Os Filhos de Umbra escrita por Rarity


Capítulo 13
Capítulo Treze: 1989 – 1846 dias antes




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Capítulo Treze: 1989 – 1846 dias antes

Há uma coisa tão inevitável quanto a morte: a vida.

Charles Chaplin

 

31 de Outubro de 1989

Sococó da Ema era uma cidade com diversas peculiaridades. A vegetação, clima, as pessoas, tudo parecia uma vila saída de algum lugar da Europa quando as pessoas iam visitar o lugar. Por conta da grande descendência europeia, Sococó da Ema preservava vários feriados que não se viam tão fortes em outros lugares. Era como um Rio Grande do Sul no meio de São Paulo. O Dia das Bruxas era um grande exemplo disso, era uma noite em que a cidade se enchia de luzes, havia uma feirinha na Praça Principal, todos se fantasiavam e as crianças pediam doces de porta em porta, algo vindo direto dos Estados Unidos.

Eu amava o Dia das Bruxas, mas mamãe sempre me achou muito novo para participar. Como eu já estava bem grande, e já tinha até começado a escola, mamãe finalmente me deixou participar do Dia das Bruxas naquele ano. Eu estava explodindo de felicidade, e estava pensando na minha fantasia quase com um mês de antecipação. Mamãe comprou os tecidos e me levou até Berê para que ela fizesse minha fantasia, e ela aceitou no mesmo instante, sentou comigo na mesa da cozinha e nós dois pensamos numa boa fantasia, com a ajuda de Analícia também. A melhor parte foi que mamãe deixou Leo participar também, contanto que eu prestasse bastante atenção nele, e eu já tinha milhares de ideias para a fantasia dele.

Na terça feira do Dia das Bruxas de 1989, eu só esperava Berê terminar os últimos detalhes da minha fantasia, que eu tinha mantido em segredo de todos os meus amigos. Para amenizar minha ansiedade, mamãe me deixou com Leo na casa de Berenice, e ficamos brincando com Analícia na casa, desenhando em alguns papelões para construir um castelo.

—Podíamos fazer um portão bem grande aqui. –Leo apontou, pegando um giz marrom. –Ele protege a princesa de todas as pessoas más. Teria uma ponte e um...um...um... –Leo parou, estralando os dedos para mostrar que não se lembrava da palavra.

—Fosso? –Analícia sugeriu, parecendo acompanhá-lo, um giz rosa na orelha direita e um vermelho na mão.

—Isso! Um fosso bem grande! –Leo anunciou, caminhando ao redor do castelo. –E precisa de uma grande torre para o dragão que protege a princesa.

Analícia riu, vendo a animação dele ao pegar rolos antigos de papel para fazer as torres.

—É uma ótima ideia. –Analícia concordou, e se virou para mim. –O que você sugere?

Pausei. Quando Analícia olhou meu lado do castelo, me deu um olhar gelado.

—Pedro!

—O quê? –sorri.

—Você fez morcegos no castelo, Pedro. –ela me deu um empurrão de brincadeira. –Morcegos não vivem em muros, bobo.

—Não? –tombei a cabeça. –Onde eles vivem então?

—Em árvores. –ela falou como se fosse óbvio. –No meio da escuridão da floresta.

—Tadinhos. –olhei meus sete morceguinhos, os imaginando no meio da escuridão da floresta, sozinhos, e lamentei por eles imediatamente. –Os meus morceguinhos gostam de luz, de sol e de castelos.

Analícia riu, me deixando desenhar e continuou com suas janelas e borboletas.

—Já sabe sua fantasia? –olhei para ela, que sorriu, bem animada.

—Adivinha, adivinha, adivinha! –ela exclamou, já me balançando.

—Calma, calma, me deixa pensar! –me soltei, enquanto a olhava tentando adivinhar sua fantasia. A opção mais óbvia seria uma fada, mas não parecia que Analícia iria de fada esse ano. –Ah, eu não sei, Analícia, conta logo!

—Eu vou preferir que você veja. –ela falou, voltando a colorir. –Depois que você colocar a sua fantasia, é só esperar para ver a minha. Ficou linda, você vai a-m-a-r!

—Duvido ficar melhor que a minha. –zombei.

—Ah, mas ficou, eu garanto!

—A minha ficou ótima, Lícia. Você já viu a minha? –Leo a cutucou. –A minha vai ser de Peter Pan! Você acha que foi uma boa? Porque eu não quero que fique muito criança, porque eu já sou um adulto-

—Você vai ficar lindo. –Analícia o calou, e bagunçou o cabelo dele em carinho. –E com certeza foi uma boa ideia, você já está quase passando seu irmão! Aposto que vai ficar maior que ele quando crescer!

—Você acha? –meu irmão indagou, surpreso e orgulhoso, eu diria.

—Com certeza. –Analícia o animou, e ele esboçou o maior sorriso do mundo depois disso.

—Viu, Pepê? Vou ser maior que você um dia!

—Duvido muito, tampinha. –impliquei.

Leo veio até mim, e rolamos no que poderia ser considerado uma briga, se todo mundo não soubesse que era nosso jeito de demonstrar carinho um com o outro na maior parte do tempo. Trocamos alguns socos fracos, mas eu acabei dando um cascudos nele e a luta terminou em risos. Nos arrumamos, e o sorriso nos nossos rostos era sinal de que nenhum de nós estava seriamente machucado.

—Garotos. –Analícia balançou a cabeça, sem entender.

Os passos leves de Berenice nos interromperam, e ela chegou feliz no batente da porta.

—Terminei! Quem vai ser o primeiro a se vestir? –Berenice chamou, torcendo as mãos.

Leo foi o primeiro a pular, segurando na mão dela. Eles voltaram para o quartinho de costura, e eu e Analícia continuamos onde Leo tinha parado enquanto ele se arrumava, terminando os rolos-torres. Quando Leo saiu, os passos deles ecoaram pela casa.

—Pedro! –ele gritou, vindo até nós bem rápido. –Olha como eu estou!

A fantasia de Leo era de Peter Pan, com direito ao chapéu verde escuro e a pena vermelha. A blusa era no mesmo tom de verde que o chapéu e tinhas as mangas rasgadas, inclusive com amarrações na gola, um cinto marrom que vinha sobre a blusa, uma calça marrom escura e tênis. Nós tínhamos feito uma espada de madeira em casa, que ele almejava com orgulho agora. Ele estava muito fofo, e rodava para que víssemos todos os ângulos e detalhes de sua roupa.

—Olha só você! –bati palmas. –Ficou lindo, até parece comigo!

—Está tão fofo! –Analícia juntou as mãos no pescoço e tombou a cabeça.

—Eu sei, eu sei. –Ele rodou, consciente da própria beleza que é com certeza uma característica de família.

Francamente, já viram meus pais? Era claro que os filhos nasceriam maravilhosos.

—Eu vou colocar minha fantasia agora, vocês fiquem aqui! –falei, me levantando.

Berenice separava a minha fantasia no momento em que entrei no quarto. Ela sorriu e apontou para uma cortina vermelha que ficava no canto do quarto.

—Pode se trocar ali, querido. Essas aqui são suas roupas, coloque que eu ajeito você. –Berenice sorriu e apertou minha bochecha.

Me troquei rapidamente, e quando terminei o básico saí do trocador e me posicionei em frente à Berenice, que ajeitou o cinto, me colocou o colete e ajeitou a estrela no meu peito e o chapéu. A Jumenta Voadora me mandou olhar no espelho, e eu sorri imediatamente. Minha fantasia era de xerife, uma blusa de mangas brancas com gola alta, uma gravata borboleta, um colete preto por cima com uma estrela, um cinto, calça preta e botas. O chapéu dava o ar que faltava, e eu o abaixei, olhando para Berê e fingindo uma arma com os dedos.

—Jumenta Voadora, a senhora está presa!

Berê riu, leve e doce.

—Chame Analícia para mim, tudo bem xerife?

Concordei, o ato balançando o chapéu na minha cabeça, e saí. Analícia pulou de seu lugar assim que viu. Leo sorriu, e eu rodei, como ele tinha feito.

—Lindo, não?

—Claro, muito criativo. –ele revirou os olhos. –Mas ficou bonitinho.

—Olha, pirralho, me respeita! –brinquei com ele, colocando as mãos na cintura. –Eu sou o xerife e sou mais velho aqui.

—Por um ano, Pedro! –ele reclamou.

—Não interessa, um ano, um dia, mesma coisa! –joguei as mãos para o alto. –Aliás, que horas são? Não vamos nos atrasar pra pegar os doces?

—Tem um relógio na parede da cozinha, Pepê. –ele deu de ombros. –E o sol ainda está se pondo, então a festa não começou ainda.

Fiz que sim, e até podia ter ido olhar as horas, mas não sabia entender os números o suficiente para saber as horas. No máximo sabia contar um, dois, três, quatro, e já era mais que Leo. Felizmente, eu sou da roça, e quem precisa de números se o céu era o maior relógio que existia?

Voltei a me sentar com Leo, organizando o castelo. Desenhamos outros morcegos no castelo e fizemos um dragão enrolado no rolo de papel, o enchendo de cores coloridas. Em minha cabeça, o dragão se soltava e atacava o castelo, e o fogo brilhava e destruía, a princesa gritava em sua torre, e o fogo continuava, subia, subia...

—Como eu estou? –Analícia apareceu na porta.

Ela estava de chapeuzinho vermelho. A saia era branca e volumosa e o corpete era branco e vermelho, cheio de laços pretos. As alças eram pretas e finas, e a capa vermelha brilhante completava o visual. O cabelo loiro longo de Analícia combinava com o visual, e ela tinha uma sombra brilhosa.

—Uau. –falei, surpreso.

Analícia riu e rodou, quase brilhando.

Berê veio logo depois, até com uma fita métrica no pescoço e parecendo extremamente orgulhosa ao olhar Analícia. Ela se abaixou para ajeitar a saia do vestido, os olhos brilhando.

—Você está linda, filha. –Berenice sorriu, as mãos nos ombros de Analícia.

—Obrigada. –ela agradeceu. –Vamos ficar parados ou vamos pedir doces?

Me levantei imediatamente, a puxando para a porta.

—Tchau, Jumenta, estamos indo!

Leo fechou a porta atrás de mim com os risos de Berenice ecoando na casa. Se eu tivesse que apostar, sabia que ela ia arrumar os doces que ia dar para as crianças que batessem na porta nas Tupperwares, enquanto nós estávamos arrumando doces de outra forma, enchendo as sacolas pretas que estavam conosco.

Assim que chegamos na cidade, toda iluminada, tivemos que ir nos apertando entre as pessoas que estavam ali pela feira. Doces assustadores, caveirinhas com nomes, poemas, gente cantando, a praça ficava encantadora, e as esquinas tinham abóboras com velas para dar um clima. Agarrei na mão de Leo e de Analícia para não nos perdemos.

—Pedro! Leo! –uma voz gritou, nos chamando. Girei procurando, mas só fui perceber quem era quando braços me esmagaram num abraço. Mel.

A morena usava um vestido rosa de princesa cheio de rendas e brilhos, corpete justo e mangas brancas caídas ao redor dos ombros, com vários detalhes em dourado, que combinavam com as sapatilhas, luvas rosas (sério?) e uma coroa de plástico.

—Oi, Mel? –olhei para ela de cima a baixo. Não é como se ela estivesse feia, mas ainda assim... –Parece que um unicórnio vomitou em você.

Ela me deu um tapa de brincadeira, e se virou para Leo.

—Awn, você está tão lindinho. –ela foi afinando a voz, como se falasse com um bebê, e apertou uma bochecha de Leo. –Ficou ótima, Leo.

—Obrigado. –ele respondeu, encantado.

—Você também está linda, Analícia. –Mel se virou para ela. –Vermelho super combina com seu tom de pele.

—Obrigada. –Analícia cruzou os braços, emburrada. Mel pareceu perceber o clima, e fez uma careta.

—Então... Não vão pegar doces? –Mel perguntou, mudando de assunto para disfarçar o clima. –O resto da turma está no quarteirão de cima, na casa do Seu Ivair. Vocês vêm?

—Sim! –Leo exclamou. –Vamos?

—Agora? –Analícia olhou para nós.

—Você quer vim? –fiz uma careta enquanto olhava para ela, sabendo sua resposta.

—Não, vou ficar por aqui mesmo. –Analícia disse antes de sair, e antes que eu pudesse ir atrás dela, ela se perdeu entre as pessoas da feira.

Suspirei, colocando as mãos na testa.

—Vamos então. –me rendi, e Mel me puxou pela mão pelo quarteirão.

Avistei Laura de joaninha nos brinquedos, balançando. Natália estava de abelhinha. Elas vieram combinando, eu não acredito. Eu não conseguia vê-los, mas ouvia Diego e Eduardo rindo como gralhas no meio da feira, e pelo jeito que algumas pessoas eram jogadas de lado, eu os imaginava correndo.

Encontrei minha quadrilha perto da casa de Dona Marileide, jogando rolos de papel por cima do telhado, e rindo com a arte que faziam. Arregalei os olhos, mas Leo me ignorou completamente, e pegou um papel com Pablo antes de jogá-lo, mirando o telhado e acertando a porta da frente.

—Vocês ficaram loucos?! –puxei Leo pela mão e olhei todos os outros seis.

Jesus, relaxa. –Emily revirou os olhos. –É tradição, Pedro.

Emily estava vestida de marinheira, saia azul volumosa, blusa branca com mangas também volumosas e uma blusa branca com listras vermelhas por baixo, o laço em volta do pescoço e o chapéu de marinheiro branco com azul.

—É errado. –cruzei os braços. –Podemos entrar em problemas.

—E iríamos sobreviver. –Henrique revirou os olhos. –Vamos, Pedro, é divertido, tente um pouco.

Henrique estava fantasiado de múmia, usando o que parecia vários metros de tecido, cheios de nós, que cobriam o corpo todo o corpo dele, exceto os olhos, boca, mãos e pés. Algumas tiras soltas caíam de seus braços e de seu corpo.

Pablo estava de astronauta, calças brancas bem folgadas e largas com bolsos, o cinto apertava na cintura e era ligado à duas correias. Tinha um zíper no meio do peito dele, e com dois emblemas costurados, uma gola preta que brilhava e um óculos estranho.

Dete estava de anjo, claramente a que mais se arrumou de todos nós. O cabelo dela estava cacheado, com uma coroa de algodão ao redor da cabeça, um vestido leve branco com dourado, laço dourado na cintura, mangas transparentes até os pulsos e asinhas de mentira nas costas.

Belle estava de índia, um vestido marrom escuro cheio de franjas e com um laço no colo, além de uma faixa na cabeça e botas grandes e peludas. Apesar de fofa, os olhos de Belle destoavam do resto da fantasia, e eu me prendi à eles assim que olhei para ela.

—Ela não quis dar os doces, Pedro. É doces ou travessuras. –Pablo ironizou, mostrando uma sacola grande cheia de rolos de papel.

Revirei os olhos.

—E os doces, conseguiram?

Belle sorriu, mostrando uma sacola preta que eles estava usando para carregar os doces de todos.

—Ir separados dá mais doce. Nós todos podemos cobrir um quarteirão inteiro.

Eu ri, finalmente, da animação dela.

—Tá bom. –me rendi. –Qual a próxima casa?

—Esse é o espírito! –Emily comemorou. –Casa do Seu Odelmo, lembre-se de ser bastante educado e cuidado com o cachorro.

—Pera, cachorro? –olhei para eles de novo, que já saíam correndo me largando com a casa do Seu Odelmo, um velho praticamente surdo que morava com uma coisa-cachorra-gigante que atacava tudo que existia.

Droga.

Pisei na escadaria da entrada no maior silêncio possível, atento a qualquer barulho que seja semelhante a quatro patas e um rabo e dentes pontudos que mergulham na pele e-

—Boa noite. –Seu Odelmo falou.

E naquele momento, eu simplesmente fui eu.

Sorri, doce e infantil, mostrei a sacola vazia, o olhei cheio de expectativas e perguntei:

—Doces ou travessuras?

Seu Odelmo pareceu pensar e me avaliar, antes de pegar um pote perto de sua porta e me dar alguns doces, a grande maioria pirulitos.

—Obrigado! –agradeci, pulando de animação.

Meus primeiros doces. Meus primeiros doces!

Seu Odelmo bateu levemente a mão direita no meu ombro esquerdo.

—Te conheço desde “pequeninim”, rapaz. Faça bom proveito dos doces. –ele disse, parecendo pensativo.

E nesse momento, a coisa apareceu. Preta, rápida e com os dentes à mostra. Eu nem pensei, só corri e gritei. Como já tinha ganhado os doces, meus amigos não podiam ficar muito irritados comigo por ter abortado a missão e sair gritado pela rua. Assim que o cachorro saiu da casa, meus amigos também saíram correndo, descendo pela rua. Só parei um quarteirão depois quando uma mão me puxou para atrás de uma árvore, e o cachorro desapareceu, os latidos virando a rua.

—Ufa. –arfei.

Henrique sorriu.

—Cuidado aí, Pedro.

—Acho que você acabou de salvar minha vida.

Eu convivia diretamente e diariamente com pessoas dramáticas. Depois de ver tantas vezes o mesmo teatro, eu aprendi as cenas e tinha o direito de fazê-las de vez em quando.

Henrique riu, pelo menos, sem ligar.

—Cão que late não morde, Pedro. –ele brincou, enquanto saíamos do esconderijo.

—Só mata. –ironizei.

—O. Que. Foi. Aquilo? –Dete questionou, pausadamente, ajustando a coroa de algodão na cabeça.

—O Bravo. –Henrique afirmou. –É o nome dele.

—Bravo? –Leo fez uma careta, que eu li como “Sério? Cadê a originalidade? Nome mais sem sal, sem açúcar, sem tempero.”

—É. Bravo. Ele deve voltar daqui a pouco, então precisamos sair daqui.

Belle brincou com uma mecha do cabelo.

—Eu acho que vamos ganhar mais doces se formos para parte central da cidade. –ela apontou em direção à feirinha. –Ou, podíamos garantir mais alguns doces e ir direto comer o que sobrou dos doces da Berê.

Nos olhamos.

—Podíamos fazer os dois. –sugeri. –Eu ainda quero pegar mais doces.

—Terminamos o centro da cidade e depois direto para Berê. Fechou? –Pablo olhou para todos nós, esperando uma confirmação. Balançamos as cabeças.

—Ótimo! Esse negócio de bater de porta em porta dá uma canseira! –Emily bocejou ao final da frase, procurando se apoiar no ombro da prima.

Mel revirou os olhos e puxou a mão que estava em seu ombro, levando Emily puxada com ela, algo sobre querer mais doces e querer adoçar a vida.

—Boa sorte para vocês. –Pablo nos saudou, saindo com Dete.

—Para todos nós. –Belle balançou a mão em um aceno. –Eu e Henrique de um lado, você e Leo do outro?

—Parece um bom plano para mim.

(***)

—Isso é balinha Chita? –Belle perguntou enquanto abria a balinha amarela e fazia uma careta. –Estranho.

—Eu quero um pouco. –Mel pediu, e ganhou cinco balinhas Chita, mascando elas feliz.

—Olha, eu ganhei um leão! –Henrique se aproximou de todos nós, mostrando o cartão de leão que ele ganhou no seu chocolate surpresa.

—Você ganhou um chocolate surpresa? –Pablo o olhou horrorizado. –Ah não, agora é meu!

—Awn, eu ganhei uma Juquinha, olha! –Leo me puxou, me mostrando as várias balinhas com o menino loiro.

Estávamos saindo da feirinha, indo comer o que sobrou dos doces da Berê. Tínhamos demorado mais que o esperado na cidade, mesmo depois de pegar doces, a feira estava cheia de cores e músicas e danças. Belle acompanhou a apresentação de balé da escola de Cristina e Tia Gina, que era sempre anual nessa época do ano, no meio da praça, atraía vários expectadores e era muito linda de se ver, além das outras apresentações que rolavam pela feira. Henrique brincou com as pernas de pau de outro grupo, e chamou todos nós para participar. Mel olhava encantada algumas máscaras, e ela deve ter experimentado umas dez antes de comprar uma preta com lantejoulas usando o dinheiro da avó. Ciganos fizeram o dia de Dete, que teve a mão lida e saiu dali como se tivesse visto mágica, uma cigana até uma bola de cristal para ela. Eu achava tudo aquilo meio falso, mas a cigana e Dete pareciam ter tido uma conversa muito profunda e ela saiu com a bola abraçada ao peito. Emily estava felicíssima comendo doces, enquanto Leo e eu ficamos indo de lá para cá no parquinho, na feirinha e nos doces.

Mas a festa precisava acabar e nós tínhamos que voltar para casa antes que ficasse muito tarde, então resolvemos aproveitar o resto do dia (noite?) na Berê, e íamos dividindo os doces no caminho.

—Quer um chiclete, Dete? –Pablo ofereceu à irmã, que parecia na Lua, com o olhar desfocado e andando na direção que Pablo a levava.

—Hum? –ela murmurou, e ele estralou os dedos na frente dela.

—Chiclete, Dete?

—Ah, sim. Morango? –ela estendeu a mão e aceitou o doce.

—Olha, eu consegui um Guarda-Chuva de chocolate! –Emily mostrou para nós o pequeno guarda-chuva.

—Ah, fala sério, o chocolate desse negócio é horrível. –Henrique reclamou. –Parece pasta de chocolate com água.

—E dá pra fazer pasta de chocolate com água? –Mel zombou, comendo um guarda-chuva com prazer e mostrando a língua suja para ele depois. –Chocolate já não tem água?

—Quem diria que o Rick seria mais enjoado com chocolate que a Mel. –Belle observou, disfarçando um riso enquanto comia outra bala Juquinha.

—Ei! –Mel a deu um empurrão.

—O que quer dizer com isso? –Henrique reclamou.

—M&M! –Leo anunciou, puxando da sacola uma mão das guloseimas e salvando Belle.

—Não creio! –Pablo abriu a boca, surpreso, e correu para pegar algumas. –Meu Deus, isso é o paraíso. Vamos decretar Dia das Bruxas todo dia!

—Concordo. –Mel riu, a boca lambuzada de chocolate.

—E tá sujo a... –Emily passou a mão na boca da menina e levou o chocolate para o nariz dela. –..qui.

—Besta. –Mel reclamou, limpando o nariz.

—Que bela princesa. –provoquei.

—Ai, a casa da Berê tá muito longe?! –Mel reclamou, revirando os olhos.

Rimos dela, e continuamos a caminhada, provocando o lado moçinha de Mel, que se irritava e nos mandava parar, o que só nos fazia implicar mais, até ficar chato e Mel estar com uma carranca de emburrada bem óbvia. Duraria cinco minutos, no máximo. Nós não conseguíamos ficar bravos uns com os outros, por mais que devêssemos de vez em quando. Fomos apreciando o silêncio da mata, o brilho da lua e a calmaria da estrada.

—“Pela estrada a fora, eu vou bem sozinha...” –Belle começou, balançando ao vento.

—E você está sozinha? –olhei pra ela.

Ela revirou os olhos.

—Pela estrada a fora, eu vou com os amigos... Vamos pegar doces lá na Be-re-ni-ce. Ela mora longe, o caminho é deserto, e o lobo mau passa aqui por per-to. –ela cantou.

—Pela estrada a fora... –e logo todos cantávamos juntos, desafinados e fora de sintonia, mas parecia combinar.

Pela estrada a fora, eu vou com os amigos

Vamos pegar doces lá na Be-re-ni-ce

Ela mora longe, o caminho é deserto

E o lobo mau passa aqui por perto

—Pablo! –Dete gritou, assustada.

—O que foi? –ele olhou para os lados, procurando o que a assustou.

E Dete saiu correndo para o meio da floresta, ignorando nossos chamados. Fomos caminhando em direção a floresta, mas Dete nos ignorou completamente em favor de entrar à fundo no meio das árvores.

—Droga, o que ela estava pensando?! –Pablo resmungou. –Eu vou atrás dela.

—Eu vou com você. –afirmei, indo para o lado dele.

—Agora? –Leo nos olhou assustado. –Está no meio da noite, e a floresta não deixa entrar quase nada de luz! Nós vamos nos perder e ficar de castigo o resto da vida!

—Mas a Dete foi pra lá! Precisamos fazer alguma coisa! –Emily exclamou.

—Um funeral, não uma busca! –ele bateu o pé.

—Leo! –Pablo exclamou.

—Vamos todos de uma vez! –Belle trotou na frente de nós, entrando em primeiro lugar na floresta.

Fomos bem devagar atrás dela, gritando o nome da Dete. As árvores eras espaçosas, mas as copas eram altas e as raízes grossas. Não entrava muita luz da lua e ficava fácil de tropeçar nas raízes, o que aconteceu várias vezes no caminho, até que Mel reclamasse de sujar o vestido e nós a mandássemos ficar quieta.

Dete apareceu, eventualmente, perto do penhasco, olhando e indo de um lado para o outro, parecendo ou perdida ou procurando algo/alguém. Ela mal percebia nossa presença.

—Dete! –Pablo correu para abraçar a irmã. –O que aconteceu? O que você viu?

—Eu...- ela franziu as sobrancelhas. –Vi... Alguém.

—Na floresta? –Leo perguntou.

—Parecia precisar de ajuda. –ela justificou. –Mas... Sumiu.

—Dete, não pode ficar correndo nas florestas para ajudar pessoas. Podem ser pessoas más que querem fazer algo ruim com você. –Pablo explicou, exasperado. –Não faça mais isso.

—Mas... –ela começou.

—Sem “mas”. –Pablo encerrou o assunto. –Vamos voltar e agradecer por você não ter se machucado.

Leo olhou para mim e fez “Louca” com os lábios, e eu dei um tapa na cabeça dele em retaliação. Fiz “Calado” com os lábios para ele, que me deu língua. Entendimento de irmãos. Eu não o deixaria insultar Dete ou Pablo porque eram meus amigos, mas me preocupei também. Dete agarrou na mão dele, mas continuava olhando para trás, esperando algo.

—Para sair daqui... –Henrique olhou para nós. –Alguém tem alguma sugestão?

—Que tal você usar esse corpo para alguma coisa? –Belle sugeriu. –Dá pra subir na árvore e ter uma vista de cima. Aí é só seguir o lado da estrada. Não pode estar tão longe assim.

—‘Xá comigo! –ele anunciou, já pulando no pinheiro mais próximo.

Henrique subiu com a maestria de alguém que passava o dia subindo nas coisas. Chegou ao topo rápido, e procurou a estrada.

—É para aquele lado. –Henrique apontou norte. –Dá pra ver a casa da Berê daqui de cima.

—Desce logo! –Emily gritou. –Antes que mais alguma coisa aconteça.

Henrique sorriu como o dono do mundo e desceu com ainda mais maestria. Exibido.

—Vamos?

O seguimos mata a dentro, ou seria mata a fora? No final, consegui ver entre as árvores a luz da Lua e a estrada, e um suspiro de alívio saiu de mim antes que eu percebesse. Agora era só ir para a Berê bem rápido para pedir os doces e me preparar para a bronca que minha mãe ia dar em mim e Leo por chegar em casa tão tarde. Mesmo assim, valia a pena a bronca em troca dos doces de Berenice.

Graças à Deus, Berê ainda estava em casa quando chegamos, e parecia surpresa por ainda estarmos na rua tão tarde. Ela abriu a porta e me olhou como se fosse a última vez.

—Pedro, sua mãe está tão brava... –ela murmurou. –Ela acabou de passar aqui te procurando.

Olhei para meus amigos aterrorizado. Eu ia morrer. Literalmente. Meu primeiro e último Dia das Bruxas.

—Bem... Já que vamos morrer, Dona Jumenta Voadora... –Leo começou, puxando a manga da blusa dela. –Podemos ficar com o resto dos doces?

Berenice riu.

—Eu suponho que sim. Fiquem aqui que eu vou pegar as vasilhas, sua mãe não deve demorar a voltar. –ela piscou para nós, que nos sentamos na varanda, nas escadinhas da casa de Berenice.

O cavalinho ainda estava no mesmo lugar, nos olhando de seu posto no quintal.

—Então, quanto tempo ainda temos? –Henrique se dirigiu à nós.

—Tempo suficiente para mais alguns doces. –Belle se espreguiçou. –E depois o sono da morte para descansar, eu nem sinto mais as pernas.

—Engraçadíssimo. –Pablo reclamou. –Sério, Belle, muito bom.

—Ah, parem de reclamar. –Emily nos calou. –Foi divertido. Se eu morrer hoje, morrerei feliz e de barriga cheia.

Gargalhamos. Era um bom ponto de vista.

—E eu não vou precisar ir para a escola. –Leo continuou. –Será que no céu tem bola de futebol?

Dete se aconchegou em Pablo na escadaria, e eu não dava cinco minutos para ela dormir, pela expressão de cansada que ela carregava. Sorte a dela, ela não ia morrer. Pablo ia morrer no lugar dela.

—Bem, deve dar pra fazer uma bola com as nuvens, certo? Vai ficar meio mole e frouxa, mas vai servir. –Henrique apontou.

Berenice voltou com as vasilhas, uma pilha delas. Ela se sentou conosco nas escadas, e nos entregou as vasilhas que nós abrimos no mesmo instante, com fome mesmo que tivéssemos quase esvaziado as sacolas no caminho. Oito bocas sedentas por açúcar aqui!

—Analícia já voltou? –perguntei.

—Ah, sim. Faz um bom tempo. Tomou banho e se deitou, disse que vocês se perderam. –Berenice falou. –Trouxe bastante doce, porém. Parece que a noite foi produtiva para todos. –ela brincou. 

—Eu preciso trocar de roupa, também. –disse à ela. –Deixei minhas roupas aí.

—Berê, nossas fantasias fizeram o maior “suzeso”! –Leo elogiou. –Você é incrível!

—Sucesso, Leo. –Emily corrigiu, lambendo os dedos.

—Você fez as fantasias deles, Berê? –Mel fez beiçinho, parecendo Belle com o drama.

—Eu faço a de vocês ano que vem, Mel. –ela beijou o topo da cabeça de Mel.

—Eba! –Mel bateu palmas. –Ano que vem vai ser demais!

—PEDROOOOOOOO! –minha mãe gritou da esquina.

Eu podia ver minha mãe correndo pela rua, os cabelos balançando e o grito dela levantou poeira, eu juro. Engoli em seco o doce em minha boca e suor gelado escorreu pela testa.

—Que ano que vem?


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