Os Filhos de Umbra escrita por Rarity


Capítulo 26
Capítulo Vinte e Seis: 1994 – 143 dias antes


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Capítulo Vinte e Seis: 1994 – 143 dias antes

O temor da morte é a sentinela da vida.

Marquês de Maricá

3 de Julho de 1994

Chegamos no fatídico ano de 1994, o último ano de minha vida. Aposto que vocês já estão tremendo em suas cadeiras esperando que eu descreva em detalhes os passos que eu dei até o meu próprio caixão. Era de se esperar. Até eu achei que fosse a estrela dessa história e da minha vida. Esqueci, porém, de uma outra personagem para quem eu devo tudo. Por causa dela, eu e meus amigos temos uma chance de mudar o jogo.

Mas deixem-me contar corretamente.

Sococó da Ema era uma cidade pequena, qualquer mudança –seja ela o bater das asas de uma borboleta- traz rumores que se espalham ao vento com a força de um terremoto. Tudo estava indo bem naquele dia, felizmente um domingo para descansar e esperar a vinda das férias de Julho. Estávamos todos na casa de Berenice para brincar com Analícia, que estava super satisfeita porque ganhou uma boneca nova da mãe.

Analícia e Berê viviam coladas desde o ano passado. Berenice fazia questão de dizer à ela o quanto ela era especial, linda, educada, importante e inteligente. Eu tentava ficar feliz por ela, mas grande parte de mim queria vomitar. E mesmo assim, nada era bom o suficiente para Analícia, por mais feliz que ela estivesse. Com o céu tão limpo com Analícia, eu devia ter percebido que vinha uma tempestade.

Analícia nos fez prometer que passaríamos o dia brincando do que ela quisesse, como um presente de aniversário adiantado sem motivo. Prometemos rindo, achando graça, garantimos que ficaríamos com ela e que até mesmo Leo e Henrique brincariam de boneca.

—Você está fazendo errado, não é assim que se segura. –Analícia instruía todos nós, nos mostrando sua pequena escola. –O Pedro já faz direitinho.

Corei. Vai começar.

Olha, o Pedro já faz direitinho —Leo provocou.

Pedro nasceu pra ser papai. —Pablo adicionou.

Me segura também, Pedro. —Henrique brincou, abrindo os braços pra mim.

—Saí fora. –resmunguei. –Pelo menos eu faço alguma coisa certa na vida.

—E é segurar uma boneca, francamente Pedro. –Leo resmungou de volta.

—Quer saber, eu-

—Meninos. –a voz exasperada de Mel surgiu. –Briguem pelo osso mais tarde.

—Ela nos chamou de cachorros? –Pablo perguntou.

Os olhos de Mel brilharam com malícia. –Não falei na sua língua? Au au auau auau!

Uma parte de mim estava ofendida, a outra ria. –Essa foi boa, Mel.

—Ela está falando de você também, você sabe? –Henrique me encarou.

—Mesmo assim, essa foi muito boa, admita.

—Enfim! –Emily bateu as mãos para chamar a atenção. –Cada um com a sua tarefa, sim?

Emily chamava a atenção, sua forma grande e os cabelos ruivos num rabo de cavalo baixo em seu rosto, alguns fios caindo pelo ombro direito, enquanto segurava uma boneca careca vestida num macacão rosa. Belle estava estranhamente entretida com o que parecia ser fingir ensinar palavrões para as bonecas e Analícia teve que intervir para impedir maiores danos.

—Mas vai ser útil para elas! –Belle argumentou.

—Belle. –Analícia suspirou.

Era um dia normal, Analícia estava estranhamente feliz, todos estavam até que se dando bem, Berenice estava passando roupas no quarto enquanto escutava o que parecia ser o rádio. Meu cabelo estava arrumado e minha boneca estava dormindo. Viu? Um ótimo dia.

Então uma figura apareceu batendo na porta e entrando sem esperar respostas –Dete. Numa bermuda roxa de bolinhas e blusa vermelha, os cabelos cacheados balançando em seu rosto. Ela ofega pela corrida, mas foca-se em todos nós com bastante clareza até encarar Pablo.

—Pablo! –ela chama. –Precisamos ir.

—O que aconteceu? –ele pergunta alarmado, já esperando o pior.

Dete pausa para respirar. –Tem uma cartomante na cidade, Pablo. Dizem que a melhor cartomante de todas!

—Todo esse alarde por uma cartomante?

—Pablo! –ela chama de novo. –Precisamos ir! Você precisa me levar!

—O que você quer numa cartomante, Dete? Você tem dez anos, mal teve passado, quem dirá futuro!

—Pablo, precisamos ir! –Dete estava à margem das lágrimas, parecendo verdadeiramente desesperada. –Não sabemos quanto tempo ela vai ficar!

Dete agarrou a blusa preta de Pablo, tentando puxá-lo. Ela tinha lágrimas rolando agora, e isso pareceu derreter o coração de Pablo, que a soltou de sua blusa com um suspiro.

—Certo, eu vou com você. –ele olhou para mim. –Se importa de vir junto?

—Se ele for, eu vou! –Leo declarou.

—Se eles forem, eu vou também! –Henrique adicionou.

—Se todos forem, certamente não vamos ficar aqui paradas. –Belle falou.

—Certo, certo. –balancei as mãos. Era de se imaginar que todos nós continuaríamos grudados em tempos de crises. Particularmente, estava curioso com a notícia de uma cartomante na cidade –na última vez que os ciganos visitaram eu não tive tempo de conferir e estava curioso. Se Dete falou que era a melhor de todas, eu iria querer ver.

—Mas vocês prometeram! –Analícia rebateu enquanto nos levantávamos, parecendo irritadíssima. –Prometeram ficar comigo!

—Você pode vir? –sugeri. –Não vai levar muito tempo.

—Mas Pedro... –ela começou, fazendo biquinho.

—Analícia. –rebati forte.

Ela cruzou os braços, fazendo birrar. –Eu não vou!

—Analícia, vai levar só alguns minutos... –Mel começou. –Por que você e Berê não fazem alguma coisa até a gente voltar? Podemos trazer alguma bebida e depois fazemos um lanche, que tal?

Analícia bufou, claramente não satisfeita, mas ela sabia que nós iríamos aonde o outro fosse. Se ela não tinha ou não aprendeu essa lealdade até agora, problema dela. Nós cuidávamos um do outro.

—Prometem que vão voltar a tempo de brincar? –ela pediu.

Olhamos um para o outro e selamos nosso destino ao repetir em coro: –Prometemos, Analícia.

(***)

Ao sair da casa de Berê com uma Analícia parte brava parte triste, todos nós esperávamos alguma explicação de Dete. Ela devia ter um motivo para todo o alarde por conta de uma cartomante, mas Dete só abriu a boca para nos apressar.

—Dete, por que você quer ir numa cartomante? Minha tia diz que é só uma forma de ganhar dinheiro fácil. –Mel tentou começar uma conversa, mas Dete pareceu quase ofendida.

—Isso é mentira! –ela exclamou. –É uma arte! É toda uma vida... Eu não acredito que a Cristina disse isso.

—E o que você quer com essa cartomante? –Leo questionou.

—Conversar. –foi a resposta enigmática de Dete.

Conforme o cenário mudava ao nosso redor e nos aproximávamos da cidade, vi perto uma tenda vermelha e dourada que trazia uma placa na porta.

MADAME BELMIRA DO ABAETÉ

VIDENTE DAS ESTRELAS

CARTOMANTE

TARÔ, BÚZIOS E NUMEROLOGIA

AS RESPOSTAS PARA AS SUAS PERGUNTAS ESTÃO AQUI!

A tenda da Madame Belmira era alaranjada e desbotada pelo tempo, com desenhos de estrelas, luas e sóis decorando o topo e duas grandes tochas na entrada, que aumentavam o clima do lugar. Olhei para cima por curiosidade, e me lembro bem do céu limpo que vi, nuvens brancas e o sol brilhando. Levaria apenas alguns minutos e mataríamos a curiosidade de Dete –consequentemente, a nossa.

Dete disse que uma tempestade estava vindo, mas o céu continuava limo.

—Ela está aqui. –Dete sorriu, emocionada. –Ela está mesmo aqui.

—A Madame? –Pablo ecoou. –Dete, você está me assustando.

Dete apenas balançou a cabeça e puxou o irmão pela mão, parecendo indiferente aos nossos tormentos.

—Pablo, isso é a nossa chance. –ela respondeu. –Ela é a nossa salvação.

Sem nenhuma outra fala, Dete nos apressou até a tenda, mas eu já sentia algo ruim se formando. E uma vozinha dentro de mim sussurrava que estávamos quebrando as regras se víssemos o futuro. Era o roteiro de todo filme: ao ver o futuro, os protagonistas tentam mudá-lo e tudo acaba pior do que já estava. E seja lá o que me aguardava, de repente, eu já não queria saber.

—Pedro. –Belle me chamou, os olhos cheios de suspense e expectativa. –Do que ela está falando?

Belle era uma parte de mim, como todos os outros eram. E eu sabia que ela também estava ansiosa, por mais que ela não quisesse demonstrar. Me perguntei se o que eu estava sentindo era o reflexo do que os outros estavam sentindo.

—Eu não sei, mas vamos descobrir. –sorri para ela. –Ninguém vai morrer, Belle, relaxa.

Minha amiga não estava convencida, mas não queria vocalizar suas dúvidas. E entramos mesmo assim.

A tenda parecia algo de filme antigo –uma mesa redonda no centro com uma bola de cristal e velas, um tapete cheio de símbolos variados, desde planetas até runas, alguns baús fechados e decorados com caveiras, cálices e garrafas com líquidos coloridos, alguns livros expostos e cortinas que davam para os outros lados da tenda, decoradas com outros símbolos.

—Quem está aí? –uma voz chamou. –Tem hora marcada?

—Deve ser uma velha de mil anos usando um turbante. –Leo resmungou. –Ela vai ter que procurar os óculos para ler nossas mãos.

—Não diria mil, querido, mas tenho cento e dezessete bem feitos. –A Madame surgiu por uma das cortinas.

E definitivamente não era uma velha de mil anos –aliás, eu não daria mais que trinta ou quarenta para ela. Usava um vestido volumoso vermelho que combinava com o vermelho puro em sua boca, tinha joias e pulseiras em seu corpo com um grande colar em seu pescoço, cabelos castanhos cacheados e olhos verdes, mas de fato usava um turbante. Eu me segurei pra não abrir a boca num “o” bem merecido, porque a Madame não era nada do que eu tinha imaginado.

Dete porém, parecia a ponto de chorar. Ela foi para a frente, um olhar de total admiração no rosto.

—Madame Belmira, eu ouvi tanto sobre a senhora. –ela começou. –E eu preciso de direção.

—Você? –a Madame repetiu, levemente agudo, como se estivesse surpresa. –Oras, vocês não tem hora mar–e ela parou ao examinar Dete. Seus olhos percorreram a irmã de Pablo com um grande interesse antes de se voltar para nós. Ela pausou. –Eu vou queimar um incenso, vocês trouxeram tanta energia aqui pra dentro...

—Obrigada, Madame. –foi o sussurro resposta de Dete.

Quando a Madame voltou com um incenso de ervas queimando, ela se sentou na cadeira principal e mencionou para Dete ir pra frente. Quando Dete deu um passo, ela balançou a cabeça.

—Você, primeiro. –e seu dedo apontou para mim. –Você está angustiado, posso sentir.

Meus pés me levaram para frente sem eu perceber e quando vi, estava sentado frente a Madame. Ela sorriu com o meu nervosismo.

—Você consegue mesmo ver o meu futuro? –indaguei.

—Quem sabe? –foi a resposta dela. –Sabe o significado de Belmira, Pedro? É aquela com boa visão.

No momento, nem percebi que eu não havia falado meu nome para ela.

—As velas nos ajudarão a ver o que você deseja saber. –ela falou e as velas se acenderam, fazendo fumaça. Ao manusear a bola de cristal, havia uma fumaça negra lá dentro também. –Vocês podem se aproximar também. O futuro desse garoto está ligado ao de vocês, posso sentir.

Uma mão apertou a minha, e eu sabia que era Leo sem olhar. Apertei em resposta.

Não sei exatamente o que eu esperava, mas um fogo surgiu no meio da fumaça, e quando ele se dissipou, a primeira coisa que eu vi foi estrelas numa imensidão. Uma vastidão de estrelas brilhando no céu, pontinhos de diamantes num fundo negro.

—Eu já vi isso num sonho. –Belle arfou. –Eu já vi isso.

A fumaça de estrelas se seguiu numa procissão, girando no meio de galhos, asas e ossos, como uma festa. Uma estranha chave de ossos surgiu no meio da bola, semelhante a uma cruz, e o som de violinos apareceu. Sangue. Morte. Dor. A Madame respirou fundo em surpresa, mas seus olhos brilhantes continuaram forçando a fumaça a continuar. A fumaça abriu espaço para nossos pais, nossos amigos, Berenice e Analícia, até que tudo ficou preto. A Madame gemeu como se estivesse em dor, e num ataque, grandes olhos de serpente se abriram na fumaça e atacaram. Não sei quem gritou, mas eu consegui ouvir vozes quando a serpente avançou o suficiente para quebrar a bola. Os olhos continuaram, prometendo guerra, fome, dor e morte, tudo em minha direção. E antes que outra coisa pudesse acontecer, a Madame se levantou e com algumas palavras em outra língua, a fumaça desapareceu.

—O que aconteceu? –Emily exigiu. –Droga, o que foi aquilo?

A Madame nos olhou como se fosse a última vez que nos veria.

—Madame. –Dete chamou. –A senhora sabe o que está acontecendo?

A Madame suspirou. –Creuzodete. Você tem um dom incrível.

—O que está acontecendo aqui? –Pablo exigiu.

Fazia tanto tempo que ninguém chamava Dete pelo seu nome completo que eu acho que ninguém se lembrava dele. A Madame levantou as mãos, exigindo controle.

 -Como você soube que devia vir me visitar? –ela inquiriu para Dete.

—Eu... Tive um sonho. Onde a senhora vinha e me trazia respostas. Algo está acontecendo e eu consigo sentir... Ver... Mas nunca entendo! –Dete estava quase chorando. –Madame, eu vejo coisas, eu ouço coisas... E algo está chegando, eu consigo sentir, mas eu não sei o quê...

A Madame se aproximou, passando as mãos no cabelo de Dete. Lentamente, ela foi se acalmando.

—Quando eu era menina, -A Madame começou –eu não tinha muitos amigos. Todos me achavam estranha por ficar falando sozinha e vendo coisas. Eu não tive muita gente que me ensinasse, cidade pequena, sabe como é. Eu quase enlouqueci... –ela pausou. –Boneca, você sabe muito bem o que você tem nas mãos. O que você precisa é aprender a usar seus dons.

—E como eu vou fazer isso?

A Madame pausou, estudando o rosto de Dete.

—Comigo, é claro! Posso lhe dar umas aulas e em troca você me ajuda aqui na tenda, como minha assistente. –ela pausou, dedicando o tempo para passar um cacho de Dete para trás da orelha. –Só que a arte da cartomancia exige dedicação, Dete. Você vai tirar de letra. –E ela sorriu. –Eu consigo sentir o poder que você tem.

—Não, espera! –Pablo bateu os pés, irritado e confuso. –Ela é minha irmã e eu quero saber o que está acontecendo!

—Pablo –

—Ela é uma clarividente, ora bolas. Eu diria até que uma médium, pela energia que passa. –a Madame explicou. –Isso significa que ela tem o dom da visão espiritual de outros planos e eventos.

—Ela pode ver o futuro? A Dete? –Henrique quase gritou, surpreso.

—A Dete sempre foi diferente... –Mel começou. –A bola de cristal no nosso primeiro dia das Bruxas...

—E quando você viu alguém na floresta... –Belle continuou.

—E o papo sobre espíritos bons para Analícia... –Emily adicionou, surpresa.

—Não. Brinca. –Henrique pausou.

—Não. Brinca. –Leo repetiu. –Esse tempo todo, Dete? Por que não me contou?

—Eu não sabia o que estava acontecendo? Eu só... Me sentia estranha. Quando minha mãe estava no hospital eu podia sentir as correntes que a ligavam ao corpo. –a menina revelou, se arrepiando. –Mas no meu sonho, a Madame era uma luz sobre nós. Ela pode nos ajudar!

—Falando em nos ajudar, -cortei. –o que foi tudo aquilo?

A Madame suspirou, as costas da mão limpando o suor de sua testa. Quando se levantou para nos encarar, um olhar sério e forte tomou conta de seu rosto, e tive medo de tudo aquilo.

Por incrível que pareça, a revelação de Dete não me causou tanta surpresa –à essa altura, era de se esperar que a menina fosse especial e a explicação trazia sentido para tudo de estranho que presenciamos. O que realmente me preocupava era a cobra de sombra que quase nos matou.

—Eu... Não tenho todas as respostas. Faz tempo que eu não sentia uma presença dessas nas consultas. Esse mal... –A Madame pausa. –E me disseram que a Serpente ia voltar e eu não acreditei. Só pode ter sido isso...

—Serpente? –Dete ecoou.

—O Mal primordial. –A Madame respondeu. –Ela ainda está fraca, mas definitivamente era ela...

—E o que isso tem a ver com a gente? –perguntei.

—Eu não sei, honestamente. Ela me impede de ver o que está causando isso. –A Madame explica, suas mãos catando os cacos da bola de cristal. –O que eu posso garantir é que um mal inevitável está chegando e que vocês precisam se preparar pra ele.

—Um mal inevitável? Tipo um joelho ralado? –indaguei esperançoso.

De repente, eu detestei ter vindo. Um mal inevitável poderia ser qualquer coisa, desde uma bala envenenada até um acidente de carro. E o mal aconteceria com a gente?

—Pedro, uma força me impede de olhar mais do que já vimos... –A Madame lamentou. –Eu sei que vocês estão preocupados. Continuem mantendo as esperanças para atrair os espíritos de proteção. Já faz muito tempo que eu não vejo o mal tão materializado assim. A chave de ossos já é prova suficiente disso, e a runa de Ior também.

—E como a gente impede esse mal?

—É inevitável... –A Madame se sentou, cansada. –Eu nunca imaginaria tanta dor e escuridão no futuro de pessoas tão pequenas...

—A gente não vai morrer, vai? –Belle perguntou, temerosa.

A Madame pausou por um momento, estudando nossos rostos. Quando respondeu, soava como a mentira que provaria ser:

—Claro que não querida, vai ficar tudo bem.

—Como afastamos esse mal dos nossos pais? –continuei. –Eu não quero que nada aconteça com a minha família.

—Eles não estão em perigo, pelo que vi. Apenas, se lembrem de quem é amigo e quem é inimigo, ok? –ela continuou.

Amigo...

—E os galhos e ossos? O que eles significam? –Henrique indagou.

—Eles... –ela pausa. –Galhos cortados significam perdas, crianças.

Analícia.

—A gente tá esquecendo da Analícia, precisamos ir! –chamei.

—Nessa chuva? –foi a resposta da Madame.

Um clarão iluminou a porta da tenda, e foi quando eu percebi as gotas caindo e molhando a terra onde estávamos. A Madame murmurou alguma coisa sobre a chuva desestabilizando a terra enquanto eu encarava a tempestade caindo embasbacado –o céu estava limpo minutos atrás. Não podíamos ter ficado na Madame esse tempo todo.

O céu não estava mais claro e a tempestade tinha começado.

—Droga, como vamos sair assim? –Belle apareceu do meu lado. –Analícia vai ficar uma fera...

—Está trovejando, não podemos sair. Vocês querem morrer? –Mel gritou.

A palavra trouxe um ar ruim e todos nós engolimos em seco antes de nos afastarmos da chuva, a possibilidade de morrer para uma coisa boba como um trovão soando aterrorizante.

—Não foi isso que eu quis dizer... –Mel tentou consertar, mas Henrique pousou a mão em seu ombro.

—A gente sabe. –ele garantiu. –Mas você ouviu a Madame, vai ficar tudo bem.

Suspirei, observando Dete e a Madame conversando. Dete até cavou uns dos baús até achar um turbante para si, o exibindo para ela. Raras vezes eu tinha visto Dete tão feliz –e eu devia ter imaginado que achar alguém como ela traria alegria para a pequena. A própria Madame observava Dete com afeto, tirando os cacos da mesa e separando as cartas para ensiná-la.

Talvez, algum dia, Dete também virasse uma cartomante?

—Eu posso ser a Madame Creuzodete! –a menina sugeria. –E aí vamos poder trabalhar juntas!

A Madame solta ar pelos narizes em desconsideração. –Madame Creuzodete? Francamente...

Dete apenas ria, ignorando os comentários da Madame em favor de manter seus sonhos.

Sorri com a interação. Se Dete estava achando seu chão, nada nos impedia de fazer o mesmo e superar esse tal mal inevitável. No final, como a Madame disse, ficaria tudo bem.

Não ficou.

—Enquanto vocês estão aqui, precisamos discutir o preço da consulta –nada é de graça, afinal! –A Madame avisou, sorrido. –E vocês me devem uma bola nova também!

E eu quis cair no chão.

(***)

Quando o céu diminuiu a força com a qual castigava a terra, já haviam se passado horas. Por um lado, vimos um pouco das aulas de Dete, que estava estudando as cartas. A Madame não quis nos usar de cobaia por medo de outra visita da tal Serpente, mas Dete parecia ter ido bem adivinhando as cartas da Madame. Foi bem legal de assistir a explicação que Belmira dava para as cartas, seus significados e todas as formas que elas poderiam explicar o futuro, e recomendou que Dete visse tudo o que pudesse ver antes de concluir algo. As respostas enigmáticas também faziam parte, ela disse, pois nada no futuro é completamente claro ou certo, e ela precisava abrir espaço para todas as possibilidades de livre arbítrio.

Por outro lado, Analícia ia ficar uma fera.

Pablo não queria deixar Dete com uma quase desconhecida, mas a mulher de fato sabia o que estava fazendo. Dete já expressava a maior confiança nela, como se fossem antigas conhecidas ou amigas de longa data. Ela riu quando sugerimos que ela era uma grande fugitiva e garantiu que manteria Dete segura. Foi uma ideia bem tosca largá-la, mas foi mais um erro na conta dos milhares. Felizmente, no final, a Madame era de fato uma grande luz.

Quando saímos com uma chuva mais leve, ainda que fria e pingasse como facas no nosso corpo, boa parte da tarde já havia passado. A promessa quebrada com Analícia ecoava em minha mente enquanto eu pensava no que falaria.

—Não é nossa culpa que tenha chovido. –Pablo argumentou. –Analícia vai entender.

Será? Algo me dizia que isso só a deixaria mais irritada.

E quando me aproximei da casa de Berê, uma Analícia estava na varanda abraçando os joelhos sem encarar nada especificamente com os cabelos loiros tampando sua face. Engoli em seco, já imaginando o pior. E eu nem tinha ideia do quão pior tudo estava.

Antes mesmo que entrássemos na casa, a cabeça de Analícia se levantou e ela nos encarou. Eu nunca imaginaria o olhar de ódio que elas nos lançou ao se levantar.

—Analícia -comecei ao me aproximar, mas Analícia andou em passos forte até mim e me empurrou.

—Qual é o seu problema?! –ela esbravejou.

—Ok, com calma aí. –Leo exigiu, se botando na minha frente.

—Não, não tem calma! –ela brigou. –Você prometeu, droga!

—Estava chovendo, Analícia, e –Pablo começou.

—Vocês nem deviam ter ido no primeiro lugar, deviam ter ficado comigo! –ela esbravejou e vi lágrimas rolando de seus olhos. –Eu não sou nem mais importante que a irmã esquisita dele?

Arfamos.

Entenda uma coisa, eu nunca iria permitir que alguém falasse mal dos meus amigos ou, no caso, da irmã deles. Dete sempre foi um assunto delicado e Analícia usar isso contra nós foi horrível. Foi um golpe nas costas. Nós abraçamos ela no nosso grupo, nós deixamos ela andar com a gente e estávamos perto de considerá-la uma verdadeira amiga. Aí ela manda essa.              

—Mas quem você pensa que é? –Emily rebate antes de todos.

—Analícia! –Henrique exclamou horrorizado.

—Como você pode falar uma coisa dessas? –Mel adicionou, as vozes se misturando.

—Você nunca mais fale assim da minha irmã. –Pablo afirmou com força e eu tremi, por um instante. –Sua mãe pode falar que você é a menina mais especial do mundo, mas você não é metade do que a Dete é.

Analícia abriu a boca em surpresa por um instante e quando ela levantou a voz novamente, foi com o veneno que nem eu sabia que ela tinha enquanto a chuva pingava ao nosso redor e nossos pés se afundavam na terra.

—Vocês são só um bando de idiotas que se acham melhores que todo mundo porque tem uma ogra de estimação. –ela despejou. –E eu tenho pena de vocês!

—Não, nós tivemos pena de você, Analícia! –Belle interrompeu, se aproximando da menina, as vozes das duas permeadas de raiva. –Ficamos com dó da menina isolada que nunca está com ninguém, mas parece que descobrimos porquê você não tem amigos.

Analícia soltou um murmúrio de raiva e num ato sem noção empurrou Belle, e foi aí que eu tomei ação.

Eu fui doce com Analícia durante toda a minha vida. Eu perdoei todas as manias que ela tinha, eu relevei todas as vezes em que ela se achou melhor que todos e eu ignorei os problemas dela, pensando que ela tinha salvação. Ela até tinha, mas não queria ser salva. Há um ditado que diz: você pode levar um cavalo para a água, mas não pode forçá-lo a beber. E eu me cansei de tentar fazê-la beber.

Eu empurrei Analícia de volta, indo para a frente de Belle. Eu iria defender meus amigos até a morte seja a doida que estivesse contra nós. E fico muito feliz de anunciar que não larguei essa promessa mesmo depois da morte.

—Pedro? –Analícia me olhou como se estivesse surpresa pelo lado que escolhi.

—Você é maluca. –respondi com raiva. –Nunca mais fale com os meus amigos desse jeito.

Analícia assumiu a maior expressão de dor que eu já a vi fazer, seus olhos derramaram lágrimas contra a chuva e, mesmo assim, eu não senti o menor arrependimento.

—A gente volta a se falar quando você crescer, Analícia. –a encarei uma última vez dentre as lágrimas e puxei Belle para mim, que foi sem reclamar.

O resto do grupo se virou lentamente, todos largando Analícia sozinha como ela deveria estar. Analícia era uma bomba-relógio, e a Madame nos mandou lembrar de quem era o inimigo e quem era o amigo. Analícia definitivamente não era nossa amiga. Descemos a rua e nos recusamos a olhar de volta e ver Analícia nos encarar no meio das lágrimas, o Jumento Voador uma imagem dolorosa do que um dia foi símbolo de amor e humildade que Berenice não conseguiu ensinar para a própria filha.

Belle suspirou em tristeza ao meu lado, se aproximando e ligando nossos braços. Sua cabeça deitou no meu ombro para sussurrar:

—Eu não queria que isso acabasse assim. –ela lamentou.

—Nem eu. –falei de volta, odiando tudo. A briga com Analícia, a visita à Madame, a chuva que arrasava com o meu cabelo. O clima parecia zombar de tudo e os pingos de chuva me lembravam das lágrimas de Analícia.

—Ela mereceu. –Pablo resmungou, as mãos nos bolsos. –A gente nunca devia ter confiado nela.

—É... Meio triste. –Mel falou.

—Ela é de dar pena. –Leo retrucou com raiva.

—E ela merece mesmo. –Emily revirou os olhos.

—Eu acho que fomos muito duros. –Henrique se posicionou. –Mas ela meio que mereceu.

Suspirei.

—Chega de falar disso. –decidi, acreditando que Analícia perceberia seu erro e pediria desculpas. –O que eu quero agora é um bom banho, leite quente e um secador pro meu cabelo.

Risos.

—Só você mesmo, Pedro. –Belle sussurrou no meu ombro.

Sorri orgulhoso.

No final, o sol sempre se reergueria.

Ou não.


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Notas finais do capítulo

NOTAS: Eu não tinha a mínima ideia de que "Pablo" era o nome de um dos ex do Emerson. Como é que ninguém me avisou?
NOTAS: Na ed. 63 a Madame diz "Meu verdadeiro nome não é importante agora" e na ed. 51 ela diz que tem 135 anos, eu só fiz as contas (talvez esteja errada, sou de Humanas ♥). Vocês podem ter detestado, mas eu honestamente gostei de brincar com isso -a Madame é uma PUTA PERSONAGEM. Será que eu a deixei muito OC?
Mas entendam que isso tem uma implicância na timeline de TMJ que são baseadas apenas em mim ok? Quando a Madame vai com Berenice para Sococó da Ema, ela sabia que a dona ia aprontar. Eu acho que ela foi não só para ajudar e orientar os meninos, como que também para libertar os Filhos de Umbra. Mas assim, impressão minha. A esse ponto eu já desisti de canon.



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