Os fins justificaram escrita por Unique


Capítulo 4
Cicatrizes




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A luz machuca.

Existem tantos sentidos para essa frase quanto permutações entre suas letras, no caso, 3.326.400. Nessa enorme, embora simples, conta podemos considerar desde sabres de luz cortando um Jedi ao meio como podemos considerar os fortes raios que entram pelas janelas, refletem nas paredes brancas do quarto e terminam por invadir a íris do rapaz que, ao sentir tal dor, fecha com força as pálpebras, na esperança de imergir na escuridão.

Imergir na escuridão.

Existem tantos sentidos para essa frase quanto permutações entre suas letras, no caso, 53.353.114.214.400. Nessa enorme, embora simples, conta podemos considerar desde uma senhora lendo um bom livro e tomando café no meio da madrugada quando de supetão a energia acaba e ela se vê, ou melhor, não se vê imersa nas trevas da noite, como podemos considerar um rapaz que acaba de perder o que lhe há de mais precioso, tudo com um toque de crueldade e uma colher de chá de sangue, bom, talvez mais de uma colher.

O mundo é embaçado, desconexo e gira. Dá voltas e mais voltas. É difícil ter foco nesse mundo. O rapaz senta na cama devagar e ao inflar seus pulmões com força recupera o controle.

– Sim, é um hospital. Não, você não morreu.

Uma voz vinha da porta e a vibração das onda sonoras no ouvido de Augusto foram como um soco, melhor, como uma queda. Uma queda brusca na realidade. Ele acaba então se mexendo bruscamente e falando um pouco alto.

– Aquela merda toda foi real? Os caras doidos de branco, as armas e...

Victor bufa ironicamente.

– Tivemos dois sobreviventes no massacre branco. Pode chorar se quiser, eu não me importo em esperar.

Augusto impacientemente pede pra que o outro garoto conte o que aconteceu, mas este o interrompe com mais uma fala carregada de acidez.

– Não vai chorar seus mortos?

Augusto lança um olhar exasperado e agarra a primeira coisa que vê pela frente.

– Olha aqui seu babaca, eu não sei quem você é ou o que quer comigo, mas se você não me contar agora o que aconteceu com meus amigos, eu juro que vou te espancar nem que seja com essa maca!

Victor tenta apaziguar a situação.

– Primeiro, pare de gritar, está chamando a atenção do prédio inteiro. Segundo, largue esse abajur, não é em mim que você tem que bater.

Quando crianças aprendemos de forma inocente muitas coisas que usaremos na vida adulta. A habilidade de se esconder é sempre útil, não importa a idade. Pintar e desenhar aguçam a criatividade que usaremos para o resto da vida. Augusto experimentava nesse momento os frutos de brincar de cabo de guerra. Sua mente estava repartida. De um lado chorar, chorar muito, rios e mais rios, mares e oceanos de lágrimas. De o outro, confrontar o rapaz a sua frente com coragem, determinação e imponência.

Augusto se entregou aos prantos até adormecer.

O outro rapaz, não muito mais velho, ficou o tempo inteiro em silêncio, acompanhando a cena envolto por pensamentos e lembranças. Sua mente voltava para uma época mais simples onde lhe eram permitidas as lágrimas. Mesmo após a cena terminar e Augusto enfim adormecer o rapaz ficou ali, olhando para o nada e tudo ao mesmo tempo.

– Todos os dias crianças são mortas, não apenas quando lhes cravam facas na cabeça ou apertam com força os pescoçinhos. Mas quando impedem de chorar... Impedir de chorar é não deixar ser, sentir. Acho que dizer “não chore” é tão cruel quanto empurrar de uma escada, ao menos quando o crânio quebra, a morte é rápida. Merda, to falando sozinho de novo! Ainda vão me internar por fazer isso.

Andar pelos corredores de um hospital é sempre deprimente, até mesmo para Victor, que de coisas deprimentes era mestre. Médicos passavam apressados, pessoas falavam baixo e o verde-limão das paredes incomodava os olhos. Ele se viu então querendo muito sair dali. E voltou a falar sozinho.

— Mas tenho que terminar essa merda de compromisso moral. Quem foi o idiota que deu aos humanos moralidade? Eu poderia estar fazendo outras coisas agora, mas não, tive que vir pra essa desgraça de hospital pra ajudar esses moleques a entender um pouco da vida.

A porta para o quarto de Ruan estava fechada, mas seus olhos bem abertos. Sentado na cama, refletia sobre o que estava acontecendo. Sentia uma parte de si faltando.

Victor não olhou para o menino desperto e com uma voz carregada de pesar, disse:

— Meus pêsames pelo braço.

— Tiveram que amputar, por causa dos estilhaços de bala no meu ombro.

Victor tentou mudar de assunto.

— Já te contaram sobre o que aconteceu na escola?

— Sim, meus pais vieram. Devem voltar em breve para me levar. Vamos nos mudar dessa cidade e esquecer tudo o que aconteceu.

Augusto, que até alguns momentos atrás estava em total silêncio, decidiu se manifestar.

— Você sabe que é impossível esquecer, Ruan.

Victor, surpreso com a presença do garoto, perguntou:

— Você não estava dormindo?

Augusto deu de ombros ao mesmo tempo que lançava um olhar acusatório para o outro que ainda estava estupefato

— Fingi pra te seguir e entender o que você queria comigo.

Ruan piscou alguma vezes e, como se tivesse acabado de perceber algo realmente importante, questionou friamente.

— Aliás, quem é você?

Victor bufou exasperadamente.

— Vocês fazem perguntas demais.

Augusto disse quase num grunhido.

— Eu posso pegar aquele abajur de novo em um instante. Basta você não responder agora!

Victor falou calmamente, como se tivesse ensaiado.

— Meu nome é Victor, trabalho na policia e vim dar meus pêsames a voc...

Augusto o interrompera.

— Mentira! Fala logo a verdade seu, seu... Fala logo!

Victor bufou mais uma vez e, com um gesto de rendição, soltou tudo.

— Okay, você quem pediu. Vim contar a verdade sobre o que aconteceu na escola de vocês. A organização que atacou se chama Física, eles são uns doidos que usam os cristais corrompidos, ou seja, as pedras para trazer o que eles consideram ordem para o mundo. Por isso o nome "Física", que vem do grego antigo, significando natureza. Eles queriam dar um recado para o mundo e vão começar a dar vários desses até seu grand finale quando tentarão transformar o mundo novamente em seu estado natural, mas antes disso eles acham que tem que mostrar o que está errado, então vão matar e matar até se sentirem satisfeitos. Vocês foram apenas o começo.

Confusão é o estado de uma pessoa que não consegue se concentrar corretamente, ou está realizando erroneamente os atos. Também é o termo utilizado para definir uma relação interpessoal caótica.

Augusto ainda irritado exclamou que não havia entendido nada.

Victor, num movimento clássico, estendeu a mão para os dois meninos.

— Venham comigo e eu não só explico melhor, como mostro.

O monomito (às vezes chamado de "Jornada do Herói") é um conceito de jornada cíclica presente em mitos. A jornada de Augusto e Ruan, por enquanto, se encaixa com perfeição nos padrões, pois eles estavam no mundo normal e foram chamados para a aventura com o evento no colégio. De acordo com o monomito, agora é a hora da recusa. Augusto e Ruan deveriam recusar o chamado de Victor para que possam continuar cada vez mais fortes. O que esquecemos ao supor que seguiriam isso é que Augusto não é um herói.

Augusto disse rapidamente

— Certo, vamos então.

Victor olhou em choque para o garoto perto dele

— O que?

Ruan o imitou. A perplexidade era geral.

Victor ainda desconfiava da aceitação tão rápida.

— Você vem mesmo?

Augusto tentou dar um sorriso torto.

— Claro, não tem nada que me prenda nessa vida.

Ruan contra-argumentou

— Mas Augusto e... E seus pais, seus amigos, tudo!?

Nessa hora Augusto aprendeu como dar um sorriso sarcástico. É irritante, inútil e de certa forma deselegante, mas o rapaz também acabara de descobrir que não se importava mais com isso.

— E você Ruan, vem ou não?

Ruan esfregou os olhos, confuso com a direção que a conversa subitamente tomou.

— Não posso... Eu já... Eu já perdi demais.

Augusto lançou um de seus olhares impacientes pro amigo.

— Muita gente perdeu muito. Mas só eu e você estamos aqui pra retribuir.

— Retribuir o que? - Esse foi Victor, que finalmente conseguiu sair do choque.

Augusto abriu ainda mais seu sorriso e continuou olhando pra Ruan.

— Retribuir a esses físicos de merda o favor de nos abrirem os olhos. No seu caso, o favor de abrir os olhos e o ombro.

O humor negro é um subgênero do humor que utiliza situações consideradas por muitos como de mau gosto ou politicamente incorretas. Preconceituoso, usualmente de natureza mórbida, para fazer rir ou divertir o público menos susceptível. Entre os temas retratados pelo humor negro estão a morte e o suicídio. Hoje nasce um novo mestre nesse estilo humorístico.

Ruan não tinha se dado por convencido.

— Victor, ou sei lá qual é seu nome, só mais uma pergunta... Por que entre tantos, só nós dois sobrevivemos?

— Você acredita em algum deus, sorte ou destino?

— Não.

— Então sua pergunta não faz sentido.

Eles saíram do hospital sem serem incomodados e seguiram pela rua de a pé. Se não existe deus, sorte ou destino, o que lhes aguardava no fim daquela rua era nada mais nada menos do que... O fim daquela rua.


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