Ethereal escrita por Ninsa Stringfield


Capítulo 14
Décimo Terceiro




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ANTES

O silêncio a acordou.

Mas antes disso, havia o sangue, escorrendo pelo seu queixo e rasgando sua língua enquanto queimava sua garganta. O sangue que subia em um mar de fúria, seus olhos não se focando em nada. O mundo era uma mistura de escuridão com luz, numa batalha infinita que borrava sua visão, como se um véu caísse dos céus e a abraçasse com força.

E também havia a pressão em sua barriga, como se uma corda fosse apertada ao redor de seu corpo. Ela queria gritar, queria cuspir o sangue no rosto deles, em suas mãos imundas que agora percorriam seu corpo sem pudor algum. Eles a apertavam e seguravam seu pescoço, ela engasgava e seus olhos gritavam tudo que sua boca não conseguia. Ela se debatia enquanto o véu a envolvia com mais força, enquanto faces terríveis tentavam penetrá-lo, seus sorrisos parecendo cortes em feições cruéis.

E ela continuou lutando, ofegante enquanto seus olhos já impedidos de enxergar ficaram completamente cercados pela escuridão, e então ela caiu. Não foi uma queda violenta, mas rápida e completamente sem aviso, o suficiente para fazê-la dar um único grito. Ela tateava o chão enquanto engatinhava, tentando desesperadamente encontrar um ponto de luz.

Sua mente, até então, vinha sendo preenchida por ruídos indistinguíveis que testavam seu limite, a ensurdecendo. Agora, no entanto, tudo que ela ouvia era o bater das asas. Quando virou o rosto na direção do barulho, seu corpo foi jogado no ar por um chute, e ela foi lançada na escuridão até atingir o chão com força. Então abriu os olhos apenas para encontrar a luz escaldante do sol. Ela pôs a mão na frente do rosto, enquanto uma brisa leve dançava com os fios de seu cabelo.

Ela ergueu o tronco, retirando a mão do rosto para tentar descobrir onde estava. Demorou alguns segundos para conseguir ajustar a visão, e quando o fez, se viu de frente a um campo de relva alta. Tudo era verde, azul e dourado. E o sol brincava com sua pele enquanto acariciava-a com seus raios. Ela ainda ouvia o bater das asas, que parecia vir de lugar nenhum e ao mesmo tempo de todos os lados. Era como se a terra estivesse sussurrando uma canção para ela, as palavras velhas demais para que ela conseguísse compreender.

De repente, ela se sentiu subitamente cansada, e como se sentia segura o suficiente naquele campo, longe das faces e mãos que a agarravam, ela se permitiu deitar novamente no chão, o corpo desaparecendo em meio a relva. Fechou os olhos, e o barulho pareceu ficar mais próximo, mais insistente. Então os abriu novamente, não conseguindo controlar a própria curiosidade. Incrivelmente, já era noite. E o céu noturno era abençoado apenas por uma única e solitária lua cheia, que parecia maior do que realmente era.

Ela se apoiou nos cotovelos, a cabeça jogada para trás enquanto observava aquela esfera tão brilhante. Ela não tinha percebido até então, mas quando abrira os olhos, o bater insistente das asas do pássaro desconhecido haviam cessado, e ela se via de encontro com apenas os murmúrios das árvores e da vegetação, um sopro leve da noite; agora, no entanto, as asas voltaram, e finalmente, vieram acompanhadas de seu dono.

Seu corpo parecia agir por vontade própria enquanto ela levantava para enxergar melhor. Não era uma ave exatamente grande, mas da altura que se encontrava, lançava uma sombra no chão que conseguia engolir a garota inteira. E ela continuou voando, fazendo desenhos na superfície tão distante da lua, até que se deu por satisfeito e começou a planar. A ave descia lentamente, e suas asas não pareciam mais tão desesperadas quando finalmente se alinhou a altura dos olhos dela e pousou sobre o ombro dela.

Quando suas garras tocaram sua pele, fizeram isso com delicadeza, como se tivesse medo de machucá-la. Agora ela sabia de que pássara se tratava: um corvo. Tão exuberante e negro quanto a noite, sua plumagem sendo movida pelo vento como as ondas do oceano. A garota fez carinho na ave, e esta, por sua vez, se deslocou até a mão da menina, de onde pôde ficar de frente para ela e finalmente fazer o que viera ali para fazer: a saudar como uma reverência.

E então houve o tiro.

De lugar nenhum e ao mesmo tempo de todos os lados.

Ela deu um salto para trás quando a ave caiu de suas mãos, as asas mortas agora eternamente abertas. Ela conseguia ouvir a própria respiração, o peito doendo enquanto seu coração batia com força. Havia sangue espirrado em seu rosto, e ela caiu de joelhos. Era uma mistura de escuridão com sangue com penas com vegetação. Quis vomitar, mas sua garganta voltou a arder, e ela sentiu novamente o sangue rasgando sua língua enquanto escorria de sua boca.

Diane pôs as mãos no peito enquanto caía. De alguma forma, ela sentiu como se o tiro também a houvesse acertado. Então fechou os olhos. Não havia mais árvores, ou o sussurro destas; não havia mais noite, ou o bater de asas; havia apenas o silêncio.

Então, quando seu coração deu a batida final, lutando para bombear o sangue que se apodrecera em suas veias; ela acordou.

***

Inesperadamente, ela não acordou desesperada ou gritando. Na verdade, ela se encontrava em um estado de calmaria, como se estivesse numa espécie de transe. O máximo de perturbação que apresentou foi abrir os olhos de súbito, apenas para encontrar Dorian sentado de costas para ela do outro lado de uma fogueira.

Ela não se sentia nem um pouco cansada, como se tivesse adormecido por anos, mas sentia frio. Muito frio. Como se tivesse acabado de emergir de um lago congelado. Diane ergueu o tronco e se sentou, puxando a coberta fina se enroscara na noite anterior para mais perto do rosto. Se Dorian percebeu o movimento, ignorou.

Ela revirou os olhos e encarou a mata ao seu redor. Ela e Dorian haviam andado por longas horas antes dele se dar satisfeito por aquele lugar, bem no meio de uma floresta bem fechada - quase chegando a ser claustrofóbica -, e longe de qualquer moradia ou clareira que pudesse chamar a atenção para eles. Também tiveram o cuidado de percorrer todo o caminho até ali longe de estradas e circundando a cidade, passando por terrenos difíceis e íngremes. O que não pareceu preocupá-lo mesmo que apresentasse uma grande dificuldade para ela.

Dorian permaneceu calado pelo caminho todo. A não ser quando parava para dar-lhe ordens ou sussurrasse para que ficasse quieta quando um grupo de pessoas cruzavam com eles pelo caminho. Diane obedeceu a tudo o que dizia porque simplesmente não tinha forças para discordar. Ela caminhara até ali como um fantasma, a cabeça baixa e o rosto encoberto pelo capuz como se tudo o que ela fosse era sombras.

Ela agradecia por não ter acordado com nada além de uma leve ressaca depois da noite que teve. Sua cabeça doía, era verdade, mas depois dos socos que levara, ela se surpreendia por ainda conseguir ficar de pé. Diane retirou a mão de debaixo da coberta e tocou o próprio rosto com a ponta do dedo frio. Ela sentia o rosto quente apesar de tudo, onde o hematoma inchava a lateral de seu rosto. Sabia que também estava com um olho roxo e sua perna ainda doía dos arranhões de quando fora jogada no chão.

Diane abraçou o próprio corpo, apoiando o queixo em seu joelho. Ela ainda não tinha chorado nenhuma vez e não pretendia chorar agora, mas a dor se enraizava em seu peito, e ela se perguntou se sentiria novamente o conforto que sentira na estalagem de Bev. Se sentiria o amor que recebera da mulher de qualquer outro ser humano.

— Teve um pesadelo? - perguntou a voz de Dorian, acordando-a de seu devaneio. Ela virou o rosto para ele, mas ele ainda estava de costas, o que fazia sua voz parecer muito mais baixa.

Se abraçou com mais força, voltando a olhar para o outro lado.

— Acontece com os melhores.

Ele deixou a cabeça pender para a frente, mas ela não podia ver o sorriso que ele deixou escapar em seu rosto. Era um sorriso de falsa solidariedade, mas realmente não importava, porque ela não conseguia ver.

— É normal - revelou ele - Ficar em trauma é normal nessas situações.

— Não estou em trauma.

— Acontece com as melhores pessoas - rebateu ele.

Ela suspirou revoltada.

— Não tente... - começou ela com raiva - Não finja entender que sabe pelo o que estou passando!

— Mas eu entendo - ele se virou para ela pela primeira vez. Não havia qualquer sinal de compreensão em seu rosto, ou de compaixão. Ele apenas a encarava impassível como sempre.

Ela riu em desprezo, o ódio e rancor escorrendo pela sua boca como veneno.

— Como você poderia? Você é um homem - ela disse a palavra como se a esta a causasse ânsia - Nenhum de vocês sabe o que é isso. Nenhum de vocês sabe como é viver num mundo que foi construído para que você não fosse nada além de um... além de um... objeto - ela teve dificuldade em encontrar a palavra certa, tamanha era sua raiva.

— Você está com raiva de mim por que sou um homem? - ele questionou como se realmente quisesse saber.

E Diane não aguentava isso. Não aguentava a segurança dele e sua grandeza indestrutível quando todo seu mundo estava se partindo ao meio. Quando ela entendia finalmente que ela não poderia ser nada na vida além de miserável, e ele estava ali. Parado com aquele cabelo prateado como se nada no mundo pudesse ou ousasse o destruir.

— Sim! - berrou ela - Sim. Eu te odeio porque você é um homem. Te odeio porque estou presa nessa porcaria de floresta com você e te odeio porque toda a merda que me aconteceu nas últimas vinte e quatro horas foram sua culpa! Te odeio porque me manda ficar quieta e porque eu tive um pesadelo - as palavras vinham sem nexo agora. Ela as jogava em seu rosto porque sabia que não aguentaria aquela viagem se não o fizesse. Ela sabia que não aguentaria aquela vida se não jogasse isso no rosto de alguém - E te odeio porque você tem uma porcaria de um segredo com Bev, e nenhum de vocês têm o mínima de decência para me contar!

Em resposta. Ele apenas respirou fundo. Então se levantou e caminhou até ela. Seus passos eram largos, e eles não estavam tão longe assim, então ele só teve que dar dois passos completos para se por ao lado dela de pé. Diane teve que jogar a cabeça para trás para poder encará-lo. Ela não mais abraçava suas próprias pernas, e deixava os braços ao lado do corpo enquanto se sustentava com as mãos em punho contra o chão.

Ele não parecia bravo, não parecia sentir graça ou, por sinal, não parecia sentir nada. E tudo o que fez ao chegar do lado dela foi jogar uma coberta dobrada em seu colo. Ela encarou o objeto com as sobrancelhas franzidas.

— É o meu cobertor - explicou - Você estava tremendo como um graveto irritante enquanto dormia.

Ela pensou em recusar, ou cuspir em sua cara que não precisava de nada que viesse dele. Mas isso não era verdade. Então ela desdobrou a coberta e se embrulhou nela. Seu corpo todo agradeceu descaradamente.

— Essa é sua única reação? - insistiu ela. Poderia estar com menos frio agora, mas isso não queria dizer que esquecera de sua raiva - Isso é tudo o que tem a dizer?

— Sim - ele respondeu apenas, querendo visivelmente que ela deixasse o assunto de lado. Então se virou e voltou para sua posição inicial, agora deitando com a cabeça apoiada em um tronco largo que encontrara e arrastara até ali.

— Bev disse que conhecia esses caras que estão me perseguindo - tentou ela, mais uma vez - Esses seus primos ou familiares doentios. Ela disse que isso já tinha acontecido antes - ele se arrumou no chão de terra, cruzando as pernas esticadas e pondo os braços atrás da cabeça - O quê vocês estão deixando de me contar?

Ele suspirou como se estivesse cansado e impaciente. Com apenas as chamas da fogueira o iluminando, seus olhos azuis bruxuleavam num tom de castanho. Quase num tom alaranjado como os dela própria.

— Não acha que se fosse necessário nós já não a teríamos contado?

— Eu não me importo se é necessário! - esbravejou ela - Eu sei que tem alguma ligação com o que está acontecendo agora comigo, então eu tenho todo o direito de saber.

Dorian finalmente fechou os olhos.

— Você vai - anuiu Dorian - Quando chegar a hora, você vai saber de tudo.

— E quando vai ser isso?

— Logo.

— Só isso? Logo?

— Sim.

E isso foi tudo. Dorian virou para o lado e fingiu dormir. Diane socou as cobertas e também se deitou virando para o lado aposto, fingindo dormir. E cada um ficou absorto nos próprios pensamentos. Dorian refletia o quanto mais aguentaria a presença daquela garota e tentou juntar forças para cumprir com a promessa que fez a Bev. Diane refletia o quanto mais aguentaria a presença daquele garoto e tentou entender o sonho que tivera a pouco, quis entender o significado do corvo e do tiro que tirara-lhe a vida.

O que Diane falhava em notar, no entanto, era a sombra que espreitava a poucos centímetros de seu corpo, dançando sob as chamas que se extinguiam pouco a pouco.


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