Os Filhos de Umbra escrita por Rarity


Capítulo 30
Capítulo Trinta: Epílogo


Notas iniciais do capítulo

AVISOS: Linguagem imprópria. Sério. Classificação +14, mas cê que manda, chefia.
Ui. Último capítulo. Respira fundo e segura minha mão que nós vamos conseguir passar por isso. Preciso avisar algumas coisas então essa nota deve ser grande.
Preciso agradecer a Mel Oliveira pela lindíssima recomendação. Estou muito grata e tocada e agradeço o tempo que você tirou para escrever essa coisinha tão fofinha pra mim.
Eu até diria que espero que o último capítulo seja do seu agrado, mas eu o escrevi pra deixar vocês com raiva, então....
Outra coisa é que o Emerson deve voltar esse ano em TMJ em Outubro e há rumores de uma saga dos Filhos de Umbra ano que vem ((li isso no facebook, página Do Contra (DC), podem ir lá pra conferir)) e isso quer dizer que grande parte das coisas que leram aqui serão alteradas lá pra frente. Vamos todos dar as mãos e aguentar essa fase difícil especialmente se os Filhos de Umbra se tornarem vilões.
Mas vamos torcer pra tudo dar certo. Feshow.
Outra coisa que vocês deviam saber antes de ler o final da história é que esse é um "What If" da fanfic, a fanfic da fanfic, e ele não é definitivo. Passou pela minha cabeça o final ser os amigos do Pedro o visitando no asilo e contando pra ele suas vidas, mas eu achei isso muito deprê, então tenham isso.
AH RARITY MAS 22K PALAVRAS COMO EU VOU LER ISSO?
VAI LER SIM. SEM RECLAMAR QUE EU CORTEI UM MONTE DE COISA QUE EU QUERIA COLOCAR NÃO VOU CORTAR MAIS.
Aliás, por causa disso tem várias coisas que não são colocadas nessa fic, como a revelação da paternidade e maternidade da Belle e do Pablo (fica subentendido que eles descobriram, tanto que é a Vanessa que arruma as apresentações em SP pros dois e depois cuida dos detalhes para eles irem pra Paris), os vários boys da Belle (biscoito pra quem pegar a referência de Yuri!! On Ice), o namoro da Analícia e do Pedro... São coisas que até foram colocadas no esboço, mas foram tiradas depois. Vai dar pra entender, que é o que importa.



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Capítulo Trinta: Epílogo

Ele ainda se lembrava de cada detalhe daquela noite. De como a Lua brilhava no céu, dos barulhos do rio lá embaixo, dos passos do grupo ao caminhar. Principalmente, se lembrava do grito que cortou a noite e do pânico que todos sentiram, o medo da morte. Se lembrava de tropeçar no chão na pressa, e de se virar para olhar a criatura.

Se lembrava de ver Analícia caminhar para a morte e um instinto sobrenatural tomou conta de si, de saber que a menina não podia morrer.

—ANALÍCIA! –ele gritou, um milagre acontecendo e ela parando por um instante.

O suficiente para que ele pulasse sobre ela, a afastando do penhasco. A afastando da morte. Os dois respiravam profundamente, a adrenalina pulsando nas veias e a certeza de que a menina teria morrido não muito longe de suas mentes. Ele não queria olhar para o crânio, apenas a imagem o assustando, então se tratou de retirá-lo, esperando ver os olhos azuis de Analícia cheios de lágrimas de terror, apenas murmurando “Eu ia morrer, Pedro!” no estado de choque, mas não foi isso que encontrou. Ao tirar o crânio, Analícia estava sem rosto, sem olhos, boca ou nariz, apenas a pele esticada para preencher o vazio.

—Olha o que eles fizeram comigo! –ela gritou.

Pedro gritou junto com ela, um medo se instalando em seu coração ao ver Analícia ser preenchida por um líquido preto que parecia sair de suas veias, uma sombra a cobrindo enquanto ele imaginava seus amigos ou seu irmão no seu lugar. Quando a sombra abriu olhos de serpente no ar, ele correu ainda mais rápido, mas não ia conseguir, ele não ia-

—PEDRO! –e sentiu mais do que ouviu o grito de seu nome, uma mão o balançando. –Pedro, é só um pesadelo.

E o homem saltou da cama, uma mão no peito para acalmar seu coração enquanto ele faltava engolir ar. Sua esposa tentou segurá-lo, uma mão calma em seu ombro, pronta para acudi-lo –a situação já estava embaraçosamente se tornando frequente. Pedro dispensou o contato, favorecendo se acordar do sonho. A loira ficava preocupada, de fato, mas Pedro sempre balançava a cabeça quando ela expressava seus pensamentos sobre seus pesadelos.

Ela não sabia como era.

—Melhor? –ela perguntou, se aproximando dele.

—Sim. –ele suspirou. –Só um sonho.

—Ótimo. –Analícia sorriu, o beijando na bochecha antes de se levantar, procurando no guarda-roupa as roupas de ir trabalhar.

—Atrasada? –ele indagou, mas a mulher apenas riu.

—Para variar! –ela brincou, colocando a saia preta e a blusa branca com o logo da padaria.

Pedro coçou os olhos, sabendo que teria que se levantar mais cedo ou mais tarde. Ele se espreguiçou inteiro, colocando uma blusa leve para ir tomar o café –sua mãe ainda mantinha o hábito de levantar mais cedo para coar o café da família, não importa quantas vezes ele falasse que preferia que ela descansasse. A resposta era sempre a mesma, de forma bem humorada: “Estou velha, mas não estou morta!”

Analícia calçou os sapatos na sua frente, terminando de se ajeitar. Pedro foi obrigado a se perguntar se dormiu demais, geralmente ele já tinha tomado café e acordado as crianças quando ela começava a se aprontar.

—Eu dormi tanto assim?

—Sim. –ela riu. –Mas tudo bem, você ficou até tarde ontem.

—Droga. –ele bufou. –E as crianças?

—De pé, ajudando a sua mãe. Aliás, ela disse que ia arar o campo, se eu fosse você eu ia correr para impedi-la.

—Ela ia fazer o quê? –ele repetiu irritado.

Sua mãe teimava em fazer os trabalhos pesados, não importava sua idade. Ele sempre a impedia, a colocando para fazer pequenas tarefas diárias que a cansariam menos, preocupado. Seu pai era assim também, até morrer por fazer esforço demais e ter que ser levado às pressas ao hospital. Ele passou a tratar a Dona Jasmine como se ela também fosse cair a qualquer momento.

—Estou indo, ok? –Analícia avisou, o dando um pequeno beijo nos lábios. –E estou usando a caminhonete hoje.

Ele riu pelo nariz, se lembrando da paixão dela com a caminhonete azul que tinham.

—E antes que eu esqueça, Pablo ligou. Não quis dizer o motivo, só que precisava ser com você. Diretamente. –ela continuou, um pequeno tremor no lábio superior que indicava que ela detestava o fato de ser a última a ficar sabendo.

—Deve ser coisa boba. –ele balançou as mãos, desinteressado.

—Não se esqueça de deixar as crianças na escola, ok? E eu deixei o Miguel dormir na casa da Laura hoje, pode deixar ele lá depois da escola?

—Claro. –ele confirmou, ela sorrindo aliviada.

—Até mais tarde. –desejou, pegando a bolsa e saindo do quarto. –Amo você!

—Também te amo. -Pedro repetiu entre a culpa em seu peito, por mais que fosse verdade.

Ele amava Analícia. Como não poderia, depois de onze anos casados? Depois de dois filhos? Depois de construírem toda uma vida juntos?

Só não tanto quanto amava uma outra pessoa.

Besteira. Isso era o sonho falando, aquele mesmo pesadelo sempre o mandava de volta à sua infância e adolescência, de volta a pensar em pequenos encontros na beira do Lago e em janelas puladas à meia noite. Eram memórias agridoces, por mais que lhe trouxessem alegria, o lembravam de que tudo aquilo acabou. Às vezes ele nem se lembrava porquê.

Mas não podia se afogar nisso por muito tempo, tinha afazeres na fazenda que se levasse muito tempo sua mãe faria por ele.

Na cozinha estava apenas a sua mãe, a mesa há muito deposta para que sua mãe terminasse de arrumar tudo, lavasse a louça e começasse o almoço, descascando alguns milhos que ela provavelmente cozinharia num molho. O cabelo branco estava num coque chinês com o avental rosa que ganhou da nora alguns anos atrás e que acabou adorando.

—Bom dia. –Pedro cumprimentou.

—Bom dia. –sua mãe lhe respondeu. –Dormiu bem?

—Mais ou menos. –ele tornou sincero, engolindo metade do copo de café de uma vez.

—Analícia saiu com cara de preocupada, mesmo. Mal deixou Berenice terminar de falar. –sua mãe contou. –Brigaram?

—Tive um sonho ruim, só isso. –ele terminou seu café. –Pra senhora tudo a gente brigou.

—É impressão de mãe. –foi a explicação sensata dela. –Seus filhos estão brincando lá fora.

—Eu vou falar com eles daqui a pouco. –ele garantiu. –Quero trocar de roupa e arar o campo antes de levá-los pra escola.

—Então pode levantar, senhor, começar o dia! –ela exclamou, praticamente o expulsando de sua cozinha.

Pedro gargalhou. –Estou indo, estou indo!

Pedro lavou o rosto, colocou uma roupa para trabalhar, ajeitou o cabelo com bastante cuidado, favorecendo o mesmo corte que sempre usou simplesmente por amá-lo. Amava seu cabelo, o mesmo tom de sua mãe. Ignorando a vaidade ele saiu pela porta dos fundos direto pro campo, vendo o verde brotar sob seus pés e o sol brilhar nas plantas. E aí tudo tomou outro rumo quando viu seus filhos entrarem no milharal.

—Ei, ei! –ele gritou. –Fora daí, crianças, eu vou colher esse milho!

Seus filhos se apressaram para sair do milho, tentando fingir inocência. Ele achou graça da expressão de seu mais velho, abaixando a cabeça e escondendo as mãos. Liza saiu primeiro, ainda meio que saltitando já que sabia que seu pai não lhe daria uma bronca muito pesada. A menina de seis era sempre mais confiante que o irmão.

Miguel podia ser o mais velho, mas era muito corruptível pela irmã e acabava fazendo o que seu emocional mandava. Ele favoreceu a aparência do pai, mais robusto que a irmã, mais alto, os cabelos no mesmo tom e formato do pai, com os mesmos olhos castanhos e o mesmo formato de rosto. Pedro adorava ver um pedaço de si quando olhava para Miguel.

Liza, por outro lado, era o tesouro da mãe e da vovó, que queriam uma menina desde a primeira gestação. A menina era uma cópia de Analícia, os cabelos loiros, olhos azuis, nariz fino, corpo franzino de membros finos.

—Desculpa, papai. –ela desejou.

—É, desculpa, papai. –Miguel repetiu.

—Vão brincar lá pra frente, por favor. –Pedro pediu. –Preciso colher esse milho e arar o campo antes da hora da escola.

—Sim, senhor! –foi a resposta apressada antes que eles partissem para brincar onde tinham mais espaço.

Pedro cometeu vários erros durante a paternidade, mas não permitiu que seus filhos crescessem mimados e enjoados. Na fazenda era fácil, com bastante espaço, muita coisa pra ver e muita coisa para fazer, correr até suas pernas caírem de cansaço. Pedro era grato por isso.

Começou com a colheita do milho, a fazendo o mais rápido que conseguia para que sua mãe já pudesse descascá-los e congelá-los, talvez. Quando já estava pronto para limpar a terra e arar de novo, sua menina apareceu, seu telefone vibrando em suas mãos.

—Vovó mandou entregar pro senhor! –ela exclamou. –Parecia importante, papi.

—Quem é?

—Tio Pablo! –ela replicou feliz, as pequenas mãos batendo palmas.

 (***)

Alô? —a voz de Pedro ecoou no apartamento.

Pablo se salvou de revirar os olhos apenas por treinamento e costume de lidar com Pedro. Era de se esperar que depois de horas apenas ele pudesse atender o telefone tão descaradamente, depois de Pablo ficar um bom tempo do lado do telefone, pagando uma ligação de Paris para Sococó da Ema.

—Tem noção de quantas vezes eu te liguei? Já é uma hora da tarde!

São dez da manhã, Pablo.

—Independente. É meu dia de folga da Ópera. –ele balançou as mãos, mesmo que Pedro não pudesse ver, terminando de tomar seu café expresso. –Como anda a vida, Pedro?

Hã, bem? Você não tinha algo confidencial pra me falar? Aliás, você sabe que irrita Analícia não ficar sabendo das coisas.

—A minha existência irrita sua esposa, Pedro. –Pablo suspirou, cansado demais para os dramas de Analícia.

O moreno pausou durante um instante, considerando como proceder. Era pra ser fácil, estava tudo dando certo naquele dia. Cécile não acordou passando mal, era seu dia de folga da Ópera, conseguiu fazer sozinho o café da manhã de sua esposa e o aluguel do apartamento deles estava em dia. As estrelas determinaram que seria naquele dia.

As estrelas e uma Melissa muito apressada.

O apartamento que Pablo dividia com sua esposa não era muito grande, como a maioria de Paris. Tinha dois quartos pequenos, dois banheiros, sala, cozinha e área de serviço. Estava localizado num bairro bom apesar das ruas estreitas, vizinhos suportáveis e uma arquitetura por fora que garantiu que sua esposa comprasse, apaixonada. Desde então a missão deles era tornar aquele pequeno conjunto de cômodos um lar para os dois e para o pequeno que viria logo.

Da cozinha Pablo tinha a melhor janela, dando uma vista para as ruas ocupadas de Paris, os carros passando, as pessoas andando, o céu claro e o barulho da vida era sempre a primeira coisa a acordá-lo de manhã. Não era muito diferente de São Paulo, exceto por ser. Pablo se apaixonou pela Cidade das Luzes desde que pisou aqui pela primeira vez com Belle, agradecendo a avó Vanessa e a oportunidade de tocar na Ópera Garnier, e aqui construiu sua vida, se apaixonou, casou, aqui trabalha e aqui vai morrer. O que não quer dizer que não sinta uma saudade extrema de acordar só pelos pedidos de seu pai, de sair para uma rua ainda de terra e de poder contar em uma mão os carros que via.

—Eu e Mel estivemos planejando uma coisa. –começou. –Como andamos todos ocupados e estressados, achamos que seria uma boa ideia reunir todo mundo na praia.

Na praia? —seu amigo ecoou. –E quem seria todo mundo?

—Nossa velha turma, Pedro. Já faz tanto tempo que a gente não se vê pessoalmente que eu acho que nem me lembro da cara do Leo. Não o vejo desde o casamento da Mel.

O homem do outro lado da linha suspirou. –Eu não o vejo faz um tempo também.

Pablo se sentiu motivado a continuar. –Nem Emily também. Aliás, nem você, que faltou no meu casamento.

Jesus, quando vai esquecer isso? Não tinha como eu voar pra Paris, eu não tenho passaporte! Nem dinheiro!

—Você podia ter dado um jeito! Você era o meu padrinho, Pedro! –Pablo resmungou, a implicância com o fato ainda presente em pequenas brigas dos dois, mas Pablo não culpava o outro de verdade. Infelizmente ele teve que aceitar se casar sem Pedro na igreja. –Enfim, eu e Mel achamos que seria bom tirar uma semana pra relaxar e curtir os amigos. Como nos velhos tempos.

Uma semana? Pablo, eu tenho a fazenda, meu filhos, minha mãe, Analícia e-

Pablo sentia na voz de Pedro que ele estava perto de recusar, como sempre fazia em todos os reencontros. Das últimas vezes era realmente mais difícil, geralmente era necessário voar até Sococó da Ema, o que era bastante cansativo –Pablo que o diga, depois de um avião e no mínimo dois ônibus, isso quando não precisava pegar dois voos. Leo e Pedro não possuíam passaporte, mas Pablo duvidava que o problema fosse esse e sim que Pedro não queria o lance de ‘se reencontrar’, especialmente com certa pessoa. Infelizmente, Mel exigiu que ele convencesse Pedro dessa vez ou ela teria que levá-lo a força e ser presa, largando Henrique e Mharessa sozinha. “Você não quer isso, quer?” a morena perguntou ameaçadoramente.

—Vão todos ficar bem, Pedro. Dona Jasmine e Berenice podem ajudar Analícia a cuidar de tudo, sem falar que você precisa de uma folga. Não seria um reencontro sem você.

Eu não sei, Pablo-

—Você não sente nenhum pouco de saudade da gente? –Pablo apelou, e sentiu Pedro engolir em seco.

Não é isso e você sabe.

—Pedro. –Pablo suspirou. –Somos seus amigos e estamos te pedindo uma semana do seu tempo. Vai ser só a gente, o mar aberto, uma casa só pra nós. Era nosso sonho de adolescentes.

Somos adultos agora. –Pedro argumentou, mas ele ia cair, Pablo sabia.

—Se você for eu paro de falar sobre você ter faltado no meu casamento. –ele propôs. –Porque você faltou, Pedro, e pelo visto não vai vir para o nascimento do Curtis.

Deus, Pablo, sua mulher está entrando no quarto mês ainda, não tem como saber-

—Pedro.... –Pablo resmungou.

Ele ouviu Pedro bufando e conseguiu imaginá-lo na fazenda, calças jeans e camiseta velha, possivelmente de seu pai, todo suado enquanto terminava a colheita, mato em todas as partes possíveis de seu corpo. Se brincar até no cabelo. Ele iria abaixar o telefone da orelha e considerar negar, mas sabia que teria que explicar aos outros cinco o motivo de recusar. E ninguém conseguiria aguentar a fúria das Barros Bastos, que iriam pessoalmente buscá-lo.

Tá. Eu vou ver com a minha mulher primeiro ou ela vai me matar. —ele cedeu. –Te ligo amanhã, beleza?

—Ótimo! –comemorou. – A Mel conseguiu o telefone de uma moça que tem uma casa na praia e alugamos por uma semana inteira!

Acho melhor alguém me dar uma carona. —Pedro avisou, antes de se despedir. –E me deseje sorte com Analícia.

—Ela vai entender. –ele garantiu, apesar de duvidar do fato. Analícia sempre manteve Pedro na rédea curta. –Até mais, Pedroca.

Pedro murmurou alguma coisa sobre não chamá-lo assim e desligou, Pablo podendo finalmente respirar em paz. Ouviu os passos pesados de sua esposa, que apareceu na cozinha levando a bandeja de seu café da manhã. Parecia que seria um ótimo dia para pedir comida em casa.

Cécile Laurent era uma mulher bem educada, de cabelos castanhos, sobrancelhas arqueadas, olhos pequenos e bochechas altas. Ela se carregava de forma tranquila, com um sorriso pequeno e falando calmamente, o que encantou Pablo desde a primeira vez que a viu, ainda bailarina na Ópera, grande amiga de Belle. Ela era franzina com ombros pequenos que Pablo adorava massagear, pés cansados de tanto dançar e carregava o filho deles na barriga, sua barriguinha já aparecendo, mesmo com a camisa bege larga dele cobrindo seu corpo.

—Tudo bem? –ela indagou em francês, uma preocupação no olhar por ver sua postura rígida.

A essa altura Pablo nem notava mais a diferença entre as duas línguas, o que era bom já que Cécile não aprendeu português de nenhuma maneira, por mais que ele tentasse lhe ensinar algumas palavras enquanto conversava com o bebê. Ela sabia “Eu te amo” e “Por favor”, mas acabava por aí, num sotaque francês maravilhoso.

Oui. –foi a resposta dele, a abraçando e deixando as preocupações de lado. –Como está nosso garotinho?

—Não sabemos se é um garoto, mon amour. –ela ria toda vez que ele falava isso, desejando uma menina. Falava até em chamá-la de Beatrice e de como desejava que ela puxasse os fios negros do marido.

—Mas eu tenho fé. Como está se sentindo? –ela a levava de volta para a sala, sempre preparado para mimá-la.

Bien, bien. O que vamos fazer hoje? –ela questionava mais do que tendia a se sentar.

Eles não tinham nada demais em sua sala de estar, mas cada objeto guardava uma história. Desde as cortinas brancas com desenhos floridos aos vasos coloridos que decoravam os móveis. Haviam dois sofás em tom pastel com almofadas laranjas e uma pequena tevê para o conforto dos dois, que gostavam de sentar e assistir filmes até cansarem.

—Eu pensei numa boa caminhada e um jantar romântico. –Pablo sugeriu.

—Chato! –Cécile reclamou. –Estou com um desejo de camarão....

Pablo riu, Cécile sempre tinha as piores ideias e acabava reclamando de ter ido naquele lugar sempre que se sentavam na mesa. Mesmo assim, ela insistiria em fazer o que queria fazer.

 -O que você quiser. –ele prometeu.

Youpi! –ela comemorou, batendo palmas.

—Até lá, estou em clima de pedir alguma coisa bem calórica pro almoço. Com suco de laranja pra equilibrar.

Oui, oui! –ela riu, achando graça.

Na realidade, Pablo nem saiu do lugar durante um bom tempo, ambos encontrando um resto de cereal no armário e um ótimo filme no Telecine, se perdendo do tempo no meio da coberta azul piscina que ele odiava mas que carregava sempre o cheiro de sua esposa.

Quem se importava mesmo?

(***)

 Olinda poderia não ser uma cidade que se destacava por suas praias, mas Leo sempre quis dar um parabéns para a cidade. Era colorida, animada, o sol brilhando quase sempre no céu, de uma arquitetura antiga com gosto de Brasil, as ruas cinzas indicando sua idade e uma quantidade relativamente boa de verde onde Leo podia ver, acostumado com o cinza escuro e o preto de outras cidades metropolitanas. Apesar de estarem aqui há poucas semanas, Leo estava apaixonado.

E estava apaixonado também pela pessoa que o acompanhava Brasil a dentro, desde que entraram sozinhos num ônibus para São Paulo e não pararam de andar até encontrarem a famosa Madame Belmira, que concordou na hora em retomar suas aulas à Dete.

Leo já se perguntou se estava arrependido de desaparecer com Dete sem avisar ninguém até que estivessem longe demais para serem impedidos, e a resposta era não. Quando Dete apareceu em seu portão, os dois tendo terminado a escola fazia poucas semanas, uma mala nas costas, um mapa e dois bilhetes na mão, ela o pediu para fazer uma escolha.

Você pode vir comigo ou pode ficar aqui. Eu não vou te julgar, Leo”, ela avisou, sempre compreensiva. Sempre linda. Sempre paciente.

Leo considerou ficar, ajudar sua mãe e seu pai, ser o homem da família. Mas só a ideia de acordar na cidade onde ela não estava no dia seguinte era demais para ele. Ele sabia que ia se arrepender se ficasse, e preferiu sofrer com ela do que sem ela.

Os dois foram embora naquela noite, a Lua a única confidente do que fizeram até que Leo conseguisse um telefone e avisasse seus pais. Estavam furiosos, mas Leo foi categórico:

Eu amo ela.”, confessou. “E estou pronto pra procurar o Brasil de Norte a Sul se for o que ela quiser, porque eu não vou ficar sem ela, mãe.”

Sua mãe chorou, ele chorou e Dete chorou. Mas ele e Dete choraram juntos, ainda na rodoviária, uma única carta de Belmira nas mãos de Dete para os guiarem. Eles choraram não o amor e nem as condições, mas choraram por um futuro. Pelo futuro juntos que estavam construindo, de mãos dadas ao desconhecido.

Acharam Belmira dois dias depois, ela com lágrimas nos olhos e os braços abertos para receber sua aprendiz de volta.

E assim passaram a viver, acompanhando Belmira cidade a dentro, cidade a fora. Dete conseguiu terminar os estudos sobre cartomancia que teve que pausar quando Belmira foi embora e conseguiu, com muito custo, comprar sua própria barraquinha e o carro próprio para que pudessem viajar juntos, ensinou tudo que sabia para Leo também para disponibilizar seu conhecimento.

As pessoas só vão respeitar quando entenderem.”, ela tinha explicado uma vez. “Então nós vamos fazer elas entenderem.”

Leo fazia o que podia, ajudava Dete e Belmira nas barraquinhas, cuidava de cachorro, fazia bico de garçom, vendia pequenas artes na praia, dava uma de caminhoneiro e tudo que dava um dinheiro extra, sem a menor preocupação. Não era uma vida fácil, mas pelo menos ele podia comemorar o fato de visitar paisagens lindas e de atravessar o Brasil quase que mensalmente. E o melhor: fazia isso com sua (finalmente) esposa do lado. Leo não podia ser mais feliz por tudo que conquistou com seu próprio suor e sangue.

No começo ele sofreu, é verdade, mas cresceu também. Era um homem, era um marido, era um trabalhador. Agora ele tinha barba, cortava ele mesmo seu cabelo com uma navalha, seu corpo trazia as marcas do trabalho pesado, os olhos se escureceram e aparecerem pés de galinha. Dete também se transformou numa grande e independente mulher, seus cabelos cacheados balançando, seu corpo se afinou, sua boca agora trazia marcas da idade. Mesmo assim, Leo era a imagem do orgulho enquanto andavam pelas ruas de Olinda, finalmente um momento de descanso para relaxarem na cidade enquanto Belmira cuidava das barraquinhas.

—Tira uma foto, amor! –Dete pedia, fazendo pose perto do mar.

E quando ele posicionava a câmera do celular, pronto para enviar para Seu Vinicius, seu telefone tocou.

—Um minuto, princesa. –ele pediu, olhando de quem era a chamada.

Henrique.

—E aí vara pau? –cumprimentou, o apelido na ponta da língua.

Leonardo, você não vai crescer nunca? —ele ouviu o mais velho bufar, seu tom condescendente.

—Mais que você nunca. –ele continuou, Dete já o ignorando em favor de apreciar a paisagem.

Bestão. Eu tinha um assunto sério pra falar.

Por um minuto, Leo ficou tenso. Havia uma idade onde se chegava que ele se preparava para as más notícias. Para um sussurrado Sinto Muito de seu irmão depois que o pai deles morreu, para a dor que sentiu ao saber da notícia e saber que não visitava o pai deles já havia um bom tempo, por mais que tentasse visitá-los pelo menos uma vez ao ano.

—O que aconteceu dessa vez?

Nada que você esteja pensando, relaxa. É uma coisa boa. —Henrique contava, sua voz se animando. –Adivinha o que a minha maravilhosa esposa preparou?

—Nada perto do que a minha maravilhosa esposa já faz. –ele rebateu, algo que ele e Henrique eram muito bons: puxar o saco de suas esposas.

Em sua defesa, não importa o quão bem sucedida Mel fosse, Dete era de outro mundo. Algum dia ele faria Henrique admitir.

Não dessa vez! O que você me diria de um reencontro da antiga turma? —o mais velho chama, Leo sentindo sua felicidade e animação. –Não só isso, como um reencontro de uma semana na praia?

Leo ri, achando graça. Era verdade que eles conversavam bastante sobre isso na adolescência, de irem os sete para uma casa na praia quando brigassem com os pais, mas era só brincadeira. Sonhos de adolescentes. A possibilidade de realmente irem para uma casa de praia era quase...

—Brincadeira. É uma brincadeira?

Não! A Mel já está ajeitando tudo para irmos no final de Outubro! Praia, criança, praia!

—Uau. –ele suspirou, um sorriso feliz em seu rosto. –Eu com certeza topo. Não sei se tenho dinheiro pra isso tudo.

Não se preocupe. Você vai ficar encarregado da cerveja, deixa o resto com a gente. –ele brincou. –Só tem uma coisa...

—Ih, o que foi?

Vai ser só a antiga turma. Achamos que daria menos trabalho e ficaria mais em conta.

—Sei. –Leo apertou os olhos, mesmo que Henrique não pudesse ver. –Isso ou vocês não queriam Analícia na equação?

Uma pausa. –Isso também.

Leo riu, balançando a cabeça. Sua cunhada realmente era uma outra história, e ela de fato não deixava ninguém relaxar sempre que tentavam se reencontrar na casa de Pedro. Leo a achava muito chata, mas a respeitava como esposa de seu irmão. Às vezes lamentava não ter estado com o irmão durante a saída de Belle, talvez ele pudesse ter colocado juízo na cabeça de Pedro.

—Dete não daria trabalho, mas eu entendi a lógica. Pedro ia querer levar Analícia e assim Belle não iria. –ele concluiu. –Eu não me importo, Dete vai ficar bem com Belmira.

Que bom que entendeu, Leo. Todos queremos que dessa vez dê certo.

—Sim, sim. Diga à Mel que eu topo e que mandei um oi, vou adorar uma praia agora. Dividimos a conta depois?

A gente vê depois. O importante agora é convencer todos a virem.

—Boa sorte fazendo Belle sair de São Petersburgo. –ele riu. –Como estão Mel e Mharessa?

Ótimas! Mharessa está uma danadinha agora, precisa ver. Depois te mando a foto do que ela fez com a cozinha esses dias, quase matou a gente do coração.—ele riu. –Ela está animada para ficar com a avó uma semana inteira. Eu e Mel sempre fomos muito...

—Corujas. Enjoados. Chatos.

Superprotetores. –ele corrigiu, um tom de irritação na voz.

—Como preferir chamar, grande homem. –ele brincou.

E como está Dete? Onde vocês estão por agora?

—Olinda, Pernambuco. E Dete está ótima, estamos aproveitando um momento de descanso. Tenho ótimas fotos para te mandar da cidade! É tudo tão lindo! Aliás, o Nordeste inteiro é maravilhoso. Estamos adorando.

Imagino! Não vai ser muito difícil pra você ir pra praia, né?

—Não, não. Eu mesmo pego um ônibus até lá, só me manda o dia e o lugar certinho, beleza?

Pode deixar, Leozinho! Até mais!

—Até, vara pau.

LEO!

Leo gargalhava enquanto desligava a ligação, Dete correndo para espiar com quem ele estava falando, seus olhos curiosos. Quando finalmente guardou seu celular no bolso, conseguiu abraçá-la pela cintura, a puxando em direção à orla, satisfeito.

—Quem era, Leo?

—Henrique. –ele a respondeu com um sorriso feliz. –Com boas notícias, finalmente!

(***)

Henrique desligou a ligação assim que viu que estava falando sozinho, apenas levemente irritado. Ele passou a mão no cabelo, pelo menos nas pequenas pontas que restavam –ele sempre achou que a cabeça raspada lhe deixava mais velho, e funcionou! – achando bom que pelo menos Leo continuasse o mesmo por dentro. Era muito estranho conversar com qualquer outro de seus amigos e ver que eles já paravam de fazer a mesma piada.

Deus tivesse piedade, Leo seria o tio do pavê.

—Como foi? –Mel perguntou, juntando as mãos no queixo, ansiosa. Seu anel de casamento brilhava dessa posição.

Deus, eu estou tão apaixonado.

Não foi difícil se apaixonar por Mel, ele lembrava. Ela era linda, inteligente, independente, guerreira, doce e paciente, tudo num pacote só. Os garotos de sua sala brigavam para ver quem sairia com ela e ela dispensava todos eles em total desinteresse. Henrique achava que era uma paixonite boba que passaria com o tempo, mas quanto mais ela crescia, mais ele a amava. Enquanto todos esperavam Belle e Pedro namorarem, Henrique finalmente engoliu coragem e a chamou para sair.

Quando ela disse sim, um sorriso que se refletia nos olhos e pequenos pulos para indicar sua animação, Henrique concluiu que poderia morrer feliz.

Ele não morreu. Na realidade, eles saíram para longe da cidade, procurando a primeira montanha, e tiveram um piquenique no alto, podendo ver a cidade inteira ao longe. Mel absorveu a vista brilhando mais que as estrelas, seu sorriso mais poderoso que a Lua e seu toque o esquentando mais que o Sol. Henrique soube naquele momento que queria passar a vida com ela, se assim pudesse.

Cristina desaprovou dele desde o momento em que voltaram de mãos dadas até o momento em que trocaram as alianças. Ele entendia, de verdade, ele era um menino negro e pobre e ela era a menina mais rica da cidade, era lógico que a responsável por Mel iria pensar que ele queria algo dela. E mesmo assim, eles continuaram juntos. Fizeram faculdade juntos, ele de Engenharia Civil e ela de Administração -ambos os melhores de suas turmas-, voltaram para Sococó da Ema para que ela assumisse os negócios da família e dividiam o tempo entre a pequena cidade e São Paulo, onde ele tinha sede de empresa. Eles construíram todo um patrimônio juntos e estava orgulhoso disso.

Ao olhar para a pequena forma nos braços de Mel, Henrique se orgulhava da vida que haviam feito também.

—Bem, Mel. Ele concordou na hora e foi compreensivo. –respondeu.

Mel suspirou, aliviada. –Achei que ele iria querer levar Dete de todo jeito.

Henrique franziu as sobrancelhas, sua impressão de Leo bastante diferente. –Parecia que ela estava aproveitando Olinda e ele não queria atrapalhá-la. Dete sempre foi muito legal.

—Olinda? –Mharessa indagou, testando a palavra.

—Sim, amor. É uma cidade. –Mel instruiu. –Bom saber que eles estão felizes.

—Só de estarem juntos já é de se esperar que Leo esteja beijando o chão em que ela passa. –Henrique revirou os olhos.

—Como você faz? –ela retrucou, uma sobrancelha arqueando.

Ele corou, gaguejando. Não dava nem para discordar.

Mel tinha se transformado numa grande mulher, se carregava de uma maneira bem diferente de quando eram crianças. Ela andava com a cabeça erguida, salto quinze nos pés, olhar forte de quem conseguiria o que queria. Seus cabelos continuavam uma cachoeira negra em suas costas, suas sobrancelhas continuavam finas e seu nariz ainda era empinado, mas agora tudo nela era uma mulher. Uma linda e poderosa mulher.

—Dá pra acreditar que eu realmente sinto falta das brincadeiras do Leo? –ela riu, desacreditada.

—Dá. Eu também sinto. –ele confessou. –Eram horríveis.

—Ô se eram. –ela riu, balançando Mharessa.

E era realmente incrível que eles sentissem falta da implicância e da falta de senso de humor de Leo desde a época em que eram adolescentes, mas sentiam. Leo era uma pessoa tão leve e tão divertida de se estar com. Eles se lembram do discurso memorável dele no casamento de Pedro.

“Quando eu fiquei sabendo que meu irmão ia se casar, primeiro eu achei que era pegadinha. Depois eu tinha certeza que era pegadinha. Quando me falaram que era com Analícia, eu desliguei o telefone, já nem rindo mais da brincadeira.”

—Quem é Leo? –a pequena indagou.

Mharessa Fernandes Barros Bastos era sua princesinha de cinco anos, puxando os cabelos escuros da mãe e o resto de seu pai –o formato do rosto e dos lábios, a cor da pele, até mesmo o tamanho e a cor dos olhos. Felizmente ela se assimilava à Mel pelos ombros pequenos e a cintura fina, apesar do tamanho ser realmente de Henrique. Ele sempre foi alto para a idade. Muito fermento, sua mãe dizia.

Dona Rosa ligava diariamente para saber das novidades e ele gostava de conversar com sua mãe, ouvi-la reclamar de seu pai o dia inteiro. Eles viajavam constantemente para visitá-los e checar Cristina também, por mais que a mulher sempre reclame não precisar de babá. Sempre que ela olhava para Mel, seus olhos se enchiam de orgulho e ele sabia que a mulher realmente queria vê-la com frequência. Já era difícil ter um contato frequente com Emily, sempre presa com algo no Rio.

—Um grande amigo nosso. –responderam. –Você vai ficar bem com a vovó em Sococó da Ema, não é?

—SIM! –a pequena exclamou. –Eu vou poder brincar com o Miguel e a Liza?

—Se você me prometer não dar trabalho pra Analícia... –Mel suspirou. –Sabe como ela é.

—Vou ser boazinha. –ela prometeu. –Eu gosto da casa da vovó.

—Que bom, filha. –Mel respondeu, a balançando no corpo. –Por que você e o papai não procuram algo pra fazer enquanto eu ligo pra Tia Emily?

—Eu quero falar com a Tia Emily!

—Depois, amor. –Mel pediu. –Seu pai vai colocar algum desenho pra você na televisão.

—Não! Cavalinho! –ela pediu, adorando as vezes em que seu pai a colocava nas costas e a carregava por aí, pulando com ela.

Henrique fez uma cara de sofrimento.

—Você ouviu sua filha. Cavalinho. –Mel mandou, o passando Mharessa, que batia palmas de felicidade.

Henrique forçou um sorriso para a menina. –Certo. E lá vamos nós!

Ela balançou a cabeça, saindo da sala de estar, um espaço bastante razoável para a pequena família deles, com dois andares, uma varanda ampla e um quintal maior ainda com piscina e churrasqueira para que eles recebessem os amigos em São Paulo. Um bairro residencial, uma casa com boa arquitetura, tetos altos e cômodos amplos, bastante iluminada. Mel adorou. Poder chamar o espaço de seu era um dos maiores orgulhos que tinha.

Ela procurou se sentar numa poltrona lá fora, podendo observar a calmaria de seu quintal. Tinha bastante grama, espreguiçadeiras para aproveitar o sol, conjuntos de flores nos muros, uma churrasqueira à céu aberto e uma piscina relativamente grande no formato de polígono. Era relaxante e tinha o cheirinho de casa e grama cortada.

Emily era umas das poucas que sempre atendia suas chamadas na hora e sabia que iria ficar feliz em falar com ela. Ela conversaria com Belle depois. Sua prima ia adorar as notícias!

Alô? —foi o que recebeu, um alô relativamente curto, indicando que ela estava trabalhando.

—Atrapalho?

Oi, Mel. Claro que não. Sempre posso fazer tempo pra você. É importante?

—Meio que sim, mas você vai adorar ficar sabendo! Estamos falando disso há meses!

Um irmãozinho pra Mharessa?

—Não! –Mel bufou. –Um reencontro!

(***)

Emily era uma pessoa que se orgulhava de ter crescido. Se orgulhava da maneira que seu cabelo se tornou um cobre escuro conforme o tempo passou, de suas sobrancelhas terem curvado e de seu rosto quadrado que emoldurava seus cachos, de seus olhos grandes e da maneira com o qual o tempo não passou para ela. Apesar dos anos, ela mantinha o corpo e o rosto dos vinte anos. Ela costumava de dizer que era como vinho, só melhorava com o tempo!

Não só isso, mas se orgulhava de ter se tornado uma pessoa melhor. De ter amadurecido a mente tanto quanto o corpo, de ter se transformado numa pessoa disposta a se sacrificar por outras vidas, uma pessoa que honra a farda que vestia todos os dias.

Uma vida, ela costumava dizer para si. Se melhorasse ou salvasse a vida de uma pessoa, seu dia já teria valido a pena. Independentemente de quem fosse. Estar disposta a matar se tornou apenas parte do processo.

Não foi fácil, mas era um sonho. O que não fazíamos por um sonho, se Belle largou tudo no Brasil para seguir carreira na Europa? Se largou Pedro?

Assim como ela, Emily também largou tudo assim que pôde. Fez um curso de Direito em São Paulo assim que terminou a escola, aproveitando que sua prima e Henrique também iriam para lá, e assim que terminou preencheu os formulários da Polícia Federal. Entenda, ela era durona, desde criança, apesar de doente. Depois que por um milagre e muitos tratamentos ela conseguiu manter seus níveis de ferretina estáveis na maior parte do tempo, tendo que ir ao médico cerca de duas vezes por ano, ela conseguiu provar que poderia brigar tão bem quanto os homens. E seu corpo que o diga, ela se tornou a própria Mulher Maravilha dentro da Polícia Federal do Rio de Janeiro, logo avançando em Classe conforme podia, sempre focada em fazer tudo que pudesse e ser o mais proativa possível. Emily simplesmente não nasceu para ficar parada.

Bom ter aprendido essa com Belle.

Aquela garota é fogo, costumavam dizer sobre ela.

Ela já estava tão acostumada a conviver e trabalhar com homens que nem se importava mais, tendo sido melhores que muitos durante seu teste físico.

Sem falar que o apelido de fogo combinava com seu cabelo.

Emily adorava seu emprego, adorava seu salário, adorava a estabilidade financeira, adorava a adrenalina que corria em suas veias quando podia trabalhar com os grupos de pronta intervenção, adorava poder viver sua própria vida, pagar suas contas e adorava poder sair com quem queria quando queria.

Ou pelo menos gostava. Ela até estava bastante feliz com o relacionamento duradouro que estava tendo com outro agente da Polícia, um delegado. André era um homem bom, respeitoso, de pulso firme para as coisas e que parecia respeitar o fato dela ser uma fogueira ambulante. Ele parecia gostar disso nela.

Você é como uma tempestade numa calça. É desafiador, ele descreveu uma vez, e as calcinhas dela molharam apesar da cantada ruim.

Mas ela só bufou e saiu de perto, determinada a não deixar aquele macho mexer com a cabeça dela.

André não desistiu e quanto mais ele insistia, mais ela gostava. Determinação. Pulso firme. Foco. Tudo eram coisas que ela treinou para demonstrar e ele não parecia fazer nenhum esforço para ter. Saíram uma vez por insistência dele e ela acabou gostando até que os dois acabaram noivos. Só faltava o tempo para planejar o casamento, mas estava indo tudo bem e ela estava feliz.

A vida no Rio não era fácil e levou tempo para que ela construísse tudo que tinha, saindo do Rio para outros lugares em busca de cursos para a Polícia Federal, tudo sem conhecer ninguém na grande cidade. Seu trabalho já era bastante estressante e lidar com outros homens idiotas e trogloditas que a desmereciam por ser mulher era exaustante. Mesmo assim ela colocou seu colete à prova de desistências e passou por tudo até chegar onde estava.

E acompanhou com orgulho nos olhos seus outros amigos, seus pirralhinhos, as outras partes dela, passarem por todas as provações até também chegarem onde estavam. Ela esteve presente pro casamento de Pedro, por mais desgostosa que estivesse sobre a situação, viu o casamento de Mel e a inauguração da empresa de Henrique, a ascensão de Mel como empresária, as primeiras apresentações de Belle e Pablo na Ópera em Paris, as novas ascensões da Bailarina na Rússia e todas as novidades que Leo conseguia passar para qualquer um dos outros seis amigos que tinha. Era impressionante o caminho que tomaram. Ela só sentia uma gigante falta deles, da época em que escondiam cerveja dos adultos e se reuniam para tomar perto do Lago.

Uma vez Leo ficou tão bêbado que tirou a roupa e nadou pelado. Ninguém teve a coragem de dizer pra ele o que aconteceu no outro dia.

Se falar com eles já era difícil, basicamente cada um num canto do mundo -ela no Rio, Mel e Henrique em São Paulo, Pedro em Sococó da Ema, Pablo em Paris, Belle em São Petersburgo e Leo sabe-se lá onde-, se verem era quase impossível.

—Você quer fazer o quê? –ela repetiu para Mel numa tarde quando a outra terminou de contar o que queria fazer.

Pense nisso como um passeio! —a morena comemorou. –Vai ser nas suas férias, não vai?

Emily piscou, se perguntando como Mel encontrou o tempo de analisar suas férias, as apresentações de Belle e Pablo e sua própria agenda para conseguir uma data. –Bem, até que vai-

E você me disse que não iria fazer nada! Pronto, já tem uma coisa pra fazer! Não vai ser demais?!

—Melzinha do meu coração. –ela pausou a prima. –Você tem certeza que isso vai dar certo? Alguém já falou com Belle e Pedro?

Eu coloquei Pablo para falar com Pedro e vou ligar para Belle amanhã.—a mulher respondeu. –Mas tenho fé de que dessa vez vai dar certo.

—Você sabe que não deu certo nenhuma das outras vezes em que a gente tentou, não é?

Desde quando você se tornou a pessimista da turma, Emily?

—Só estou destacando um fato. Eu ia adorar ir pra praia.

Pois nós vamos, todos nós. Eu mesma vou falar com Belle e você é meu plano B se não der certo. Tem um voo para São Petersburgo semana que vem e esse é o plano C.—ela contou. –Todos toparam até agora.

—Sei. –Emily sibilou a palavra, apenas meio descrente. Mel sempre conseguia o que queria. –Bem, eu vou adorar o passeio. Estava precisando sair do Rio, achei que teria que passar meus dez dias de férias com o biquíni encravado na praia.

Mel não falou nada por um momento, mas depois sua voz já estava embargada. –Deus, eu sinto tanto a sua falta....

Os olhos de Emily se suavizaram, mas ela se recusava a chorar. –Eu também, prima. Vamos nos ver logo.

Dia 23, não esquece. –Mel pediu, se recompondo. –Leo vai ficar com a cerveja.

—Leo tem um péssimo gosto pra cerveja. –Emily gemeu. –Eu vou levar o limão pra caipirinha, então.

Emily Barros Bastos, você se lembra do que aconteceu com a última caipirinha que você tomou.

—Na realidade não me lembro e é melhor não lembrar. –ela treme só de imaginar. –Preciso ir, pequena grande mulher.

Mel riu do outro lado da linha. –Pode ir. Te mando as fotos do lugar depois.

—E da Mharessa também, estou com saudade da minha sobrinha. Mais do que tenho do traste do seu marido.  

Você adora meu marido. –Mel alongou as sílabas, implicando. –Até, prima.

—Até. –ela se despediu, apertando o telefone nas mãos mesmo depois de Mel desligar.

Parece que ela teria planos para o final de Outubro que teria que avisar ao seu noivo. E não era loucura que todas as suas células vibravam em antecipação para rever todo mundo? Fazia tanto tempo que eles só se viam por fotos nas redes sociais que ela nem imaginava mais como seria abraçar todos eles até quebrar algumas costelas.

Ela ia guardar essa vontade, certamente, e esmagar todos eles na praia.

(***)

Tendu. Fondu. Frappé. Grand Battement.

Todos esses nomes não passavam mais pela mente de Belle quando ela fazia os passos, exatamente como não se pensa em letras de alfabeto ao pensar numa palavra como um todo. Isso foi uma das primeiras coisas que ela aprendeu quando começou o balé profissional –as coisas perdiam a magia de tudo que era no começo.

O que não significava que ela amava o que fazia menos, pelo contrário. Ela tinha a mesma devoção às sapatilhas que padres tinham com a Igreja.

Um. Dois. Três. Quatro. Cinco. Seis. Sete. Oito.

Ela só pensava no que havia feito depois que tinha terminado, seu corpo quente e suando conforme alguns aplausos soavam ao seu redor. O próprio Evgeni a aplaudiu, um sorriso orgulho em seu rosto conforme o orgulho brilhava nos olhos. Bom saber que alguém estava feliz, a opinião do moreno sendo importante pra ela. Ele tinha a característica de ser extremamente sincero e ela gostava dele por isso.

Valery Gergiev também parecia satisfeito com a apresentação, o que era tão bom quanto ruim. O homem não ficava satisfeito com qualquer coisa, por um lado, mas por outro, significaria que ele não a permitiria se estressar ou exagerar. O homem era um bom diretor artístico e tinha um olho para o balé clássico e para as pequenas sutilezas que ela queria demonstrar –musicalidade era importante para ela, e ela sempre fazia questão de passar a impressão de uma caixinha de música, onde a bailarina puxa a música e não o contrário.

As outras meninas que observavam o ensaio também pareciam orgulhosas. Belle gostava das outras bailarinas em sua maioria, e no mundo do balé, essas pessoas eram basicamente a sua família na Rússia.

—Você está ficando melhor. –o diretor elogiou. –Cuidado com o pé direito nos saltos, você é uma bailarina e não uma jogadora de futebol.

Belle sorriu, aliviada. Criticismo era amplo espaço para ser explorado, era algo para se focar e para fazer.

Gergiev era um homem velho de cabelos ralos com entradas na cabeça, nariz grande, sobrancelhas grossas e um sorriso largo com uma barba curta. Mais principalmente, era um grande exemplo e inspiração para ela, que a acolheu desde o momento em que entrou no Mariinski, num país estranho num lugar estranho com gente estranha. Balé era um mundo competitivo, todos esperando para você torcer o pé ou quebrar a perna e ter alguém para guiá-la naquilo tudo foi reconfortante.

—Meninas, quero o Ato II No. 13 agora. Dança dos pequenos cisnes! Última vez! –ele exclamou num russo rápido, as outras bailarinas tomando seu lugar. 

O palco do Mariinski era grande, com toda a ala da orquestra aos seus pés, as luzes douradas descendo nela apesar das poltronas vazias. Ela conseguia imaginar a noite de estreia, todos os andares e cadeiras se enchendo de espectadores ansiosos para sofrerem com Odette e sua história.

Para sofrerem com ela no palco.

Belle passou a vida inteira esperando a oportunidade de interpretar Odette –era seu sonho desde menininha. Ter a chance de ser a Rainha dos Cisnes. Durante sua carreira Belle teve a oportunidade de interpretar todos os seus maiores sonhos, seja em São Paulo, Paris, Rússia, Inglaterra ou América. Giselle. Aurora. Cinderela. Coppélia. Kitri. Nikiya. Julieta. Apenas um faltava para que Belle se sentisse satisfeita: Odette.

Aos 31 anos, Belle seria Odette no final do ano, a estreia de sua vida. A culminação de praticamente quatorze anos no balé profissional, vivendo do que seus pés podiam fazer.

Passou direto para o camarim, tirando uma garrafa de água da bolsa e massageando os pés, uma dor que era tão constante que ela nem reparava mais. Torcia para não ser joanete. Belle decidiu colocar uma água no rosto e aproveitar o fato de que o banheiro deveria estar vazio.

Seus cabelos estavam mais longos do que ela geralmente deixava, passando um pouco dos ombros em fios negros volumosos que emolduravam o rosto fino com as sobrancelhas delineadas e os olhos azuis. Belle já recebeu várias vezes o comentário de que “nem parecia brasileira”, seus olhos claros e a pele branca demonstrando sua ascendência francesa. Os fios estavam repicados e Belle considerou ir no cabelereiro na próxima semana e pedir um corte menor com uma hidratação das pontas.

O problema era que a figura que encarou Belle do espelho estava incrivelmente cansada, com a pele pálida demais por passar quase todo o tempo dentro do teatro e longe do sol –que raramente fazia uma aparição que Belle pudesse chamar de ‘Sol’ -, por estar suada e com os olhos caídos. Belle nunca imaginou que seria uma daquelas pessoas que passava a vida trabalhando e aqui estava ela, necessitando extremamente de um orgasmo.

Quando reuniu o esforço para voltar, Gergiev a olhou com cuidado.

—Já enceramos o ensaio, Belle, pode ir pra casa. Evgeni já foi.

—Eu vou passar uma última vez. –ela pediu. –Uma última vez.

Gergiev balançou a cabeça. –Vá pra casa, Belle. Você já trabalhou demais.

—Eu posso melhorar. –ela prometeu.

—Você precisa de férias. –ele suspirou. –Três apresentações em um mês, Belle....

Belle pausou, temerosa do que o diretor diria. Por mais que ele fosse fraco com ela desde a primeira vez que a conheceu quando ainda estava na Ópera de Paris, ele ainda era o diretor artístico e responsável por garantir que todas as bailarinas estivessem em sua melhor forma.

—Sua dedicação te separa das outras bailarinas, Belle, mas também pode te aproximar do hospital. –ele falou. –Descanse.

A mais nova suspirou, entregando a batalha. Ela deu um sorriso apertado, prometendo voltar mais cedo no dia seguinte. O mais velho balançou a cabeça, fazendo o favor de acompanhá-la para pegar sua bolsa, uma mochila rosa com estampa de macaquinhos, trocar as sapatilhas, colocar um casaco longo e lhe fazer companhia até a porta do teatro.

—E cuide desses pés, senhorita!

—Pode deixar! –ela prometeu, saindo rua a fora.

 As ruas de São Petersburgo estavam sempre frias para ela, quase cinzas ao olhar já que o sol raramente fazia uma aparição digna de lembrança. O dia durava bem menos aqui, até mesmo Paris tinha um dia mais encurtado que o Brasil e isso a deixava vibrando de energia mal desperdiçada até que seu corpo realmente se acostumasse.

Olhou o celular enquanto caminhava até sua casa, várias mensagens não respondidas. Ela não gostava de usar o telefone durante os ensaios por serem uma distração de suas emoções, que precisavam estar focadas em algo específico. Sem falar que era antiprofissional.

Papai: Filha, olha o que eu fiz de janta sozinho!!!

Papai: Belle, não esquece de me ligar.

Papai: Já está em casa amor?

Ela riu, achando graça das éticas de seu pai. Pelo menos o de criação, ela não se via se acostumando a chamar Vinicius de pai em nenhum futuro próximo. Otávio sempre fazia questão de lhe perguntar o que fez durante o dia e de lhe contar o que ele fez, a velhice o deixando desocupado demais para seus gostos.

Mãe: Belle me manda uma foto sua amor.

Mãe: Tô querendo mostrar pra Flávia, da loja! A netinha dela também quer começar o balé!

Mãe: Belle não vai dormir sem me responder.

Mãe: [Imagem]

Belle suspirou. Maria odiava quando ela lhe respondia tarde, sem entender a diferença de cinco horas entre elas –ela ia pra trabalhar quando lá ainda era madrugada.

Desconhecido: oi amor me liga de volta

Desconhecido: já faz duas semanas

Apagar. Por favor apagar.

Desconhecido: Belle preciso falar com você. Me responde.      

Às vezes ela tinha sérias dúvidas sobre o número saudável de ex’s que uma pessoa poderia ter. Belle definitivamente tinha passado da linha.

Chris: Mon chéri, está livre na sexta? Estou precisando de uma companheira de bar.

Ela riu, decidindo responder esse ex primeiro. Ela adorava Chris, não só pela maturidade com a qual lidou com o término deles, como também por ser um excelente amigo.

Eu: Está vindo pra cá de novo? Você não tem casa aí na Suíça, não?

Satisfeita, ela rolou pela coluna de nomes e números não salvos, procurando alguém que merecesse uma resposta. Viu surpresa a conversa com Mel tendo várias mensagens.

Melzinha: Coração, posso falar com você? É importante.

Melzinha: Tá muito tarde aí?

Melzinha: Belle você sabe que é minha melhor amiga, né? Me liga assim que puder.

Que papo estranho. Belle aproveitou que estava chegando em casa para apertar o botãozinho de ligação no aplicativo, apoiando o celular no espaço entre o rosto e o pescoço e procurando a chave de seu prédio com o que sobrou de atenção.

Belle!—ela ouviu Mel do outro lado na linha, um tom de hesitação.

—Desembucha. –ela pediu.

Grossa. Bailarinas são mais delicadas.

Belle subiu as escadas enquanto segurava o telefone, conseguindo entrar no apartamento sem dificuldades já que Evgeni largou a porta aberta. De novo.

—Oi de casa! –ela chamou num russo forte, fazendo o favor de trancar a porta. Voltou para o telefone com um português quase esquecido. –O que precisava me falar?

Mel pausou, e Belle não pensou muito disso enquanto cumprimentava Evgeni no sofá, assistindo algum jornal local que Belle não se focou o suficiente para entender. O rapaz piscou em sua direção, um sorriso ao vê-la antes do horário esperado, mas percebeu que ela estava no telefone e não falou nada. Ele sempre reclamava que português soava como uma língua alienígena.

Tá uma ótima época para ir pra praia, não acha?—a outra começou.

—Hum, acho que sim. Aí. Aqui o inverno está praticamente na porta. –ela respondeu, duvidosa.

Belle. Estamos planejando um reencontro da velha turma pro final de Outubro. –Mel cortou o rodeio. –Todo mundo concordou até agora.

Belle suspirou, entrando em seu próprio quarto e se jogando na cama para se apoiar em seus ursinhos de pelúcia. Era sempre difícil inventar uma desculpa para Mel.

—Eu não sei se posso... –Não posso. –Tem a apresentação do Lago dos Cisnes.

É. Em Dezembro. –a outra retrucou. –Você pode pegar dez dias para relaxar com a gente na praia, Belle, você nunca tira férias.

—Mel...

Belle, por favor! Por favor! Você nunca vem nos ver.

—Não vejo ninguém pegando um avião também. –ela revirou os olhos.

A única coisa boa da Rússia é você. Enfim, você vem ou não?

—Quem vai?

Só a nossa turma. Nada de Christophe, Belle.

Droga. Droga dupla.

Sem falar que a gente tá sonhando com isso há anos e estamos todos contando com a sua presença! Emily disse que está morrendo de saudade! E eu sei que você não vê Leo desde, tipo, o meu casamento. Você não quer explicar pra Emily o motivo de não vir, quer?

—Vocês fizeram um complô. Não é justo. –Belle gemeu. –Pedro concordou com isso?

Nem Pedro nem você tiveram muita escolha. –Mel suspirou. –Nós amamos os dois, eu juro que amamos, mas vocês já têm trinta e um anos. Está na hora de crescer. Nós somos todos amigos antes de qualquer outra coisa.

—Mas-

Belle. Enfrentar os problemas, lembra?—Mel ameaçou. –Esse é o exemplo que você quer passar pra Mharessa?

Belle bufou. –Isso é coerção.

Isso é uma ameaça.—Mel corrigiu. –Vou te mandar por mensagem os detalhes da viagem. Quero você aqui na hora certa, tenta pegar um avião pra Paris para você vir com Pablo.

Sim. Aquele que não falou nada com ela. Grande irmão.

—Sim, senhora. Como eu vou explicar isso pro meu chefe?

Gergiev te adora, tenho certeza que você consegue uns dez dias. –ela responde.

O pior é que ela provavelmente conseguiria.

—Até, Mel. Converso com você depois. –ela suspirou, passando a mão no cabelo.

Belle. Vai ser bom. Vamos poder relaxar e beber e conversar como fazíamos, vai ter mar, luau, e vai ter a gente. Estamos morrendo de saudade de você. Não deixe Pedro te impedir de vir, nós somos seus amigos também, ok? Ninguém te julga aqui.

Não é isso que me preocupa, ela pensou. É vê-lo de novo.

—Certo, Mel. Amo você, ok?

Também amo você. –ela ecoou. –Até, Belle.

—Até... –ela prolongou, mesmo depois de escutar o som da ligação desconectando.

Saiu do quarto como um prisioneiro condenado sai do tribunal, seus ombros baixos. Aproveitou que Evgeni nunca tinha nenhum conselho bom para dar, mas pelo menos não era enjoado para conversar. Ela se deitou no colo dele sem dar nenhuma explicação, aproveitando sua figura para se esconder.

—O que foi? –ele perguntou num russo quase bravo. –Era Grigory de novo?

Evgeni era seu colega de apartamento desde que ela se mudou para São Petersburgo. O rapaz foi da companhia de balé da Ópera em Paris durante algum tempo, mas acabou querendo voltar. Ele falou com Gergiev sobre a possibilidade de um contrato com o Mariinski e o próprio diretor visitou uma das apresentação para ver seu nível, onde encontrou Belle e ofereceu aos dois uma vaga em seu teatro. Belle aceitou imediatamente.

Evgeni era o típico russo de rosto quadrado e forte, barba por fazer e um cabelo curto ralo, mas com o corpo trabalhado de bailarino. Um dos melhores pontos que Belle encontrou na Rússia era que os bailarinos eram bastante respeitados, já que o balé clássico fazia grande sucesso no país e a Rússia sempre se orgulhou de suas bailarinas e bailarinos. Isso incluía Belle, que recebeu a proposta para uma cidadania oficial assim que ganhou destaque internacional.

—Deus, não. Eu bloquei ele. –ela respondeu. –Era Mel. Sabe, a minha melhor amiga. Do Brasil.

—Aconteceu algo? –ele massageou seu cabelo, preocupado. Geralmente ela saía de uma conversa com Mel radiante.

—Vai acontecer. –ela falou temerosa. –Vai acontecer tudo.

—Belle?

—Olha, para resumir a história, eu namorava com o meu melhor amigo –

—Mas eu não sou seu melhor amigo?

—Evgeni. Eu tinha, tipo, quinze anos. O que importa é que a gente namorou e foi muito bom e todo mundo achava que a gente ia ficar juntos pra sempre. Eu também achava. Mas... –ela forçou sua voz a estabilizar. –Era uma cidade pequena e eu sonhava alto. Ele não queria ir embora e eu não queria ficar.

—Foi só isso?

Belle quis chorar, se lembrando do que aconteceu naquela noite, na noite em que tudo acabou. Ela e Pedro choraram, o resto do encontro deles há tempo esquecido, um anel de noivado que continuou na mão dele. Pedro não quis nem olhar pra ela quando ela foi embora, o coração na mão.

—Ele me pediu em casamento e eu disse não. –ela sussurrou. –Eu... Eu ia me mudar pra São Paulo, tinha conseguido duas grandes apresentações lá, uma delas me deu minha vaga na Ópera. Não ia dar certo. Ele tinha a mãe dele e eu... Eu precisava voar. Um ano depois ele se casou com outra menina. Parece que agora ele é um grande homem de família.

Evgeni a segurou durante seu pequeno conto, pequenas palavras não representando o relacionamento que os dois tiveram. Foram anos de pequenos toques e grandes olhares, de ansiarem para o outro fazer alguma coisa, de finalmente se beijarem pela primeira vez, do primeiro jantar com os pais para oficializarem, de pularem janelas à meia noite para se verem. De se entregarem um para o outro de corpo e alma. Ele foi seu primeiro amor.

“Casa comigo, Belle?”

Quando soube que Pedro casou com Analícia, depois de tão pouco tempo, foi uma facada em seu pobre coração. Parecia que não tinha significado nada para ele. Ela chorou a noite inteira, Pablo lhe dando pequenas batidas nas costas em apoio. E foi com Analícia, que ficou sempre rodeando e ele sempre prometia que ela era só uma amiga.

—Eu sinto muito, bailarina. –ele falou, simpatia em suas expressões. –Vocês eram amigos?

—Ele era meu melhor amigo. E meu namorado. Perdi os dois de uma vez.

—Não. Ele perdeu você, uma mulher incrível, talentosa e independente. Você se livrou de alguém que não ia aguentar te ter do lado. Você é mais que a esposa de alguém, Belle, você é o orgulho do Brasil, você é Odette, você é uma das melhores bailarinas do Mariinski. –ele a confortou. –O que tem ele?

—Mel quer reunir a antiga turma, todo mundo. E eu não o vejo tem mais de uma década.

—Isso é mais um motivo pra ir, garota! Mostra pra ele o que ele perdeu, mostra que você está incrível sem ele, cabeça erguida. Não vai deixar esse traste te separar dos seus amigos. E você precisa de férias, bailarina.

—Por que todo mundo fala isso?

—Férias que não incluam uma noite de sexo e muita bebida. –ele acrescentou.

—Você acha que eu devia ir? –ela o olhou de canto de olho, seus olhinhos escuros brilhando.

—Eu tenho certeza. Você vai mostrar pra ele que não está nem lembrando que ele existe.

Belle engoliu em seco, se perguntando se conseguiria fazer isso. Era difícil esquecer que Pedro existia, quase impossível. Ela não passava os dias pensando nele, pelo contrário, tentava pensar o menos possível, mas esquecer completamente? Não. Ela amou ele. Pode ter acabado daquela maneira, mas cada dia que passaram juntos valeu a pena. Eles tinham valido a pena.

Será que do outro lado do mundo Pedro também estava surtando com isso?

(***)

A noite estava fria, mas a neblina tinha sumido e a ventania tinha diminuído, permitindo que os sete se reunissem no Lago, usando roupas de banho. Era um daqueles dias, onde um do grupo tinha tido algum problema e tudo que eles queriam era relaxar e esquecer os problemas. Henrique estava trabalhando e dessa vez ele conseguiu pagar as bebidas sem que nenhum deles precisasse roubar as garrafas escondidos dos pais, um alívio já que nesse nível eles iriam acabar sendo pegos.

Era Mel e Henrique, para variar. Cristina estava fazendo vista grossa e os dois se sentiam sufocados. Afogando. Resistindo.

—Eu aposto que você não consegue virar essa. –Pedro desafiou enquanto passava a garrafa para a namorada.

Belle riu, jogando água nele de onde estava no Lago. A morena achava graça, seu biquíni colando no corpo e ela aproveitando do frescor da água, conseguindo fazer briga de galo subindo em Pablo.

—O que eu vou ganhar? –ela retrucou.

—Podemos pensar em alguma coisa. –ele respondeu enquanto ela chegava até ele, passando os braços em sua cintura e a trazendo pra si.

Belle riu, virando a garrafa com pouca dificuldade. Ela aprendeu a beber com o namorado, que também era difícil de embebedar. Geralmente era trabalho dos dois e de Henrique impedir que os outros ficassem muito bêbados.

Todos os outros cinco estava na água, Leo de sunga cinza ajudando Mel a se erguer enquanto Henrique ajudava Emily, as duas brincando e com biquínis combinando em tons de verde com babados. Henrique e Pablo eram os únicos que usavam shorts em favor da decência. Pablo lamentou a falta de Dete, mas ela não quis vir e continuou dormindo. Pobre Leo. Aliás, pobre Leo, Emily e Pablo, que foram obrigados a ficar de vela. O moreno aproveitou a distração de Pedro e Belle para roubá-la um instante, a jogando no lago com ele.

—Pablo! –Pedro reclamou.

—Parem de namorar e brinquem um pouco! –ele exclamou. –E eu preciso preservar a pureza da minha irmã!

Belle bateu nele por implicância, mas Pedro ficou vermelho na hora. Pablo não queria nem saber o que esses dois já fizeram, decidiu. Sua pobre mente não iria aguentar.

Era de se esperar que descobrir que sua mãe não era sua mãe fosse difícil para Pablo, mas ele não ligou muito. Maria era incrível e ele a adorava, Belle sempre foi sua irmã de criação e acabou que estava tudo dando certo. Seu Otávio estava surpreso e Belle parecia estar com dificuldades para considerar Seu Vinicius seu pai, mas ia ficar tudo bem. Ele certamente adorava poder oficialmente chamar Belle de sua irmã. O que ele não gostava era de ter que dar as suas duas irmãs para Pedro e Leo. Que absurdo. Vinicius implicava bastante com Olavo por isso, o mandando colocar goleira em seus garotos, eles estavam levando suas meninas!

—Eu queria ficar aqui pra sempre. –Mel suspirou, se agarrando a Henrique. –É uma calmaria.

—Imagina, só a gente numa casa de praia. O mar aberto, as ondas. –Leo suspirou. –Seria perfeito.

—Quem sabe a gente não consegue alguma coisa assim depois da formatura? –Pablo pensou alto. –Churrasco toda semana.

—Freezer cheio. –Henrique complementou.

—Sem adultos. –foi a ideia de Emily.

—Poder fazer o que quiser e ir pra onde quiser. –Belle adicionou com um ar sonhador, Pedro não demorando a se juntar a ela na água.

—Sem ninguém pra encher o saco. –Pedro falou. –Só nós.

—Só nós. –Belle ecoou, encarando Pedro com malícia no olhar. –E o que a gente faria com todo esse tempo?

Pedro riu, a empurrando na água para que ela sentisse o gosto e a puxando com precisão para que ela voltasse grudada ao seu peito. Enquanto ela o olhava com raiva por ter engolido água, Pedro a olhou com tanto amor que Belle dispensou a bronca. Ele a beijou levemente, ignorando a plateia.

—Posso pensar em algumas coisas. –ele provocou.

—NÃO PODE NÃO! –Pablo gritou, jogando água nele. –Pedro, seu cafajeste!

—Ainda bem que eu e Dete estamos esperando o casamento. –Leo brincou. –Pablo, você está ferrado.

Todos riram, se abraçando para ver a Lua subindo no céu, o vento movimento as árvores e a água. Pedro a segurou com força, sem querer largar. Henrique jogou Mel em seus ombros, ela gargalhando enquanto os outros se ocupavam com as bebidas. Sim. Estava tudo perfeito.

(***)

—Você vai voltar em uma semana? –Analícia repetiu pela milionésima vez, cruzando os braços, infeliz.

Pedro odiava a deixar chateada, ela acabava descontando nos outros e sendo mais rígida com as crianças. Eles tiveram uma discussão sobre Pedro ir ou não, mas ele já tinha falado para Pablo que ia e só faltava ele concordar –ele não tinha a coragem de ser o único a furar, sem falar que ele não gostava de Analícia mandando em sua vida. Tinha um limite. Analícia estava sendo irracional e ele não gostava quando ela duvidava de sua fidelidade.

—Sim, Analícia. Prometo. –ele tentou sorrir para ela, reconfortante. –E vou te mandar várias fotos.

—Você vai me largar aqui.... –ela fez mimo, fazendo cara de choro.

Pedro suspirou, passando as mãos nos cabelos. –Você vai ficar bem. Prometo que te compenso ano que vem. Podemos ir com as crianças para a praia.

—Você promete?

—Prometo. –ele a abraçou, as malas prontas.

—Pedro, eu amo você. –ela repetiu, um certo desespero no olhar. –Você me ama também, não é?

—É lógico. –ele concordou imediatamente. –Analícia, não vai rolar nada do que você está pensando. Eu me casei com você.

—Mas ela vai estar lá. –ela sibilou. –Eu não confio nela.

—Você tem que confiar em mim. –ele a cortou.

Analícia suspirou, perdendo a batalha. Ela passou dias assim, amuada, desgostosa, dando más respostas a todo mundo. Tentou de todo jeito convencer Pedro a não ir, sem sucesso. Jasmine aprovou a ideia imediatamente, falando sobre como Pedro ia se divertir e como ele iria adorar se reencontrar com seus amigos, que morria de saudade de Pablo. Analícia não queria deixá-lo ir, mas teve que engolir suas reclamações. Pedro foi categórico com poucas coisas na vida –os padrinhos de seu casamento e de seus filhos, todos ele que escolheu, alguns pontos na criação das crianças e isso.

Liza e Miguel apareceram na porta com pequenos desenhos para que seu pai entregasse para o tio Leo e o tio Pablo, que eles não viam fazia um tempo. Miguel e Liza o abraçaram, desejos para que ele tirasse muitas fotos e que aproveitasse. Pedro riu, abraçando os dois com força e prometendo levá-los lá se gostasse do lugar. Miguel e Liza estavam completamente despreocupados e provavelmente animados por uma semana sem o pai. A vovó os deixaria fazer qualquer coisa!

Se despediu de sua mãe e de Berenice em seguida. Pedro arou todos os campos e a colheita das plantações restantes ia demorar, então sua mãe poderia ficar tranquila. Pedro deixou tudo pronto. Abraçou Berenice, dizendo que fez os meninos prometerem serem bonzinhos enquanto ele estivesse fora. A mulher riu e pediu que ele aproveitasse.

—Obrigado, Jumenta Voadora. –ele riu, nunca esquecendo o apelido da sogra.

Uma buzina atrapalhou o momento, sem dúvida de Mel e Henrique depois de deixar a filha com Dona Rosa para a semana. Pedro se despediu mais uma vez de todos, abraçou os filhos bem forte e recolheu as malas. Analícia o acompanhou até o portão, Henrique aparecendo pela janela de óculos escuros e um sorriso satisfeito.

—Bom dia, Analícia! –ele cumprimentou, Mel gritando o mesmo de dentro do carro.

Analícia mexeu a boca, insatisfeita. –Bom dia.

—Vamos, Pedro! –o mais velho gritou.

Pedro suspirou, olhando pra ela. –Eu te amo.

—Também te amo. –ela falou, o abraçando. –A... Gente se vê em uma semana, eu acho.

—Eu vou te ligar todos os dias. Até. –ele a beijou, logo saindo e entrando no carro.

—Até... –ela sussurrou, vendo o carro sumir no horizonte, a preocupação enchendo seu coração.

Pedro suspirou ao ver a poeira subindo e a casa ficando ao longe, logo nada mais que um ponto de terra no horizonte. Às vezes Analícia o fazia se sentir culpado simplesmente por não querer colar nela como ela gostava de colar nele.

—Pedro, é tão bom te ver! –Mel comemorou, sua cabeça aparecendo entre os dois bancos da frente com um par de óculos escuros e os cabelos presos num rabo de cavalo. –Está animado?

Pedro pausou. Mel era a responsável e a centrada do grupo, sendo incrivelmente difícil mentir para ela. –Nervoso.

—Não fique. –ela riu. –Está tudo acertado! Vamos passar para comprar a comida na cidade mais próxima da praia, só o suficiente pra nós. Quero experimentar os restaurantes!

—Ela só fala em comida. –Henrique brincou, os olhos nunca saindo da estrada. –Está pensando em bobó de camarão desde que saímos de São Paulo.

—Como anda a vida em São Paulo, falando nisso? E Mharessa? –Pedro indagou, se ajeitando no assento.

—Tudo indo bem! Aliás, muito bem. Os negócios estão em alta, o que é bom. A crise de 2008 foi bem difícil pra todo mundo, mas estamos seguindo firme. –Mel o respondeu antes que Henrique pudesse adicionar qualquer coisa. –E Mharessa está crescendo bem, vai pra escolinha ano que vem, tem muitos amigos e é uma bolinha de energia.

—Vocês precisam trazê-la mais pra Sococó da Ema. Soube que é a melhor cidade pra crianças.

Os dois adultos riram. –Definitivamente foi pra gente. O Dia das Bruxas era sem comparação.

—É dia da Jumenta Voadora agora, em homenagem à Berenice. –Pedro contou. –Vocês sabem disso. Nos vestimos de cavalinhos juntos, lembra?

—Estava mais pra cavalão. –Henrique comentou. –E justo eu tinha que ser o rabo.

—Eu era a cabeça. –Mel comemorou. –E parando pra pensar nisso estou extremamente envergonhada.

—Foi ideia do Leo. –Pedro gemeu. –Não acredito que topamos. Foi uma ideia do Leo.

Mel e Henrique gargalharam, como se também não tivessem feito parte do Projeto Cavalinho de Sococó da Ema.

(***)

A primeira coisa que Pedro pensou ao rever Emily foi: Uau. A mulher estava alta agora, rosto quadrado com um queixo forte, ainda pequenas sardas sob os olhos, os cabelos ruivos num rabo de cavalo alto que acompanhava o balançar do vento, uma saia verde escura longa de cintura apertada com um biquíni tomara-que-caia branco e um colar dourado, todo o corpo trincado. A ruiva sorria como se tivesse conquistado o mundo e o abraçou como se estivesse tentando quebrá-lo. Pedro nem sabia quanta saudade sentia de Emily até realmente vê-la, seu coração parando. Era como ver a sua avó todo Natal, uma animação e uma saudade que ele nem sabia que tinha explodindo, se lembrando do fato de que ela não estava mais tão perto dele quanto ele imaginava.

Ver Leo então... Assim que pegou um vislumbre de Leo na varanda ele praticamente pulou nele, a felicidade de ver seu irmão incontrolável. Leo fez alguns barulhos estranhos que soavam como gritos de socorro enquanto ele o juntava ao chão, praticamente, mas o soltou com risadas. Leo teve que tossir, tentando recuperar o ar, mas parecia igualmente emocionado ao ver Pedro. Era tão estranho, pensar na época em que eles se viam todos os dias, agora precisavam marcar um encontro pra isso.

—Pedroca! –comemorou. –Achei que você não viria!

—A estrada estava uma droga! –Mel reclamou, num short e top vermelho enquanto vinha descarregando as malas e as comidas. Henrique vinha atrás com um caminhão de coisas, usando uma camiseta estampadas e shorts de praia. –Leozinho, me dá um abraço!

E foi uma grande celebração de abraços e cumprimentos enquanto eles viam os quatro quartos amplos com três banheiros, sala, TV, varanda, churrasqueira e cozinha, com uma rede incluída. Os quartos não estavam tão vazios quanto Pedro imaginou que estariam, algumas pequenas decorações do dono permaneceram na casa, o que indicava que ou a casa não era muito alugada ou que eles vinham pra cá com frequência.

O quarto de casal, a única suíte, ficaria pra Mel e Henrique. Ficariam Leo e Pedro no quarto com duas camas, Emily e Belle e Pablo ficaria sozinho –pelo menos assim estavam combinando. Talvez os integrantes que ainda faltavam não gostassem do arranjo ou talvez tivessem trazido visitas.

Não. Isso seria idiotice. Mel falou que era só antiga turma.

Conforme a tarde aparecia, Pedro e Leo separaram algumas cadeiras na praia para esperar os outros enquanto pegavam um sol e bebiam duas latinhas.

—E aí bateram no vidro do carro e falaram ‘Mete o pé’ e a gente obedeceu! Meti a ré e nem olhei pra trás! –Leo contava, as mãos fazendo os sinais. Os rapazes nem perceberam quando Henrique se juntou a eles. –Fala, vara pau.

—Jesus, Leo. –Henrique revirou os olhos, também com uma cadeira para aproveitar a vista da praia praticamente deserta. Apenas alguns surfistas aproveitavam as ondas e poucos turistas sentavam em toalhas, provavelmente pessoas que moravam perto, criando uma paisagem impressionante.

Pedro respirou fundo, sentindo o cheiro do mar, a areia nos pés. Era relaxante de verdade, mais do que Pedro imaginou. Nenhuma preocupação. Nenhum sinal do que geralmente ele estaria fazendo: trabalhando na fazenda, ajudando sua mãe, vendendo seus produtos, cuidando das crianças, indo de lá pra cá.  A única coisa que ele tinha que fazer era relaxar, tanto que deixou os dois conversando e nem ouviu o barulho de um carro se aproximando.

—Você não vai crescer nunca? –Henrique continuou.

—Eu estou bem crescido. Mais do que eu queria, até. –Leo respondeu. –Sinto falta de dormir até meio dia.

—Leo, você nunca dormiu até meio dia. Mãe nos mataria. No mínimo nos faria comer os lençóis. –Pedro rebateu.

—Mesmo assim, isso não quer dizer que o sentimento não....

Leo foi pausando, sua voz diminuindo até que ele pausou por completo. Pedro estranhou e quando olhou para Leo ele olhava para algum ponto em suas costas, Henrique e Leo completamente pausados e encarando. Pedro franziu as sobrancelhas.

—Pedro, não olhe agora, mas –Henrique começou, mas ele nem chegou na metade da frase antes de Pedro virar o pescoço.

Seu cérebro apagou as luzes, fechou as portas, se virou para ele e disse “Te cuida aí, rapaz!”.

A mulher que desceu de um carro preto tinha cabelos curtos pretos repicados ao redor de um rosto delicado com olhos azuis escuros, quase roxos, com pele branca pálida e delicada. Usava um vestido longo num bege rosado de alcinhas que basicamente mostrava o espaço entre os seios com as costas nuas, se apertando na cintura e se soltando com uma fenda que se abria quando ela andava. Ao pisar na areia, a mulher levantou o vestido, mostrando saltos dourados. Ela olhou para o espaço aberto durante um momento, parecendo ignorar as encaradas que todos davam para ela.

Pedro odiava poder contar que um dos surfistas caiu de sua prancha quando ela saiu do carro.

Seus olhos varreram a praia até encontrar as três figuras sentadas, os pescoços quase deslocando, até que ela abriu um sorriso em reconhecimento, soltando um lado do vestido para acenar.

Privet! –cumprimentou em russo. –Vão ficar aí parados ou o quê?

Pablo saiu do lado do motorista, uma roupa mais normal: camiseta e shorts, até de chinelos. Ele parecia extremamente consciente de que a irmã parecia uma supermodelo, aliás, ele sempre odiava sair com ela em Paris por causa disso. A sensação das pessoas olhando para ela, para ele e pensando “Ela tá com esse cara?”.

Abençoada seja Cécile, que saía com ele de pijamas. Ele amava sua esposa.

Sorriu assim que viu os rapazes, seu peito se enchendo de felicidade ao ter a chance de rever os amigos, apesar do cansaço que sentia. Foi um voo longo e um trajeto de carro mais cansativo ainda, mas estava aliviado de ver a praia e os amigos. O cenário era sensacional.

—Lindo, não falei? –ele falou com Belle, ela fechando a porta. Os meninos pareceram finalmente acordados. –Tudo bem? –ele indagou ao vê-la calada.

—Lógico. –ela retrucou sem nem pensar, indo direto para o porta-malas pegar as malas e as sacolas que trouxeram com carne da cidade com algumas bebidas e refrigerantes. –Estou maravilhosa, chéri.

Pablo nem discutiu, aproveitando que os rapazes se aproximaram o suficiente para que ele puxasse Pedro para um abraço, uma saudade imensa de seu melhor amigo e irmão.

—É tão bom ver vocês. –Pablo comemorou, dando tapinhas em Pedro enquanto Belle abraçava Henrique e Leo. –Estava começando a achar que ia rolar só na próxima encarnação.

—Não seja dramático, eu iria pro casamento da Emily, tá? –Pedro replicou.

—Ah, no da Emily você iria?

—Pablo! –Pedro reclamou. –Você prometeu que ia parar com isso!

—Você prometeu que iria no meu casamento.

Dorogoy, acho que todos nós já estamos cansados dessa história. –Belle interrompeu, ela e os meninos apenas observando a interação entre eles. –E eu definitivamente vou precisar de ajuda com a bagagem.

Henrique e Leo se prontificaram a ajudá-la, nem que seja para sair imediatamente daquele clima, e Pablo também foi com ele, carregando uma das trezentas malas de Belle em comparação com as duas pequenas dele. Belle e Pedro se encararam, o peso de antigas mágoas e corações partidos pesando os ombros de ambos. Mesmo assim ela ergueu a mão, um sorriso educado no rosto.

—Pedro. –ela começou.

Pedro olhou sua mão durante dois segundos antes de puxá-la para um abraço forte, quase a tirando do chão e quase a fazendo rir. Ela se segurou a um sorriso, o abraçando de volta, um pontinho de esperança se prendendo ao seu coração como um ponto num machucado. Algo para consertar a dor.

—Faz tempo. –ele comentou. –Você... está ótima.

Era incrível que ele ainda possuísse a habilidade de fazê-la corar. –Obrigada. Você também.

E ele estava. Estava moreno, a pele queimada de sol, os cabelos loiros suaves, o corpo trabalhado pelo esforço físico. Belle queria babar, queria tocar os ombros que pareciam maiores que da última vez que viu, queria ajeitar o cabelo dele. Mas se impediu de fazer tudo isso. Foda-se Evgeni, esse homem era um deus.

Você foi embora, ela tentou dizer para si.

Mesmo assim, quando olhava para Pedro, olhava de verdade, ela ainda conseguia ver o adolescente com o qual ela namorou, o sorriso brilhante dele, a textura de seus cabelos e de seu corpo, a figura dele num joelho só com a luz da Lua o iluminando enquanto ele fazia uma única pergunta: “Casa comigo, Belle?”

—Eu vou... pegar as últimas malas. Separamos um quarto para você e Emily. –Pedro contou, fazendo o favor de levar as últimas sacolas enquanto Belle pegava o resto das malas e fechava o porta malas do carro alugado. –Ótimo carro.

—Alugado. –ela respondeu. –Foram longos voos.

—Você está morando na Rússia, não é?

—Sim. –ela suspirou. –Um voo de São Petersburgo pra Paris e outro para São Paulo. Felizmente eu consegui fazer umas comprinhas de praia antes de pegarmos a estrada.

—Ah, sim. –Pedro concordou, vendo Belle subir os pequenos degraus até a casa, os sons de Mel e Emily conversando na cozinha preenchendo o ambiente.

Pedro teve o prazer de ver a reação das três meninas ao se reencontrarem. Os olhos de Belle brilharam ao ver as meninas conversando, ainda desatentas.

Chéris! –ela chamou num francês acentuado. -Je suis de retour!

Mel e Emily pausaram no meio de uma frase, olhando para Belle num momento sem nenhuma expressão além de surpresa. Aí ela correram de suas cadeiras e pularam na menina com um sorriso, as três virando panqueca no chão entre risadas e reclamações.

—Tantos anos, Bailarina, eu não acredito! –Emily brigava.

—Oras, quem vê pensa que não nos vemos desde o colegial. –Belle reclamou enquanto se revirava sobre as outras duas.

—É a mesma sensação. –Mel dramatiza. –Não é a mesma coisa sem você.

Elas finalmente se levantam, deixando Belle respirar em paz. –Fico feliz.

—E você está muito gostosa. –Emily comenta. –Até parece que os ares russos lhe fizeram bem.

—EMILY!

—Agradecida. –Belle revira os olhos. –Você também está músculo puro.

A ruiva riu, nem um pouco temerosa por exibir o corpo que tanto trabalhou para ter. Ela até rodopiou para Belle em comemoração, seu anel brilhando na luz.

—E esse anel? –Belle questionou. –Quando é que sai o casamento?

—Ih, só Deus sabe. Quando tiver menos trabalho. E eu moro no Rio, então... –Emily balançou os ombros. –Mas você vai ser uma das madrinhas, relaxa.

—Eu estava tão ansiosa pra essa semana! –Mel interrompe. –Vamos poder fazer tanta coisa!

—Certamente. –Belle concordou. –Preciso guardar as minhas malas antes e colocar um biquíni. Depois podemos relaxar na praia pelo resto da tarde.

—Não quer dormir um pouco?

—Ah, querida, eu vou. Cinco horas eu já estarei na cama, por isso preciso aproveitar meu tempo acordada. –ela riu. –Eu passei por tantos fuso horários nas últimas horas que estou até confusa.

Belle saiu, as meninas sorrindo bobas com o avanço da situação. Pela primeira vez em anos, praticamente desde o casamento de Mel, estavam todos reunidos de novo. Parecia... Estranhamente feliz. Mel se perguntou se essa é a sensação que as avós sentem no Natal, quando toda a família está reunida em casa. É uma tranquilidade, uma segurança e uma esperança.

Talvez.

(***)

—Eu não vou aguentar. –Pedro surtava, andando de um lado para o outro na pequena salinha no fundo da Igreja onde ele podia se arrumar e se acalmar antes de Analícia chegar. –O que eu estou fazendo?

Leo e Pablo se entreolharam, também se perguntando a mesma coisa. O terno apertava o colarinho dos dois, especialmente nesse calor, e ajudar Pedro a se acalmar naquela salinha também não ajudava na temperatura. Pedro andava em círculos, nervoso, parecendo acordar. Ele controlava as mãos para que elas não bagunçassem o cabelo, que levou tempo para fazer, mas Leo via as marcas de lua nas palmas do irmão.

—Pedro. –Leo chamou. –Isso é uma ótima pergunta. O que você acha que está fazendo?

Pedro respirou fundo. –Eu vou me casar com Analícia hoje.

Os dois outros homens o encararam sem falar nada durante um instante, apenas analisando a situação.

—E você vai fazer isso por quê?

Pedro suspirou, se abraçando. –Eu não sei.

—Pedro. Você ama Analícia? –Pablo indagou.

—Ainda dá tempo de fugir. –Leo falou.

—Eu não vou fugir do meu casamento! –Pedro exclamou. –E.. Eu... Eu acho que sim.

—Pedro, você não pode se casar achando que ama Analícia. –Pablo rebateu, se aproximando de Pedro para tentar colocar juízo em sua cabeça. –Pedro... Analícia ama você. Não seria justo com ela.

Pedro o olhou em desespero, sem nenhuma ideia do que fazer e pedindo ajuda. O problema é que Pedro pediu essa ajuda muito tarde e agora não dava mais pra simplesmente desistir. Pablo apertou os ombros do mais velho, o olhando firme.

—Se você fizer isso, Pedro, é adeus Belle. –ele avisou. –Você vai ser um homem casado. Precisa ter certeza de que você quer assumir esse relacionamento.

Pedro fechou os olhos, processando as palavras. Era claramente doloroso mencionar Belle para ele, uma grande cicatriz no peito. Ele se lembrava de cada detalhe daquela noite, a última vez que a viu, a última vez que beijou a mulher de sua vida. Ela tinha planejado um piquenique no Lago, só os dois, como geralmente faziam, estava radiante de felicidade, dizendo ter uma notícia grande para contar.

Pedro estava planejando pedi-la em casamento há semanas sem achar o tempo ou como fazer. Belle nunca expressou nenhum desejo de subir o nível do relacionamento deles, por mais que Pedro tivesse feito alguns comentários sobre ‘Seu irmão seria um ótimo padrinho’ e ‘Sabe que no meu coração já estamos casados. Eu só tenho olhos pra você’. Mesmo assim, ela estava tão feliz que Pedro decidiu que aquele seria o melhor momento. O anel era uma relíquia de família, um presente de sua avó quando ele mencionou ter encontrado a pessoa certa. Ela pegou as próprias alianças, dela e de seu falecido avô, e deu para ele. Eram todas de ouro verdadeiro, joias caras que eles levaram a vida para pagar. Eram dignas de Belle.

Quando ela apareceu, seu ar foi roubado. Uma calça preta com um top vermelho, o cabelo curto solto emoldurando seu rosto e uma cesta de piquenique nos braços. Ela gostava de fazer os lanches deles, sendo bem mais rígida com alimentação do que ele. Essa era a mulher mais linda que Pedro já viu.

“Chegou cedo!”, ela comentou sorrindo. Um sorriso que sempre tiraria as palavras de Pedro. “Como vamos comemorar, eu consegui um presente!”

Ela tirou uma garrafa de vinho da cesta, o mostrando orgulhosa. Pedro levantou as sobrancelhas em surpresa, será que ela já sabia de seus planos?

“O que vamos comemorar?”

“Oh, você nem vai acreditar!” ela bateu palmas. “Eu consegui duas apresentações grandes em São Paulo, Pedro. Se eu me sair bem, eu vou poder ser contratada pela companhia de balé de lá. Vamos poder nos mudar pra São Paulo!”

O mundo de Pedro parou. “Se mudar pra São Paulo?”

“É!” ela sorriu, feliz. Pedro não entendia a felicidade dela. Como ela poderia estar feliz.

“Você quer ir embora? Mas... E a nossa vida aqui?”

“Vamos poder construir uma em São Paulo, Pedro. Você pode fazer faculdade ou então vai ter um milhão de oportunidades de emprego. Isso é uma chance de ouro, Pedro.”

“Não é não! Nossa vida é aqui! Meus pais, a fazenda... Não posso largar tudo aqui, Belle, Leo desapareceu com Dete, é minha obrigação ficar. Não era assim que eu queria fazer isso.” Ele suspirou, triste.

“Fazer o quê?”

Estavam os dois sentados, mas seria assim mesmo. Pedro respirou fundo, sentindo os anéis no bolso o puxando para o chão, de repente eles pesavam uma tonelada. Ele se posicionou num joelho só e viu Belle empalidecer.

“Pedro, o que você está fazendo?”

“Belle.” Ele começou, suando frio. “Belle, desde a primeira vez que eu vi você eu soube que nossas vidas estavam entrelaçadas. Você é minha namorada, mas mais que isso, é minha melhor amiga, e vem cuidando de mim desde que éramos crianças. Eu estive pensando nisso já faz algum tempo, mas... Desde aquela noite, Belle, eu percebi que... Que nós somos feitos um para o outro. Nós nos entregamos, Belle. Estava na hora de oficializar.” Ele pausou. “Casa comigo, Belle?”

Um minuto. Dois. Nada. Belle não falou nada. Uma lágrima teimosa caiu de seu olho esquerdo, ela nem percebendo.

“Belle?” ele perguntou preocupado.

“Nós temos dezoito anos.” Ela falou. “Dezoito anos. Pedro, nós acabamos de terminar a escola, temos a vida inteira pela frente... Você quer se casar agora?”

“E você não?” Pedro retrucou, confuso. “Belle, naquela noite-”

“Só porque perdemos a virgindade não significa que precisamos ir direto pra Igreja, Pedro, não estamos no século passado. Fizemos isso por amor. Eu... Eu não consigo me casar agora, Pedro.”

“O que foi?” ele pediu, sem entender. Não. Sem querer entender.

“Eu não posso, Pedro. Não posso. Eu tenho dezoito anos. Dezoito. Você quer me pôr num vestido de noiva e me colocar na Igreja, mas eu não posso. Casamento é um compromisso pra vida, não é qualquer coisa. Precisamos tomar essa decisão com cuidado.” Ela pausa.

Pedro fechou os punhos, o anel frio em sua mão agora que Belle tinha esmagado suas esperanças.

“Você não vai querer se casar nunca.” Ele apertou os olhos. “Você só pensa em balé, só pensa em você. Eu estou tentando tomar uma decisão pela gente, Belle, pelo nosso futuro.”

“E como você imagina esse futuro, Pedro? Nós com três filhos morando na fazenda, eu trabalhando na fazenda e cuidando dos filhos enquanto você trabalha pra fora? A gente passando os feriados na vovó? Se Deus quiser talvez dê pra ir pra praia em Janeiro com as crianças, não é?!”

“E o que você quer?” Ele rebate irritado.

“Eu queria que você me apoiasse, Pedro! Eu tenho um talento gigante e você parece achar que isso é um problema, que eu não posso me focar na minha carreira porque você queria outras coisas! Eu não vou ser essa esposa exemplar que você quer, Pedro!” ela chora. “Droga, Pedro, eu me entreguei pra você!”

A essa altura os dois choravam de raiva, pequenas lágrimas de estresse caindo dos olhos de ambos. Parecia um término, tinha a sensação de término. Mesmo assim, o orgulho de Pedro estava ferido. Belle não queria se casar com ele. Ele abaixou a cabeça, olhando para o Lago e a Lua no céu. A Lua sempre foi a principal testemunha do relacionamento deles e era apropriado que ela visse o final da história deles.

“Eu vou me mudar pra São Paulo com ou sem você, e Pablo vai vir também.” Belle anunciou, um brilho forte nos olhos azuis. “Eu não vou abrir mão do balé por homem nenhum. É a minha vida.”

“Esse é o problema. É a SUA vida. Mas tudo bem, Belle, parece que nunca houve espaço pra mim nessa sua vida.”

Ela saiu com lágrimas nos olhos e ele chorou por horas, observando a Lua. No dia seguinte, Belle pegou um ônibus para São Paulo.

Pedro não foi até a rodoviária.

Talvez devesse ter ido.

—Eu estou pronto pra esse compromisso tem muito tempo. –ele fala, voltando ao tempo. Tinha um motivo para ele estar aqui, e era que Belle quebrou seu coração e sobrou para Analícia juntar os pedaços. Ele sempre soube da paixonite da loira, mas Belle era a dona de sua vida. Não era mais. –E eu preciso de alguém que também esteja pronta pra entrar nessa comigo.

Leo suspirou, sem clima para discutir. –Eu espero que você saiba o que está fazendo.

Estou seguindo em frente, ele pensou. Ou pelo menos era o que ele achava.

No altar, quando Analícia tirou o véu e Pedro pode olhar sua esposa nos olhos, ele finalmente percebeu o que havia feito. Analícia estava linda, sorria radiante, mas seu sorriso não fazia Pedro perder o ar. Suas mãos não pareciam mexer em sua alma. Seus olhos não estavam no tom azul arroxeado que deveriam ser.

Era tudo um erro. Mesmo assim, quando chegou a hora, ele pronunciou o “Eu aceito”. Desejou que Belle aparecesse na Igreja e impedisse o casamento, que o abraçasse e prometesse que eles iriam ficar juntos pra sempre. Mas ela não veio. Estava em Paris, provavelmente nem lembrando que Pedro existia.

O pensamento doía.

(***)

—Eu estava com areia em todas as partes do corpo. –Belle reclamou assim que saiu do banho, um moletom bem grande de pinguim cobrindo seu corpo até os joelhos, até mesmo meias de pinguim esquentando seus pés. Ela usava uma toalha rosa para secar os cabelos pingando. –Virei um bife à milanesa.

Os rapazes se juntaram na varanda para assar um pouco da carne, Emily e Mel fazendo arroz e uma salada para acompanhar e poder ser considerado uma janta. Leo trouxe um baralho de casa e os adultos estavam jogando uma partida de Uno. Às vezes parecia que a única coisa que mudou neles foi o tamanho.

O primeiro dia deles na praia não teve muitas complicações. Eles nadaram no mar, conseguiram ir até longe na água, pularam de um penhasco, jogaram vôlei e futebol na praia e ainda pegaram o sol de final de tarde, ficando lá até escurecer e o mar ficar agitado. As ondas deram tantos caldos em Mel e Belle, as menores da turma, que Henrique falou em comprar uma coleira para a esposa para mantê-la por perto, o que resultou numa marca roxa em seu pescoço que estava ali até agora. Em casa, todos foram fazer a janta, mas Belle falou que estava cansada e foi direto tomar um banho.

—Falando em bife, a Belle já contou pra vocês da vez em que ela comeu uma travessa inteira de carne de pato achando que era carne de panela? –Pablo perguntou, todas as cabeças se virando pra ela.

—Pablo! –ela brigou. –Não foi minha culpa, o garçom trocou os pedidos.

—E o pior foi que a carne de pato era cara! –Pablo continuou. –Era coxa de pato com laranja e eu achei que a gente ia ter que lavar os pratos pra conseguir pagar.

—Foi durante nossas primeiras semanas em Paris. –ela sorriu, se lembrando da época. –A gente ficou perdido tantas vezes que decoramos as ruas na marra.

—Pelo menos vocês ficaram perdidos em Paris, imagina eu e Dete que nos perdemos na rodovia. –Leo replicou, comendo um pouco de carne entre as jogadas.

—O que vocês fizeram? –Mel indagou.

—Olhamos a bola de cristal. –Leo respondeu, fazendo todos pausarem.

—Ah, fala sério. –falaram todos juntos.

—O quê? –ele retrucou. –Olha, vocês estão com uma uruca danada, viu? Eu hein.

—Estamos compartilhando histórias agora? –Emily arqueou a sobrancelha. –Eu já contei da minha primeira vez que fui na casa do meu noivo?

—Eu conheço essa história! –Mel comemorou, já rindo enquanto Belle se servia e ia para junto da turma.

—Estava eu, linda e maravilhosa para conhecer a família do André, na época a gente já namorava sério fazia um tempo. Fui feliz e saltitante num vestido comportado preto com roxo, a Mel até me ajudou a escolher. Ele me buscou e fomos pra casa da mãe dele, né, ele falando que a mãe dele era super de boa, que o pai dele super apoiava e etc.... Quando a mãe dele abriu a porta e me viu ela falou “Amanda? Você não estava com o Júnior?”. Sabem por quê? –ela pausou, vendo os amigos pensarem. –Eu tinha ficado com um primo dele e ela viu.

—Primeira impressão perfeita. –Pablo comentou.

—Foi horrível. –Emily geme só de lembrar. –Eu nem sabia que eles eram primos!

—Tadinha. Todos nós temos histórias de sogras. Quando eu fui conhecer a minha eu estava tão nervoso que eu calcei sapatos diferentes. –Pablo contou. –O bom é que ela é super tranquila e achou graça.

—Eu não tenho nenhuma história, minha sogra me ama. –Pedro rebateu.

—É, mas a sua sogra é a Berenice, assim é mole. –Henrique revirou os olhos. –Se brincar ela puxa mais seu saco que o da Analícia. A minha sogra é a Cristina!

—E tem algum problema?

—Você quer dizer alguma coisa? –falaram Emily e Mel juntas, ofendidíssimas.

Henrique gaguejou um pedido de desculpas, percebendo que estava encrencado com a esposa e a cunhada. Mel deu um tapinha no ombro dele, irritada, e Henrique percebeu que provavelmente teria que se preparar pro sofá ou para dormir com Pablo.

—E você, Belle? –Leo se virou para Belle. –E a sua sogra?

—Sogra, que sogra? –ela piscou.

—Você não estava namorando com o loirinho do casamento da Mel?

—Christophe? –ela sorriu, achando graça. –Terminamos já faz um tempo, estou livre, leve e solta. Soltinha que nem arroz.

Pablo revirou os olhos pelos comentários da sua irmã, se lembrando do loiro com quem Belle namorou ainda na França. Ele era legal e educado, mas Pablo odiava as noites que ele passava com Belle, seus próprios ouvidos não foram feitos para esse tipo de coisa. Comparado a outros namorados, Christophe ainda fazia questão de acompanhar seus ensaios e apresentações, de levá-la pra jantar e de tentar conhecer a família dela. Acabou assim que ele quis algo maior.

—Mas ainda somos amigos. –a morena completou. –Relacionamentos vão e vêm, mas amigos são coisas que ficam.

Pedro tossiu por perto, desviando o olhar. Leo ignorou o irmão, parecendo feliz por ela. Leonardo sempre apoiou o relacionamento dos dois, mas foi a primeira pessoa a ficar do lado de Belle quando ela decidiu ir embora. Às vezes você precisa expandir os horizontes.

—Eu e a Emily vamos arrumar um namorado pra você amanhã. –Mel prometeu. –Um bem bonitinho pra você ter mais motivos pra voltar pro Brasil de vez em quando.

—Alguém quer mais cerveja? –Pedro se levantou de repente, não gostando do papo.

—Na verdade esse papo tá muito estranho pra mim, estou indo pra cama. –Belle se levantou também, um leve rubor em suas bochechas.

—Ah, Belle não vai não! –pediu Mel. –Pode ser um surfista!

—CALA A BOCA! –a morena gritou de dentro da casa, largando todos rindo de seu desconforto.

—Bom que o luau é amanhã. –Emily comentou. –Vai ter tempo pra ela aproveitar o surfista.

—Nem tem surfista. –Pedro brigou.

—Ah, Pedro, você quer um surfista? –Leo fez bico.

—Falando em namoradas, Pedro, meu Curtis vai nascer logo, precisamos apresentar a Liza pra ele. –Pablo provocou.

—Apresenta pra Mharessa. –Pedro revirou os olhos, mas Henrique fechou o semblante.

—Nem brinca com isso. –Henrique ameaçou.

—Tá criticando meu filho, vara pau?

—Pelo amor de Deus, Pablo, você não sabe se é um menino!

—AH, CHEGA! –Mel brigou. –Todo mundo pra cama que tá tarde!

—Mas, Mel... –os rapazes falaram juntos, lamentando.

—Cama, todo mundo! –ela brigou. –Quero todo mundo de pé amanhã cedo!

—Sim, senhora. –responderam todos.

—E Henrique, é melhor você mandar uma mensagem pra minha tia falando sobre como ela é especial e importante pra você se não quiser dormir com Pablo.

—Mas, Mel....

—Nem esquenta, Henrique, sou ótimo em conchinha.

—VOCÊS SÃO RIDÍCULOS. –gritou Belle de dentro da casa.

Dormiram todos com sorrisos nos rostos, apesar do cansaço nos ossos. Pedro foi pra cama se lembrando de como os seus trinta anos pararam de pensar em suas costas, sobre como ele se sentia com apenas dezessete de novo. Ser pai, ser adulto, ser marido, ele vinha carregando esses títulos nos ombros. Se reencontrar com os amigos era uma lembrança gostosa da época em que ele era apenas o Pedro.

Bons tempos.

 (***)

—Precisamos mesmo estar aqui? –Analícia resmungou, mal humorada.

Sua esposa usava um vestido longo preto com a saia rosada, o cabelo num coque trabalhado com um colar banhado em prata que foi Pedro quem deu a ela. Analícia estava bonita, destacando seus olhos azuis e lhe dando uma aparência angelical que Pedro gostava nela. Miguel estava andando aos pés deles, curioso com a enorme Igreja onde estavam e as flores vermelhas, rosas bem vivas, que estavam ao redor deles. O menor usava um terninho feito pela própria Dona Berenice para o evento.

—Lógico que precisamos. –Pedro rebateu, mexendo na cola de seu terno. –Sem reclamar, Analícia, é o casamento da Mel. Todos viemos.

São Paulo era uma grande cidade e era fácil de se perder. Eles conseguiram alugar um quarto de hotel para o três durante a noite e iriam embora no dia seguinte depois do almoço. Felizmente conseguiram um bom taxista, que sabia o caminho dentro da cidade e conseguiram chegar sem maiores problemas.

Mel tinha se superado na decoração, coroas de rosas vivas decorando os bancos, os lustres brilhando com um altar cheio de flores, lençóis brancos delimitando o caminho onde a noiva passaria, uma Igreja de tetos altos e azulejos brilhando. Pedro teve a sorte de chegar um pouco adiantado, mas encontrou Leo e Pablo sem muitos problemas.

Enquanto Pedro usava um terno escuro normal, Pablo estava todo diferente num terno azul com as calças negras, sapatos engraxados e o cabelo arrumado. Ele sorriu feliz ao ver o amigo, acenando. Leo também manteve as normas e usava um terno escuro com camisa branca, uma gravata borboleta para fazer a diferença.

—Boa tarde, Analícia. –Pablo cumprimentou, Leo fazendo o mesmo, mas logo eles se focaram em Miguel. –Como você está garotão?

—Olha só como você cresceu. –Leo adicionou, bagunçando o cabelo do pequeno. Pedro prendeu a língua pra não reclamar.

—Tô forte, tio Leo? –Miguel fez um muque, se mostrando.

—Demais da conta. –Pablo respondeu. –Tá lindo! Bom saber que você não puxou seu pai.

—Muito engraçado. –Pedro revirou os olhos, observando as outras pessoas se movimentarem, se sentando nos bancos. Algumas ele reconheceu, Cristina estava ali por perto, assim como Dona Rosa e Seu Matheus, outras sabia pelos comentários de Mel e Henrique, amigos de faculdade e outros colegas de trabalho que conheceram durante seu tempo aqui. –Onde estão as madrinhas?

—Emily está com a Mel para ajudar, mas Belle está por aí. –Pablo respondeu, Pedro engoliu em seco.

—Ótimo. –Analícia resmungou, emburrada.

—Está acompanhada, Analícia, pode relaxar. –Leo revirou os olhos, percebendo o humor de sua cunhada. –Ninguém vai tocar no seu marido.

Era um dia de celebração, mas Analícia demonstrava claramente que não desejava estar ali. Leo sempre se perguntou o que Pedro viu nela, mas agora que já estavam casados e com o pequeno Miguel havia poucas chances de Pedro acordar.

—Ela trouxe o namorado suíço. –Pablo continuou, um pouco de desgosto em seu olhar.

—Pelo lado positivo, Dete está chegando. Ela foi ao banheiro. –Leo sorriu apaixonado pensando em sua esposa. –Ainda bem que no meu casamento eu não tive que passar por esses perrengues.

—Casando na praia escondido de todos é mole, também. –Pedro revirou os olhos. –Nem chamou a gente pra ser seus padrinhos.

—Eu precisava de só duas testemunhas, ué. O padre e a Madame. –Leo retrucou. –Típico de Mel querer uma grande cerimônia.

—Ficou tão lindo... –Pablo rebateu. –Ela que cuidou de tudo com um pouco da ajuda de Cristina, não é pouca coisa.

Nesse momento Dete surgiu do lado de Leo, um vestido rosa de mangas longas e saia curta bastante rodada, os cabelos também presos num coque com alguns cachos emoldurando seu rosto. Ela sorriu para todos, feliz de estar ali. Dete sempre adorou casamentos. A mulher esteve presente para o seu próprio casamento, amarrada do lado de Leo.

—Oi pra todos vocês! –a pequena cumprimentou.

—Oi, Dete. –Pedro lhe respondeu no lugar de Analícia.

Da porta da Igreja entraram três figuras ao mesmo tempo, Emily na frente, com um vestido vermelho de alcinhas e decote em v, apertado na cintura e solto até o joelho, onde era mais curto na frente, os cabelos ruivos presos numa trança lateral. Pedro ficou surpreso ao vê-la tão bem, mesmo que ela tivesse comparecido ao seu casamento pouco tempo atrás.

E atrás de Emily, vinha Belle e um homem que Pedro não conhecia, no mesmo vestido que Emily, o mesmo tom vermelho. O mesmo vermelho que passava em sua boca, que era um coração no seu pescoço e uma joia no mesmo tom em sua orelha, os cabelos curtos soltos e os olhos delineados, chamando a atenção. Pedro não a via desde aquela noite, aquela fatídica noite. Ela cresceu, um corpo esguio, um sorriso brilhante que ainda tinha o poder de arrancar o ar de Pedro. O único problema era o homem do lado de Belle a abraçando pela cintura, um homem com o topo do cabelo pintado de loiro e a raiz castanha, sobrancelhas bem feitas, grandes olhos verdes e uma barbicha em seu rosto colocado num terno escuro com traços de vermelho.

Combinando com Belle. O despeitado.

As duas varreram a Igreja até os encontrarem. O sorriso de Belle morreu e ela caminhou com um semblante sério, apenas tentando um sorriso educado ao ver todos ali.

—Oi! –Emily sorriu sem esforço, abraçando todos. –Espero que estejam preparados, porque a Mel está chegando.

—Falamos com ela agora há pouco e ela já está no carro, deve chegar em poucos minutos. Vocês precisam chamar o Henrique para que todos possamos esperar no altar. –Belle falou, um sorriso falso. –E bom dia.

O homem do lado dela sorriu com a força de 200 watts, um sorriso brilhante que quase os compelia a sorrir também. Conforme todos encaravam o rapaz, Belle suspirou.

—Christophe, these are Pedro, Analícia, Leo, Dete and... –ela encarou o pequeno menino, sem saber seu nome.

—Miguel. –Pablo falou.

—Miguel. –ela continuou. –Pessoal, esse é o Christophe.

—Prazer em conhecer. –o homem tentou comunicar com um sotaque bastante pesado que Belle pareceu achar fofo.

—Agora que todos nos conhecemos, podemos ir pro altar? –ela pediu, mexendo um pé.

Pablo sorriu pelo desconforto dela, decidindo aliviar a barra para o pobre coração de sua irmã. Ele passou um braço pelos ombros dela e a puxou junto com Christophe.

—Esse é o caminho, querida irmã. –ele comentava enquanto a puxava e Belle reclamava que ele iria bagunçar seu cabelo.

Leo suspirou, ignorando a tensão. Emily parecia fazer o mesmo, mas era bom demais implicar para perder essa oportunidade.

—Aquele era o suíço? –Analícia questionou.

—É. –Emily balançou os ombros. –É um cara legal, só não fala muito bem português. Trata Belle como uma princesa.

Imagino, pensou Pedro amargamente. Era de se esperar isso de Belle, um grande suíço, provavelmente um empresário. Será que era isso que Belle queria desde o começo, um cara rico, europeu? Será que eles já haviam se casado? Belle não estava com nenhum anel dourado em nenhuma das mãos, felizmente, mas ele via nos olhos da moça que ela estava feliz com o outro. Christophe fez a péssima demonstração de entregar uma das rosas para ela, combinando com seu vestido. O fato era: Belle estava linda e também estava seguindo em frente.

Por que isso o incomodava? Ele estava casado, pelo amor de Deus!

Henrique apareceu pouco tempo depois, sendo chamado por Leo. Todos se organizaram, os padrinhos e os pais no altar, cada um de um lado. Pedro, Pablo e Leo estavam do lado de Henrique com Dona Rosa e Seu Matheus, os outros do lado de Mel com Cristina esperando Mel chegar. Estava tudo pronto e Henrique estava respirando fundo, quase arfando.

—Jesus, e se ela não vier mais? –ele perguntava em voz alta.

—Rapaz, relaxa. Se ela não te largou durante os últimos anos é improvável que ela te largue agora. –Leo falou, fazendo Pedro cobrir o rosto.

—Leo! –Pedro exclamou.

Antes que eles pudessem brigar mais um pouquinho para matar a saudade, Mel entrou, um buquê de rosas em suas mãos, um vestido volumoso com desenhos de rosas na saia, pequenos brilhos no colo do tomara que caia. Mel usava um véu e seu cabelo estava solto, uma cachoeira de fios negros lisos que combinavam com ela. Ela andava de cabeça erguida, sorriso orgulhoso e olhos cheios de amor ao encarar a multidão e seu futuro esposo.

Pedro conseguiu sorrir ao encarar Mel e ver a reação de Henrique quando ela entrou: palmas suando frio, engolindo em seco, piscando várias vezes em nervoso, a postura ereta. Senhoras e senhores, esses sim são sintomas da paixão e Henrique já era um caso incurável. Oh, e a época em que ele era a mesma coisa?

Seus olhos encontraram os de Belle por um pequeno instante, ela virada para ele com uma expressão indecifrável. Durou um segundo. Os olhos dele nos dela, os olhos dela nos dele. Parecia ainda a primeira vez que ele a viu, cabelos escuros tampando o rosto, ele curioso demais para uma criança. Ainda era. Mas aí ela desviou o olhar, suas bochechas se colorindo no mesmo tom que seu vestido.

Pedro sorriu. Bom saber que ele não perdeu esse poder.

(***)

Pedro acordou com o celular vibrando no criado do quarto, criando um barulho irritante. Leo gemeu da cama onde estava, suas mãos fechadas procurando o celular para bater sem querer abrir os olhos.

—Se você quebrar meu celular vai ter que me dar outro. –Pedro ameaçou.

—Só pode ser o seu, Dete sabe que eu não existo antes das dez. –Leo gemeu novamente quando o barulho. –Pedro, atende essa merda!

—Tô indo. –Pedro falou, se sentando para atender a ligação.

De fato o nome de Analícia brilhou na tela, acompanhado de um coração. Pedro passou as mãos no rosto antes de atender, odiando o sono em sua voz. Em geral Pedro já estaria de pé e trabalhando uma hora dessas.

—Alô?

Bom dia. –Analícia afirmou do outro lado da linha. –Atrapalho?

—Não, não. –Pedro respondeu, saindo da cama para não atrapalhar Leo em seu sono.

Leo pareceu grato, rolando de volta para a cama e cobrindo a cabeça com a coberta, parecendo ignorar o mundo a fora. Pedro nem conseguiu comentar da nostalgia que sentiu ao ver Leo, sempre o primeiro rosto que viu durante a maior parte de sua vida, antes da voz de Analícia o chamar de novo. Aparentemente Leo continuava odiando levantar cedo como odiava assim que atingiu a puberdade.

Parece cansado. A farra durou até de madrugada, foi?

Pedro bufou, odiando o tom acusatório de Analícia. –Não teve farra nenhuma até a madrugada, estávamos todos cansados da viagem. Eu só acho que bebi demais.

Pedro seguiu com o telefone até o banheiro do corredor, o mantendo apertado no ombro para conseguir lavar o rosto e escovar os dentes. O Pedro que o olhou do espelho estava com cara de ressaca, apesar de não sentir uma dor de cabeça grande ou vontade de vomitar.

Sei. –Analícia estralou a língua. –Está se divertindo?

Conversar com Analícia lhe lembrava caminhar em um campo minado, nunca sabendo onde pisar. Um passo em falso e tudo poderia explodir.

—Sim. –ele respondeu no final. –É bonito, calmo, relaxante e é legal me reencontrar com a antiga turma. Talvez possamos vir aqui também em Julho.

Seria bom. –ele sentiu ela sorrir, Analícia adorava quando ele fazia planos para a família. –Só liguei para ouvir a sua voz. As crianças também sentem sua falta.

—Eu também sinto a falta delas, às vezes me pego procurando os dois aqui até me lembrar de que eles não vieram. –Pedro sorri para si mesmo. Amava suas crianças. –Já estou com saudades.

Eu também. –Analícia o respondeu com força nas palavras. –É tão estranho olhar pra fazenda sem você nela.

—Imagino. Mãe não está tentando fazer nada muito pesado, está? –ele indagou entre as escovadas.

Não sei, Pedro, eu fico na padaria o dia todo e as crianças ficam na escola. –Analícia suspirou. –Mas ela parece satisfeita de comandar a casa de novo.

—Ela sempre gostou de fazer as coisas do jeito dela. –Pedro balançou a cabeça, se lembrando das vezes em que a Dona Jasmine brigou com ele por “fazer errado”.

A casa estava silenciosa, provavelmente todos dormindo ainda. O ar estava fresco e úmido, o sabor do mar na atmosfera. O sol estava nascendo, sendo provavelmente por volta de seis ou sete horas. Não era à toa que Analícia o ligou por volta desse horário, Pedro já estaria trabalhando e ela estaria indo trabalhar. Ele foi até a varanda para apreciar a vista do sol subindo no horizonte e a água o encarando de volta, a praia vazia.

É, estamos nos dando bem. –Analícia comentou. –E sentindo sua falta, por mais que ela não fale nada. Sem você pra importunar ela é muito tempo livre pra Dona Jasmine.

—Ei, você tinha que ficar do meu lado! –Pedro brincou.

Ele finalmente avistou a figura que vinha caminhando na praia com algumas sacolas em suas mãos, num macacão de ginástica cinza de laterais rosas e tênis pretos de caminhada. Belle parecia muito perdida para prestar atenção nele, fones de ouvido vermelhos provavelmente tocando música no último volume. O nascer do sol combinava com ela.

Pedro perdeu as últimas palavras de Analícia, distraído com a morena. –Olha, amor, eu vou tomar café agora. Se importa se eu te ligar depois?

Analícia suspirou na linha, aceitando. –Certo. Te ligo quando chegar do trabalho.

—Certinho. Vou querer falar com as crianças.

Te amo.

—Também te amo. –ele desejou antes de desligar.

Pedro precisou de um instante para se recompor, as conversas com Analícia geralmente o deixavam cansado, como ter caminhado uma maratona. A sensação de estar respirando ar puro ajudava, porém. Ele sempre adorou a natureza, não conseguiria viver numa cidade escura com grandes prédios e quase nenhuma árvore, como faziam os outros. Pedro gostava da terra nos pés, do ar fresco, de poder levar seus filhos para o lago assim como o seu pai fazia.

Belle se aproximou desconfiada, seus passos desacelerando para que ela andasse e não corresse. Ela tirou os fones vermelhos, observando a figura de Pedro.

Dobroye utro, Pedro. –ela cumprimentou quando o viu.

Pedro ergueu uma sobrancelha. –Bom dia pra você também. Espero que você não esteja me xingando em outra língua.

Ela riu por um instante, o sorriso que Pedro adorava aparecendo. –Era “bom dia”. Se a gente não usa a língua acaba esquecendo. –ela piscou para ele, feliz. –Estou indo fazer um café da manhã, quer ajudar?

Pedro a seguiu para a cozinha como um cachorrinho feliz. Belle parecia extremamente bem humorada para quem devia ter se levantado de madrugada para ser saudável. Ela não estava nem com cara de ressaca, o que era um absurdo para Pedro. Belle poderia pelo menos demonstrar que estava tentando ser perfeita.

—Levantou cedo. –ele comentou, a vendo depositar os itens na mesa.

—Fuso horário. –ela balançou os ombros, não surpresa. –Consegui sair para um boa corrida e passei num mercadinho para comprar algumas coisas. Como eu não ajudei na janta ontem, decidi que poderia fazer o café.

—E o que exatamente você vai fazer? –ele indagou, vendo que ela trazia farinha e ricota com ela.

Syrniki! –ela exclamou. –São bolinhas de ricota, deliciosas. Se você for um bom menino e me ajudar eu até deixo você experimentar.

Ele sorriu para ela, arregaçando as mangas do pijama. Sentia falta de Belle, de verdade. Nem tanto dos beijos ou de senti-la do lado, mas de conversar com ela, de poder vê-la sorrindo e escutar sua risada. Belle sempre foi uma maneira rápida e sem falhas para levantar seu humor, e ainda era.

—Eu vou começar o café. –ele falou, a vendo começar a massa. –Podemos acordar Leo com um balde de água do mar depois?

Ela riu novamente, o som ecoando na casa vazia. –Acho que os donos da casa iam odiar se a gente molhasse o colchão, mas podemos pensar em alguma coisa. Passar pasta de dente nele, ou algo assim.

Pedro apontou a colher para ela, feliz. –É disso que eu estou falando, Bailarina.

Eles se moveram silenciosamente na cozinha durante algum tempo, Pedro colocando o café para coar e a observando preparar uma boa quantidade de massa, a ricota tendo entrado na equação em algum momento. Parecia estranhamente doméstico, algo que Pedro já tinha imaginado quando eles ainda namoravam. Uma manhã tranquila na fazenda, Pedro e Belle acordariam mais cedo que as crianças e iriam querer deixar tudo pronto, uma boa dose de implicância alegrando a manhã deles.

Você é um homem casado, ele se lembrou.

—Eu senti sua falta. –Belle começou, ainda sem olhar para ele. –Você era um grande amigo, Pedro.

Os cantos da boca de Pedro tremeram em alegria e tristeza. –Também senti sua falta.

Belle sorriu para ele por um instante, parecendo ter tirado um peso das costas. Sorriu só pra ele. Aquele sorriso... Era tão errado, mas Pedro sentia como se só houvessem os dois na casa. Como se eles pudessem recuperar o tempo perdido.

—Oh meu Deus, isso é café? –Mel soou na porta da cozinha, atrapalhando o momento ainda de pijama e parecendo alguém que precisava de um copo de café. –O que vocês estão fazendo?

 (***)

O luau que Mel estava doida para ir iria rolar num bar ali perto, na ponta do que parecia um penhasco com as ondas batendo no fundo o lembrando do rio de Sococó da Ema, onde Analícia quase morreu antes que ele pulasse nela duas décadas atrás. As ondas criavam uma ótima trilha sonora para Pedro, mas uma batida soava no bar, alguma coisa eletrônica que ele não reconheceu. As luzes piscavam na pista de dança e as pessoas batiam umas nas outras ao se locomoverem, várias mesas espalhadas com as pessoas bebendo e comendo.

E Pedro se sentia super velho para estar ali, vendo todos aqueles adolescentes e homens nos seus ápices. A época dele havia passado.

Felizmente ele não estava destoando demais em relação a sua roupa, já que basicamente todos os homens usavam calças ou bermudas com camisas de praia. As meninas, porém, foram parecendo super modelos. Mel numa blusa estampada com um macacão branco de saia, chapéu e colar; Emily num top de crochê com um short jeans e vários acessórios; e Belle num macaquinho tomara que caia branco com rosas que terminava num short, favorecendo seu corpo. Todas as três estavam lindas e chamavam a atenção de todos os rapazes (e algumas moças) dali. Henrique foi dançar com Mel assim que chegaram, quase que jogando o anel de casamento na cara do mundo.

Emily estava bebendo com eles, dizendo estar muito velha para ficar dançando essas músicas de adolescente. Felizmente ela conhecia ótimas batidas para se tomar e pediu uma rodada para todos, acompanhada de asinhas de frango com limão.

Belle levou Pablo para dançar um pouco, se movendo graciosamente na pista enquanto Pablo apenas tentava. No final ele desistiu e puxou a irmã para a mesa, Belle se sentando emburrada.

—Sem reclamar. –ele brigou.

—Você é muito chato. Por isso eu não saía com você. –ela retrucou, lhe mandando língua.

—Pablo magoou você, Belle? –Leo brincou, tomando um copo inteiro de batida numa golada só.

—Eu não tenho a mínima capacidade para dançar com você. –Pablo argumentou. –Mas deve ter algum rapaz por aí que consiga te acompanhar.

—Parece que todo mundo aqui são crianças perto da gente. –Pedro falou. –Eu me lembro de quando nós éramos assim....

—Pois é... –Leo pausou, pensativo. –Agora a gente está casado, com filhos, trabalhando... Quando foi que a gente cresceu tanto? Ainda me sinto um bebê.

—Você ainda tem cara de bebê, bebê da turma. –Emily rebateu, o mandando um beijinho.

—Você me respeita que eu já tenho trinta!

—Como eu disse, um bebê.

—Ah fala sério, Emily, dois anos de diferença?

Belle bufou, desinteressada. Por mais que beber fosse importante para entrar no clima, ela veio pensando que teria a oportunidade de dançar como fazia nas noitadas em São Petersburgo, a música nas veias a motivando a gastar as energias. A se permitir se soltar.

Ela nem se lembrava de como Pablo odiava dançar.

—Quer que eu dance com você, Bailarina? –Leo ofereceu. –Não sou muito bom, mas você vai parecer ainda melhor dançando com uma ameba do lado.

Ela riu, feliz, aceitando a proposta. Belle puxou Leo para a pista, desaparecendo com ele para dentro da multidão, logo nem suas vozes podiam ser ouvidas. Pedro fez uma careta ao pensar no irmão e Belle sozinhos, mas não podia reclamar, então ficou quieto, comendo mais uma asa. Mel e Henrique não demoraram a voltar, cansados, mas pediram refrigerante para não beber demais.

—Aqui é tão vivo, não é? –a morena comentou, feliz. –Sinto saudade da época em que eu podia sair para festas....

—Ainda pode, ué. –Emily replicou.

—Agora tem a Mharessa. –Henrique coçou a nuca. –Realmente, sinto falta de ser um adolescente.

—Entra na fila. –Pablo adicionou. –Não aguento mais ver boletos na minha frente.

—Vocês reclamam, mas eu me lembro que todos vocês pediam aos céus para serem adultos logo e puderem cuidar da própria vida. –Pedro interrompeu. –Não parece mais tão bom, não é?

—Você, -Mel apontou. –é uma pessoa cruel. Eu não sabia que ser adulto seria tão chato.

—Ser adulto não é chato, nós somos chatos. Belle está se divertindo. –Pablo cortou. –Vocês são velhos por dentro.

—Ah, e você não é?

—Eu sou um senhor de oitenta e quatro anos por dentro, mas você não me vê reclamando.

—Não, eu daria uns... Cento e quarenta, por aí. Mas a cara é de cinquenta, Pablo. –Henrique piscou, fazendo todos rirem da cara de taxo de Pablo.

—Essa foi boa.

—Foi idiota, isso sim.

—O zuado não pode reclamar.

—Vocês são horríveis. –Pablo revirou os olhos. –Nós somos compromissados numa balada, o que viemos fazer aqui mesmo?

—Beber. –responderam todos juntos, fazendo Pablo fingir uma cara de entendimento.

—Mas é claro. Agora sim. –Pablo encheu os copos de todos, garantindo que Mel e Henrique ainda estivessem na coca cola. –Um brinde à terceira idade?

Eles riram e encheram o saco, mas brindaram assim mesmo. A maioria ficou ali durante um bom tempo, falando desde a nova geração de adolescentes até a copa do mundo e o 7 a 1 que ninguém iria esquecer, comentando rapidamente de política sobre a reeleição de Dilma. Pablo não estava ciente o bastante dos fatos para opinar então contou de sua vida em Paris e das apresentações fora da Europa. Eles falaram de planos para o futuro, o de casar finalmente para Emily, ser pai para Pablo e trabalhar muito para Mel, Henrique e Pedro.

—E o Leo, Pedro? Acha que ele e Dete vão nos agraciar com mais um bebê no futuro? –Emily indagou.

—Acho que não. –Pedro balançou os ombros. –Eles gostam de viajar os dois e de aproveitar a estrada. Criança dá muito trabalho.

—Ah, que pena. –Emily respondeu. –Achei que logo teríamos outro pirralho para ler nossas mãos e decifrar nossos futuros.

—Emily, se Dete tivesse um filho e se ele chegasse na idade para ler mãos, nós já não teríamos nenhum futuro. –Henrique respondeu. –Terceira idade, lembra?

—Eu acho que isso foi uma provocação. –Pedro jogou fogo.

—E Belle, Pablo? –Mel interrompeu. –Sabe se ela está planejando alguma coisa?

—Além do Lago dos Cisnes no final do ano? Não. –Pablo pausou. –Belle sempre foi muito do momento. A única coisa constante na vida dela é a carreira, que está indo bem.

—Ela não fala em sair de São Petersburgo? –Mel continuou.

—Não pra mim, pelo menos. Mas ela está feliz lá, nossos pais aprovam, ela tem Evgeni e o Gergiev para cuidarem dela... Estamos todos bem. –Pablo fez um sinal com as mãos. –Quem diria, não é? Todos encaminhados na vida.

—Bem, a terceira idade aqui precisa ir mijar. –Pedro avisou, se levantando.

—Quer ajuda pra chegar ao banheiro? –Mel provocou.

—Calada! –ele retrucou, abrindo espaço na multidão para chegar até os banheiros, mas pausou ao ver um brilho branco no meio da noite.

Belle.

Dançando agarrada com algum surfista, provavelmente, os dois dançando agarrados e sussurrando frases um no ouvido do outro. Ele nem era bonito, tinha a pele escura e vários dreads e certo, era sarado, mas e daí? E ela parecia... Leve se mexendo com ele no ritmo da batida, Leo em nenhum lugar que Pedro pudesse ver.

Parte dele queria balançar Belle pelos ombros, perguntar o que diabos ela estava fazendo. Era... Ruim, vê-la debruçada sobre outro cara que provavelmente nem ela saberia o nome. Uma sensação estranha.

Ele voltou para a mesa sem conversar com ninguém, seu humor de repente ficou frio. Seus amigos entenderam e não o pressionaram a conversar, fazendo conversa fiada enquanto Pedro repetia a cena em sua cabeça. Eles ficaram lá durante um bom tempo, e quando Pedro se sentiu sufocando, ele se retirou para a pequena varanda que havia no bar e estava mais vazia que a pista de dança, sentindo conforto com o bater das ondas e o balançar da água.

—Oi! –uma mão encontra seu ombro e de repente ele vê Belle em suas costas, uma bebida nas mãos. –Estavam te procurando lá dentro! Quer dançar?

Pedro, de repente, estava com raiva. Uma raiva que ele alimentou por anos com mágoa e dor, a raiva de ter ficado em segundo lugar na vida dela, a raiva dela ter lhe deixado, a raiva dela não ter aceitado seu pedido de casamento, a raiva por não estar mais com ela, por não ter mais nem a possibilidade de ficar com ela. Ele escolheu Analícia, mas a grande verdade é que não foi ele quem escolheu a loira, Belle que escolheu o balé e ele teve que aceitar o fato.

—Qual é o seu problema? –ele esbravejou, tirando a mão dela de si.

Belle pausou por um minuto, sem entender.

—Qual é a sua vontade tão grande de magoar as pessoas que você não consegue aguentar uma noite sem seduzir alguém? Por que você insiste iludindo as pessoas de que elas têm chance com você, quando na verdade você nem pisca antes de acabar com tudo?

—Do que você está falando?

—De tudo, Belle! –ele quase grita, mas se lembra da multidão e se sente desmotivado. Esgotado. –Droga, estou falando da gente!

—Nós já conversamos sobre isso-

—Não, não conversamos. Estamos fingindo que nada aconteceu porque a saudade é maior que a mágoa, mas porra, Belle, eu não esqueci.

—E você acha que eu esqueci? Por que acha que eu não piso no Brasil faz anos? Por que acha que eu desmarco todos os reencontros da turma? É por sua causa, droga!

—Deve ser porque você tem vergonha demais pra me encarar. –ele afirmou seco. –Ou então vergonha de menos para voltar como se nada tivesse acontecido.

A Bailarina pausou, os punhos se fechando, mas lágrimas teimosas teimavam em aparecer no seu rosto. E isso era um fato que todos acabavam esquecendo quando terminavam um relacionamento: era fácil lembrar dos bons momentos, mas os momentos ruins? Não. Esses eram esquecidos. E ela se esquecia de como Pedro sempre teve uma facilidade para magoá-la desde que eram crianças, as facas em forma de palavras e o problema onde ele só enxergava a própria dor, mas depois da briga, depois de um pedido de desculpas, ela o amava de novo.

—Você é patético. –ela o respondeu. –E isso foi um erro. Eu não devia ter vindo.

Ela se virou, saindo da sacada, saindo do bar, saindo da praia. Ela voltou para a casa sem avisar a ninguém, querendo apenas alguns minutos sozinha para que pudesse chorar os litros que não chorava desde que Scooby morreu, anos atrás. Belle pegaria o próximo voo para São Petersburgo no dia seguinte, ela prometeu para si. Chega de perseguir o passado.

E assim como no dia em que a pediu em casamento, Pedro a deixou ir, por mais que quisesse correr e pedir desculpas.

(***)

Pedro acordou cansado, como não acordava há muito tempo. Sua cabeça e peito doíam, mais uma sensação de culpa do que de ressaca. Ele se lembrava de cada detalhe da noite anterior, por mais que a bebida tivesse feito um papel na peça que se seguiu, Pedro foi o grande ator e falou coisas que ele realmente pensava ou já pensou, por mais que soubesse que não eram verdades.

Ele acordou depois de Leo, o que foi um milagre por si só que não acontecia desde a infância. Ele ignorou Analícia naquela manhã, prometendo a si que diria que dormiu demais, mas que estava feliz por ela lembrar dele. Saiu do quarto notando o clima tenso da casa, algo que não estava presente no dia anterior.

—Em geral. –começou Pablo, aparecendo no corredor ainda de pijama. –Em geral, Pedro, eu não implico muito com você porque sempre te considerei um irmão, mas a quantidade de vezes que você magoa minha irmã tem um limite.

Pedro respirou fundo, querendo ignorá-lo.

—Vá pedir desculpas, Pedro.

—Eu não quero-

—Não, você está com medo. Vocês dois estão sempre com medo, caramba, mas já estão grandinhos demais pra isso! Terceira idade, lembra? –ele o olhou com uma cara de cansaço. –Pedro. Você a chateou.

—Ela também me chateou. Aliás, isso parece ser a única coisa que ela faz hoje em dia.

Pablo bufou, passando as mãos pelos cabelos como se estivesse lidando com duas crianças.

—Então o seu plano é não falar com ela e deixá-la ir embora, para se afundar em arrependimento durante os próximos anos, é isso? Porque foi isso que aconteceu da última vez. Você se casou com Analícia achando que iria melhorar, mas não melhorou, Pedro, porque vocês precisam conversar, precisam conversar faz treze anos!

Pedro fechou os olhos, cansado. Estava velho demais pra isso.

—Pedro, o que vocês têm afeta todo mundo. Não queremos nos separar, mas parece que é a única escolha que vocês estão nos dando. E... Olha. A Belle é a minha irmã. Se eu não tiver outra escolha, eu vou te bater.

Pedro quase achou graça, sabendo que Pablo não conseguiria passar do primeiro soco.

—E eu estou falando sério. Do jeito que está, Pedro, não dá mais pra ficar. Vai atrás dela ou vai se arrepender.

E Pablo virou, deixando a escolha nas mãos de Pedro. Ele não queria ir, mas queria. Se ela fosse embora de novo com os dois brigados, Pedro não ia nem saber o que fazer. Iria doer demais.

—Onde ela está? –ele indagou num chamado.

—Foi caminhar. Você encontra. –Pablo piscou para ele, saindo.

Droga.

(***)

De fato Pedro a encontrou na praia, por sorte parada por um instante, sentada na areia observando as ondas. Ela não podia vê-lo de onde estava, mas não parecia que iria querer ver o que estava acontecendo no mundo exterior, perdida demais ao ver o sol subindo no horizonte. E assim como da primeira vez, o nascer do sol combinava com ela.

A praia estava deserta e a casa estava longe, nem podendo ser vista dali, mas pareceu mais reconfortante do que assustador. Ela estava com os joelhos erguidos, os abraçando. Parecia em dor, assim como ele, aquela dor que não podia ser vista por ninguém que também não estivesse sofrendo.

Ele chegou sem fazer barulho, se sentando do lado dela. Belle se assustou por um momento, mas logo seus olhos se encheram de raiva.

—O que você quer? –ela perguntou quase que num rosnado.

Ele via o que seria o primeiro detalhe de uma Belle não perfeita agora. Essa Belle estava com os cabelos rebeldes, desarrumados, estava com olhos vermelhos e parecia cansada. Essa era a Belle de verdade.

—Eu amava você. Ainda amo você. E você me largou no que era pra ser a noite mais especial de nossas vidas. Nesse momento, nós dois poderíamos estar felizes –

—Não. –ela o interrompeu. –Não estaríamos.

—Como você pode ter tanta certeza?

—Pedro, olha pra gente. Olha pra mim, caramba. Eu nunca poderia te dar as coisas que Analícia deu, todo o lance de casamento, filhos, a vida dela. Eu não conseguiria fazer isso. –ela suspirou. –Eu tenho sonhos, Pedro. Sonhos que não incluem construir uma família nesse momento.

—Nós poderíamos ter feito funcionar. Belle, você foi embora.

—Você não me deu nenhum motivo pra ficar.

—E eu não era um motivo?

Ela pausou, olhando o mar. –Eu não me arrependo de ir embora. Eu quero mais que Sococó da Ema, Pedro.

—Eu sei.

—E você podia ter vindo comigo. Podíamos ter ido pra São Paulo, depois pra Paris e você poderia estar comigo em São Petersburgo agora, poderia estar me vendo me apresentar em uma das maiores companhia de balé clássico do mundo. Você não quis.

—Eu não podia ir embora.

—Eu não podia ficar.

—Então esse é o nosso problema, não é? –Pedro deu um risada fraca.

Belle se virou para ele, parecendo ver mil cores que ele ainda não entendia. Parecendo ver a vida que eles não tiveram.

—Você se arrepende de casar com Analícia?

Pedro pausou, considerando a pergunta importante. Analícia não era uma mulher fácil, mas era sua esposa, sua amiga e sua confidente. Quando Belle foi embora, Analícia apareceu, pronta para enxugar suas mágoas não importasse quantas vezes ele a mandasse sair. Os dois construíram muita coisa juntos, tiveram dois filhos pelo amor de Deus. No fundo, Pedro não trocaria Miguel e Liza por nada nesse mundo. E com o tempo, ele pode dizer que se apaixonou pela loira também, pelo menos pelos lados bom dela.

Nada se compararia à chama forte que sentia por Belle, mas ele aprendeu a viver com isso.

—Não. –ele falou no final. –Eu amo meus filhos.

Ela sorriu, adivinhando a resposta dele. –Eu amo a minha vida.

O rancor diminuiu, por incrível que pareça. As escolhas que fizeram, tão cruéis em sua cabeça, lhe pareceram respostas lógicas. É óbvio que doía e ia doer pra sempre, mas no fundo, ele não culpava Belle. Ele também poderia ter dado mais no relacionamento dos dois e foi egoísta de sua parte esperar que ela, sempre ela, desistisse de tudo.

Ele pausou, vendo os pássaros voarem e o mar se mexer, o tempo sempre passando, sempre lhes roubando. Ele costumava pensar que ele e Belle foram destinados um para o outro, que eram almas gêmeas. Mais do que a dor, sentiu que todos os anos que passou com ela do seu lado foram uma mentira, uma invenção de sua cabeça. Se era mesmo tão bom, por que acabou?

Só depois que ela estava longe que ele percebeu a falta que sua melhor amiga fazia.

—Me desculpa. –ele pediu. –Eu fui um zé mané.

—Você foi.

—E eu bebi umas batidas bem estranhas, já te falei isso?

Ela balançou a cabeça, quase sorrindo. –Está tudo bem. Sempre está.

—Não, não está, Belle. Temos que parar de nos magoar.

—Pedro. –ela o olhou. Olhou de verdade. Olhou no fundo dos seus olhos. –O que você quer de mim?

Ele engoliu em seco, pausando por um momento.

—Eu quero minha amiga de volta.

Ela sorriu fracamente, mas parecia satisfeita com a resposta. –Pois bem.

Belle o cutucou com o ombro com força, praticamente o jogando na areia, e teve a audácia de achar graça. Ele a jogou de volta, com mais força, a fazendo cair de vez e o olhar irritada, pegando uma grande quantidade de areia e tacando nele. Ele piscou quando sentiu tudo cair em sua camiseta.

—Mas o que-

—Ops. –ela falou, se levantando para correr.

—Ah, não, Belle, volta aqui agora! –ele mandou, correndo atrás dela. –Belle!

E foi bom. Porque Pedro gostava tanto de ter ela por perto que não importava mais se fosse como amiga, namorada, cunhada ou o que seja. Ele nunca iria superar a paixão que sentia por ela, mas iria viver tentando se fosse o necessário para que pudessem conviver novamente. Para que Pedro pudesse ligar para ela em São Petersburgo quando algo o incomodasse, para que ela pudesse passar uns dias na fazenda quando o mundo a sufocasse novamente, para que os dois pudessem ajudar um ao outro e que pudessem ficar velhinhos juntos, nem que fosse cada um de um lado do planeta.

E isso resumia muito bem o amor que sentia por ela.  

(***)

—Eu pedi um final feliz, Madame. –Porta Voz reclamou assim que a fumaça baixou e a história acabou, a Madame com lágrimas nos olhos enquanto ele encarava a bola como quem queria quebra-la.

—Eu lhe avisei que o futuro sempre pode ser melhor ou pior, Porta Voz. Mas agora, o que lhe faz pensar que esse não foi um final feliz? –ela arqueou uma sobrancelha, olhando o menino que agora já era basicamente um homem.

—Me casar com Analícia? Largar Belle? Ver todo mundo separado?

—Você teve dois filhos lindos e saudáveis que amam você. Belle está fazendo o que ela sempre sonhou, está criando carreira internacional e está estreando a peça que sempre quis. Todos estão separados, mas estão seguindo suas vidas. Pablo iria ser pai, Mel e Henrique estavam cuidando da filha e dos negócios de sucesso, Emily estava tentando fazer a diferença numa cidade onde há muita desesperança e Leo... Leo estava com Dete, que é tudo o que ele realmente quis. –ela pausou, uma grande nota de emoção na voz. Acompanhou esses meninos desde a morte, esperando seus renascimentos. –Não é porque não foi o final que você esperava que não é um final feliz.

—Esse não é o final que eu quero pra mim. –o menino fechou os punhos. –Eu amo Belle, não Analícia.

A Madame sorriu vendo a determinação de Pedro. Às vezes ela sentia falta do menino que ele era, às vezes abençoava o espírito adulto. Ele cresceu. Ele amadureceu. Ele morreu.

—Então escreva seu final, Porta Voz. Ainda há tempo. –ela o aconselhou, passando as mãos no terno dele e sentindo suas confusas emoções.

O menino não sabia ainda o que iria fazer, mas sabia que precisava fazer alguma coisa. E isso era bom. Isso lhe daria foco e esperança, pensar que tinha um futuro para ser escrito, pensar que poderia escolher seu próprio final. Quando se é um peão, muitas vezes nos preocupamos tanto durante a rodada inteira temendo ser eliminado que esquecemos de aproveitar o jogo. Porta Voz poderia mudar esse jogo.

—Obrigado pelo seu tempo, Madame. –ele agradeceu, suas forças renovadas.

Ela sorriu orgulhosa.

—Porta Voz? –o Violinista apareceu, segurando o violino e parecendo apreensivo. –Berenice chegou. Precisamos ir embora.

O líder balançou a cabeça em concordância, olhando uma última vez para a Madame e vendo que ela ainda mantinha a mesma aparência de quando a viu pela primeira vez. Pensando bem, ele também.

—Vamos escrever nosso futuro, Madame. Eu não vou entregar a briga assim. –ele prometeu.

Ela o abraçou uma última vez, um carinho enorme que a fazia querer cuidar de todos os sete da maneira com a qual foi incapaz de cuidar de Dete.

—Porta Voz. –o Violinista reforçou.

—Até o ano que vem, Madame. –ele acenou em despedida.

A Madame Creuzodete ficou olhando sua figura desaparecer, imaginando quantos anos mais eles teriam que sofrer antes de poderem mudar o jogo. Se sentou na mesa, esgotada pelas atividades do dia, como sempre ficava depois de um Dia das Bruxas, mas mais triste ainda depois das histórias da noite. Berenice apareceu curiosa vendo apenas a Madame com uma aparência exausta, se enchendo de preocupação.

—A senhora deseja um chá, Madame?

—Sim, Berenice. –ela concorda. –Por favor.

Enfrentei o terror da morte e, transpondo-o, encontrei a flor da vida.

Victor Hugo

 


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Notas finais do capítulo

Um: Eram 35 páginas e eu sou uma única pessoa, não consegui revisar tudo, então sempre acaba saindo algum erro. EDUCADAMENTE, se puderem me avisar, eu agradeço. Não só desse capítulo como de outros.
Dois: O final ficou em aberto de propósito para vocês poderem imaginar o que vocês quiserem (eu odeio quando as autores que eu gosto fazem isso e olha eu aqui fazendo). Como autora, porém, eu não imagino o Pedro traindo a Analícia ou a Belle largando o balé e se casando com ele. Particularmente eu gosto de imaginar eles voltando a serem amigos e todo mundo passando o Natal na fazenda, ei! Não imagino a Belle se casando e não vou colocar isso na fic, mas gosto de pensar que ela não poderia dançar pra sempre e abriu uma escola em São Petersburgo e está muito bem, obrigada.
Aliás, três: Parece que muitos de vocês torciam pra Viúva e o Violinista, não é? Well, I'm sorry. Eu sempre achei que o romance entre o Henrique e a Mel seria melhor, até pelos preconceitos que eles iriam sentir. Por mais que eu ame Vorina, o melhor casal é LeoxDete sem discussões.
Quatro: Sabiam que nos primeiros esboços a Emily ia ser beeem lésbica? Mas eu não queria estereotipar a personagem só por ela ser mais "parruda" então desisti. Queria retratar todos os tipos de relacionamentos, desde o do Leo e da Dete, onde ele largou tudo por ela, e o da Belle e do Pedro, onde ela não se sentiria feliz se fizesse isso. Não julguem a Belle, é o que eu peço. Foi a melhor escolha pra todo mundo.
Cinco: Estou disponibilizando esse trabalho para que vocês soltem a criatividade. Sintam-se livres para escreverem novas histórias dos personagens e me mandarem, se quiserem fazer um final onde Belle e Pedro ficam juntos, um final com Mel e Pablo, uma história deles em Umbra... Só lembre-se de darem os créditos, colocarem o link da fanfic original e me mandarem uma MP avisando porque eu vou adorar ler (não uso Nyah todos os dias então pode demorar, mas eu leio =D )
Seis: Agradeço a todos que comentaram, recomendaram, favoritaram e leram. Foram trinta capítulos e mais de 100 mil palavras, então estou tão tocada quanto vocês por terminar isso aqui. Levou quatro anos, mas EU CONSEGUI MÃE. "Filhos de Umbra " acaba por aqui, mas definitivamente não é o final da história deles.



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