Vingança em Casablanca escrita por JC Bobsin


Capítulo 1
Capítulo Único




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WILHELM

O sangue vibrava em suas veias todas as vezes em que ouvia as composições de Richard Wagner. Naquela noite, costumeiramente, Wilhelm isolou-se no único cômodo da casa onde havia um fonógrafo - não queria saber dos gramofones ou dos modernos discos de vinil, seu homônimo compusera para os cilindros. Estava acompanhado – Wilhelm considerava que muito bem – pelas cabeças empalhadas que mais lhe custaram tempo e dinheiro nas temporadas de caça, muito antes daquela cadeira de rodas. Os tapetes italianos e as cortinas de cores quentes completavam o cenário de sempre daquela sala de paredes verdes que ao velho aconchegavam.

Sua mente passou a girar no compasso dos cilindros. Sempre ficava ansioso para sentir o que as belas texturas e ricas harmonias lhe proporcionariam nas terras do inconsciente. Da penumbra a sua frente, surge sua querida mãe. O longo abraço e as carícias maternas não foram suficientes para matar a saudade de tantos anos. A ponto de contar a ela tudo que havia conquistado após sua partida, Wilhelm percebeu que não estava mais em sua casa.

Brünhilde carrega em seu cavalo Grane uma mulher.

O velho estava agora em uma praia. Reconhecia aos poucos a Siculiana Marina, onde vivia Saraghina. De volta à Sicília e aos sete anos de vida, esperava ao lado de três amigos a prostituta sair do casebre encravado nas areias e lhes mostrar o corpo robusto e sujo.

Os clarinetes.

Com o saco de moedas nas mãos, o pequeno Wilhelm percebia naquela mulher que surgia à sua frente o olhar mais lindo e mais triste que ele já pudera notar em uma pessoa nos seus poucos anos de vida.

Em seguida, os timbales.

O medo e a curiosidade dos garotos lhes excitava. Saraghina, enquanto movia o corpo em uma dança bela e vulgar, fixava os olhos em Wilhelm.

Por fim, e sempre, os excitantes violinos.

Nada mais existia em volta dos dois. Apenas o olhar da puta encontrando o olhar da criança. Melancolia e o vazio disfarçavam-se de leves sorrisos. E então houve o silêncio. Tudo sumiu.

Havia acabado o segundo ato.

Wilhelm sentia-se satisfeito por ainda lembrar com detalhes daquela tarde em que sentiu-se homem. Ele só percebeu a presença de Shosanna na sala quando ela tocou em seu rosto, oferecendo-lhe um convite para ir para a cama e um copo de leite. O velho pensou em reclamar pela intromissão, seu ritual chegara ao fim, mas estava cansado demais e apenas bebeu o copo de leite. Não teve tempo de dizer que também aceitara o convite para ir dormir. Sentiu uma forte dor no peito e foi capaz apenas de balbuciar.

Naquele instante, o leitmotiv de sua vida, Cavalgada das Valquírias. As enxergava cavalgando sobre o campo de soldados mortos, do qual agora fazia parte. Restava-lhe, então, apenas esperar que uma delas enfim o carregasse dali.

SHOSANNA

Todos em Dresden falavam sobre aquela moça. Sua origem e suas intenções com o velho Wilhelm eram os pontos mais discutidos. Após o casamento, ele quase não saia mais da velha mansão. Nem ela, o que despertou a curiosidade dos vizinhos e originou infindáveis versões do que acontecia naquela casa.

Shosanna era francesa. Expulsa de casa por ter engravidado de seu cunhado, marido de sua irmã mais velha, foi parar com seu pequeno Frederich naquela cidade da distante Saxônia. Conheceu esse italiano milionário, paraplégico e solitário, ao qual ninguém dava muito tempo de sobrevida. Shosanna viu naquele homem uma bela oportunidade de reconstruir a sua vida e dar um futuro digno ao seu filho. O homem a aceitou. Aceitou ao bastardo também. Fez de uma mulher renegada e abandonada um ser humano socialmente digno.

O único problema para Shosanna é que Wilhelm já resistira a tantas doenças por tempo demais. Estava cansada de esperar pela sua morte e por comandar sua herança faraônica. Não lhe era mais possível suportar as manias do velho, seus devaneios, seu cheiro – o asco ao cheiro de velho vinha de muito tempo. E as músicas. Ela não conseguiria ouvir por muito as músicas escabrosas as quais o velho venerava – detestava, especialmente, Wagner.

Naquela noite, mataria Wilhelm com um copo de leite com arsênico. Enquanto subia as escadas, ouvia mais uma vez a orquestração da ópera A Valquíria vir da sala do fonógrafo. O velho não se cansava. Shosanna parou em frente à porta antes de entrar. Não queria assassinar Wilhelm, tentou declinar à outra solução menos trágica, mas pensou naquele crime como uma ação de pragmatismo para o bem de Frederich. Não poderia esperar a Alemanha perder a guerra e correr o risco de o velho ter sua fortuna confiscada ou levada a pino. Determinação e confiança tomaram conta da imediata assassina. O que descobrira na semana anterior a respeito de Adelle e Toni era seu álibi. Não havia dúvidas. Quando a música cessou, ao fim do segundo ato, ela abriu a porta.

ADELLE

Apesar de tudo, aquela judia considerava-se uma mulher de sorte. Até 1938, ela lecionava na Faculdade de Ciências Médicas de Varsóvia e era uma médica respeitada na Polônia. Em 1944, trabalhava escondida, em plena Alemanha, na casa de um intelectual senhor italiano, não simpatizante às ideias fascistas e antissemitas em voga pelos regimes de Mussolini e Hitler.

Quando estourou a Blitzkrieg, Adelle imaginou ser o fim para ela e para seu filho, Toni. Escapar das imposições ao povo judaico, até então, havia sido possível, mas não seria com uma Polônia dominada pelos nazistas. Recorreu a esse velho amigo italiano, Wilhelm, que lhe deu proteção dentro de sua própria casa. As regras do jogo eram simples. Adelle seria a cozinheira e o jovem Toni, jardineiro. Com documentos falsos, seria simples fugir dos alemães até que a guerra acabasse. Mas havia a esposa de Wilhelm, Shosanna.

Adelle nunca confiara na esposa do amigo. Temia por ele e pela manutenção de sua situação de refugiada naquela casa. Suas desconfianças deram lugar ao desespero no dia em que sua colega de serviço na mansão lhe contou que a patroa a obrigara a confessar tudo sobre a real situação de Adelle e Toni. Sabia que, agora, o perigo dormia sob o mesmo teto que ela e seu filho. Na semana seguinte, seu velho amigo morre.

Não havia para onde fugir. Agentes da SS, armados até os dentes, de forma truculenta levaram Adelle ao camburão sob os olhares atentos e vigilantes de Shosanna. Agora, a judia tentava acreditar na possibilidade de que seu filho conseguiria fugir dali e salvar a si mesmo.

TONI

Aos dezessete anos de idade, Toni já tinha entrincheirado muitas histórias. A maioria delas, trágica. Órfão de pai, criou com Wilhelm um laço muito forte que fora rompido dias antes com a morte do seu querido mentor intelectual e protetor. Agora, escondido em meio ao feno, assistia sua mãe ser presa, não somente por ser judia, mas também acusada de assassinar por envenenamento o homem que a salvou do Gueto.

Toni não entendia como sua mãe foi revelar sua verdadeira origem a outra empregada. Também não entendia como Shosanna pudera denunciá-los e acabar com a última esperança que mãe e filho tinham de um mínimo de dignidade. Não demorou a julgar e condenar a francesa como autora de fato do crime. Precisava correr. Não havia tempo para encontrar respostas. Sabia que o procurariam. Sabia também o que, muito provavelmente, aconteceria à sua mãe – ouvira falar no que os alemães chamavam de “solução final”.

O rapaz não sentiu tristeza, apenas ódio. Um crescente desejo de vingança, inerente a qualquer animal machucado, crescia dentro do jovem judeu. À margem do Rio Elba invadiu um estaleiro e passou aquela noite ali. No dia seguinte, percebeu um machado no canto do armazém de ferramentas daquela pequena fazenda. O instrumento parecia sorrir para Toni, que sorriu de volta.

CASABLANCA

Chovia torrencialmente. Shosanna pusera um gala preto – estava de luto – e saíra para a inauguração oficial do primeiro cinema de Dresden. O filme era Casablanca, em uma sessão especial para franceses. A viúva de Wilhelm agora era uma das mulheres mais ricas da cidade. Decidira permanecer ali por mais algum tempo. Sentia-se poderosa. Naquela sessão de cinema, tinha lugar de honra e não perderia a chance de ser admirada e consolada pelo resto da população, que considerava medíocre.

As primeiras pessoas a verem Toni andando, transtornado, com um machado na mão, se assustaram e correram em outra direção, chamando a atenção das autoridades policiais. Enquanto ele se aproximava da entrada do cinema, alguns tentaram o impedir. Quase foram acertados pelas machadadas do rapaz descontrolado, que agora era um animal furioso. Dentro do cinema, Humphrey Bogart aparecia pela primeira vez, com seu estilo inimitável e seu cigarro entre os dedos. Toni caminhava rapidamente em direção à porta do cinema. Agora era Ingrid Bergman que inundava a grande tela com sua sutileza e atuação contida. O rapaz agora entrara no cinema e dirigia-se para frente da tela. Ali parou. Atrás dele, tocava As Time Goes By. Ficou pouco tempo ali parado, apenas até achar o assento que lhe interessava: o de Shosanna.

Agora com euforia em seus olhos, Toni e seu machado foram parar na frente da assassina. Cara a cara, os dois sabiam o que iria acontecer em seguida. Ela não queria morrer, mas sabia que aquele homem merecia ter sua vingança. Ele não queria matar uma pessoa, mas sabia que seria o mais próximo que ele poderia chegar da justiça. A justiça dos assassinos, da guerra, da Lei de Talião, a justiça do horror, do inferno.

Shosanna morreu com treze machadadas na cabeça. As pessoas ao redor se incomodaram um pouco apenas com o barulho feito por Toni enquanto deferia os golpes. Havia um assento vazio bem ao lado do corpo da mulher, no qual ele sentou, coberto de sangue. Concentrou-se apenas no filme. Lembrou de como sua mãe gostava desse tipo de arte. Delicada e tocante. Emocionou-se com a história daquelas pessoas e, pela primeira vez naqueles últimos dias, chorou. Sentiu-se aliviado e sorriu ao pensar em que interessante história tornar-se-ia o que acabara de acontecer. Toni não agüentou ficar até o final e não viu Bergman abandonar Bogart no aeroporto. O cheiro do cadáver ao seu lado ficara muito forte.


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