ouvi pela primeira vez. Lembro-me de que perguntei a ele como eu nunca sabia que ele estava tendo pesadelos e ele dissera que não gritava como eu, apenas sofria em silêncio. Falei que ele devia me acordar e ele disse que não era necessário, já que ficava legal logo que me via, porque...

- Meus pesadelos normalmente têm a ver com perder você. – Peeta fala como se completasse meus pensamentos.

Após isso, não sei o que lhe responder. Posso dizer a ele que, agora, a maioria dos meus pesadelos também são sobre perdê-lo, mas sou fraca demais para admitir isso. Posso não lhe dizer nada, mas sinto como se isso fosse machucá-lo – porque se fosse o inverso com certeza machucaria a mim. A única certeza que posso dar a ele nesse momento – a única coisa que poderei dizer sem que minha voz falhe e me entregue – eu lhe digo.

- Eu estou aqui com você agora.

Ele pega minhas mãos sobre a mesa e as aperta, como se certificasse de que eu estava falando a verdade. Nesse momento, eu sei que não há verdade mais pura que essa. Estou aqui com ele, sim. Estarei sempre aqui.

****

Naquela noite e em todas as outras da semana seguinte, Peeta dorme ao meu lado. Meus pesadelos ainda me acordam todas as noites e os braços e a boca de Peeta também me confortam. Mesmo que não faça muito tempo desde essa nossa mudança, posso ver que as olheiras de Peeta estão menos roxas. Ele me diz, com felicidade, que é a primeira vez que dorme todos os dias da semana desde que voltou para casa.

A conversa que teríamos no dia em que falamos sobre seus pesadelos não acontece. Passamos a semana seguinte àquela inteira nos beijando e trocando carinhos como um bobo casal de namorados e em determinado momento percebemos que não precisávamos tê-la. Nós havíamos, de fato, nos resolvido e nossa resolução é ficar juntos aconteça o que acontecer. Não precisávamos de palavras para tornar aquilo oficial, apenas o nosso sentimento um pelo outro que – mesmo que eu não tivesse dito a ele ainda, nem ele a mim – sabíamos que sentíamos.

Todos os dias da semana eu caminho com Peeta pela cidade de manhã, vendo as pessoas diariamente e percebo que, novamente, a esperança está estampada em seus rostos. A esperança de que dessa vez as coisas serão melhores. Pais tendo esperanças que seus filhos cresçam e se tornem pessoas com sucesso, o que eles não puderam ser; e crianças tendo as esperanças de, de fato, chegarem a idade adulta, afinal já não havia mais os Jogos Vorazes. Nunca mais vinte e quatro crianças seriam escolhidas para matarem umas as outras.

Certo dia, até acompanho Peeta para a reconstrução de sua padaria, já que ele está animado. Fico sentada num banco de frente para as construções de novas lojas, sozinha, enquanto observo Peeta conversar com os construtores e resolver tudo para que finalmente possamos voltar para casa. Não percebo quando a pequena senta ao meu lado, mas de repente Magnolia está ali.

- Você nunca foi fazer uma trança em mim, você sabe. – ela choraminga. Seus olhos inocentes me lembram de Prim e Rue, as pessoas mais puras que eu já havia conhecido.

- Me desculpe. – peço a ela sinceramente.

- Eu posso pensar no seu caso... – ela sorri sapeca e me empurra com o ombro. – se você trançar meus cabelos agora.

- Com prazer. – eu respondo.

Magnolia logo se vira no banco de modo que eu possa mexer em suas madeixas. Antes de trançá-las, eu as desembaraço com meus dedos suavemente, acariciando a menina. Lentamente, como se eu estivesse me deliciando com o momento, separo seu cabelo escuro em três partes e começo a trançá-los. Imagino que eu esteja trançando os lindos cabelos loiros de Prim como eu fazia. A morte de minha irmã ainda dói em mim – sempre doerá – mas já passei do estágio de negação. Ela está num lugar melhor e mais bonito agora e é egoísmo meu desejar que ela esteja num mundo como esse aqui.

- Katniss? – ela me chama durante o processo. Murmuro para ela saber que estou ouvindo. – Todo mundo estava dizendo que você e Peeta tinham se separado depois do Massacre porque ele era um traidor. Isso não é verdade, não é?

A pergunta da menina me pega de surpresa, mas mesmo assim a respondo.

- Se eu te contar um segredo, você promete não contar a ninguém? – a menina balança a cabeça freneticamente. – Mas para ninguém mesmo, ouviu? Nem para Asher.

- Eu prometo! Eu prometo!

Rio da animação da garota e começo a lhe explicar parte da verdadeira história.

- Eu e o Peeta nos afastamos, sim, Mag. O presidente Snow usou alguma coisa nele e quando nos reencontramos, ele tinha esquecido que me amava. – ela arqueja. – Mas não posso ficar longe dele. Essa é a verdade.

A menina parece pensar um pouco até responder:

- O presidente Snow podia até tirar você da cabeça de Peeta, mas nunca do coração. Amor verdadeiro não se esquece, a mamãe me dizia isso o tempo todo.

A verdade simples e pura na frase inocente daquela garotinha me atinge e sei que ela está falando a verdade.

- Sua mãe estava certa. – eu lhe digo.

- Mas vocês estão juntos agora, não estão? – ela choraminga e tenta se virar para mim, mas seguro sua cabeça no lugar enquanto acabo de fazer a trança.

Penso na pergunta dela. É uma pergunta que roda constantemente em minha cabeça, mas sinto que já sei a resposta para ela – sinto que sempre soube.

- É claro que sim. – sussurro.

Como se para reafirmar isso ainda mais, Peeta chega perto de nós e planta um beijo em meus lábios enquanto eu termino de tranças os cabelos de Magnolia. Jogo sua trança lateralmente e a menina se vira para mim, sorrindo e me abraçando. Ela diz um doce “obrigada” e sai pulando pela rua para o caminho de casa.

- Já acabamos por aqui por hoje. – Peeta me diz enquanto senta ao meu lado. – Não vou mais te deixar com tédio, eu juro. Amanhã você pode até me levar para caçar para compensar.

Eu até pensaria nisso, se a perna mecânica de Peeta não fizesse tanto barulho e afastasse todos os animais.

- Podemos ir ao lago, em vez disso. – eu sugiro dando de ombros como se tanto fizesse.

- Não! – Peeta ri. – O lago não é justo! Eu me divirto no lago.

- E quem te disse que eu não me diverti aqui?

- A sua cara, Katniss. – ele me dá um soco no ombro e eu revido o empurrando levemente.

- Cala essa boca. – eu reviro os olhos e sorrio para ele. – Eu me diverti, sim. É engraçado ver você tão concentrado assim... E a Magnolia tem uma peculiaridade interessante. Eu gosto dela.

- Bom, fico feliz que você se divertiu. – ele me puxa para seus braços e beija minha testa. – No final, podíamos ir ao lago de qualquer maneira. Mas agora temos que ir embora.

Olho para o céu e percebo que o dia já havia escurecido e logo teríamos de estar na casa de Haymitch. Eu assinto e ambos caminhamos para nossa Aldeia – Peeta com os braços apoiados em meus ombros e eu com um braço ao redor de sua cintura. Quando chegamos na casa de nosso antigo mentor, eu alimento os gansos como sempre e entro. Haymitch está lá, o mais vivo que já vi ele ser – ele tem bebido muito menos ultimamente –, jantando com Peeta e logo me junto aos dois. No início, conversamos coisas banais, mas de repente Haymitch fala:

- É engraçado como, desde que o garoto falou que era apaixonado por você, eu sabia que vocês iam acabar juntos.

- Aparentemente, todo mundo sabia antes da gente. – eu falo e rio.

- De você, Katniss. – Peeta me diz e segura minha mão. – Porque eu sempre soube.

Tento não me mostrar derretida com isso, mas sei que provavelmente tenho uma expressão boba no rosto.

Depois que Haymitch brinca sobre eu estar vermelha, nós voltamos aos assuntos que na verdade não importam a ninguém e terminamos nosso jantar. Eu e Peeta ajudamos Haymitch a lavar a louça e logo depois vamos embora. Peeta vai para sua casa e eu para minha, para que possamos tomar banho e nos preparar para dormimos.

Quando entro dou uma acariciada no pêlo alaranjado de Buttercup – que só sai do quarto de Prim para caçar ou tomar água na cozinha – e me encaminho direto para meu banheiro. A água quente faz os músculos rígidos de um dia tenso e cheio relaxarem e eu solto um gemido de alívio. Levo mais tempo que o normal no banho enquanto lavo meu cabelo lentamente e aprecio os jatos fortes em meu rosto. Saio do banheiro já vestida e secando o cabelo com a toalha quando me deparo com uma das melhores visões do mundo para mim.

Peeta já está em minha – que quase pode ser chamada de nossa – cama, deitado de um jeito esparramado, os olhos fechados e um sorriso em seu rosto. Quando Peeta está assim, sereno e despreocupado, é quando ele está mais bonito, em minha opinião. Solto a toalha na poltrona e trato logo de me juntar a ele. Deito a cabeça em seu peito e seus braços logo me cercam num abraço caloroso. Faço desenhos aleatórios em seu peito coberto apenas por uma camisa branca enquanto ele acaricia meus cabelos úmidos. Peeta nos ajeita na cama no modo como costumamos dormir e eu solto um bocejo, o que faz Peeta rir. Após esses sons, ficamos nesse silêncio agradável por algum tempo, até que Peeta me pergunta:

- Katniss, posso te fazer uma pergunta?

- Já te disse que sim. – eu respondo agora olhando para seus olhos.

Peeta parece meio nervoso antes de perguntar, o que me faz ficar ainda mais curiosa por sua pergunta. Tenho certeza de que, no máximo, apenas dois minutos se passaram, mas para mim eles parecem a eternidade. Peeta abre a boca e a fecha diversas vezes, como se estivesse sempre mudando de ideia e ele evita meus olhos.

- Você... você não escolheu Gale por que ele criou a bomba que matou Prim?

É a segunda pergunta que me pega de surpresa neste dia, mas assim como a primeira, eu a respondo com sinceridade:

- Não. Não escolhi Gale porque não o amo. Sei que a morte de Prim não tem nada a ver com ele. – falo a Peeta, mas isso não parece fazer com que os músculos dele relaxem. Então, percebo que esse é o momento certo. O momento para dizer a ele o que eu devia ter dito há muito tempo. O momento para que ele saiba o que verdadeiramente sinto por ele. Sendo assim, cito para ele o que ouvi sair da boca de Gale na noite em que eles conversaram sobre a minha escolha: - Katniss vai escolher aquele sem o qual ela acha impossível conseguir sobreviver.

Pelo rosto de Peeta, acho que ele se lembra do momento em que essa frase fora dita pela primeira vez. Sei que julguei Gale por falar isso quando o ouvi, mas agora eu entendo. Eu escolhi Peeta porque, de fato, não consigo viver sem ele. Estarei viva, respirando, mas não vivendo plenamente. Um claro exemplo disso foi quando achei que ele estivesse morto – eu me movia, me alimentava, mas mal sabia o que se passava ao meu redor ou o que estava comendo. Eu estava viva, o meu coração batia, mas não vivia porque por dentro eu estava morta. É assim que me sinto sem Peeta.

Então, quando ele diz:

- Você me ama. Real ou não real?

Eu digo a ele:

- Real.

E sei que estou falando a verdade. Sei que esse amor é recíproco – eu sempre soube. Snow poderia fazer o que quisesse e mesmo que ele tentasse centenas de vezes mudar suas memórias sobre mim, ele nunca, jamais poderia mudar um sentimento como o de Peeta por mim – era tudo uma questão de tempo.

Gale costumava a falar que eu só sorria de verdade quando estava na floresta. Então, pela primeira vez, longe dela, eu sorri genuinamente. Eu costumava sorrir lá porque aquele era o meu lar – o único que eu conhecia, era onde eu me encontrava. Agora, meu lar é aqui onde estou: nos braços e no coração de Peeta.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Bom, meus amores, é isso aí... Espero muito que vocês tenham gostado, tenho um carinho especial por essa história porque, apesar de já ter muitas prontas, é a primeira que tenho a coragem de postar, então a opinião de vocês vale muito para mim! Peço a vocês, por favor, que deixem críticas tanto positivas quanto negativas, porque elas fazem com que eu cresça cada vez mais! Desculpem-me novamente por qualquer coisa que os incomodou... Agradeço do fundo do meu coração desde já a todos que leram essa história!!!
Beijos, queijos e até a próxima!
ps: Pensei em fazer a mesma história na visão do Peeta, o que acham?