1848 escrita por Brioche


Capítulo 7
VII - Adendo




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20 de abril de 1848, Paris.

Aquela culpa parecia impregnar meu corpo com uma essência asquerosa que Katerine repudiava. Não era o perdão divino ou a benção do tempo que livrariam minha alma daquele rastro de morte.

Perdi as contas das noites em que xinguei aos céus e amaldiçoei todos que haviam partido e não estavam lá, vivendo a minha dor, o sofrimento que assolava a mente.

Havia perdido todo o dia a perambular pelas vielas de Paris, tentar encontrar naqueles paralelepípedos e na sujeira a esperança que um dia eu tivera. Tudo em vão. A cidade destruída não era a mesma que eu um dia reinei e o eu derrotado já não era nem rei nem maltrapilho, senão um pobre diabo largado à própria sorte.

Na minha peregrinação sem rumo, acabei por ser levado inconscientemente pelas minhas pernas até a antiga casa de Jean Fauchelevent.

Arruinada.

Não emanavam nada do conforto e da imponência de 11 anos antes. Tudo reduzido a escombros e cacos coloridos. Toda lembrança quebrada em milhares de pedaços reluzentes.

Esmurrei o pedaço de ébano queimado que um dia fora a porta da moradia e desejei, naquele instante, nunca ter colocado os pés naquela amaldiçoada casa.

Maldito seja aquele escritor.

Fugi de lá. Fugi com medo de reviver todos aqueles anos. Com medo de lembrar que eu os havia condenado a serem infelizes. Com medo de recordar que eu fora feliz entre as paredes poéticas daquele lugar.

Cheguei ofegante no casebre que dividia com Katerine e adentrei incerto se minha companheira já havia chegado.

Havia. Katerine estava lá. Talvez nem tivesse saído naquele dia. Trazia o cobertor enrolado no corpo e seu grosso e velho volume da enciclopédia no colo. Ela não estava, no entanto, me esperando.

Ela me encarou com os olhos castanhos-mel mortos e logo voltou a ler o livro desgastado pelos anos.

–Eu... fui na casa de Fauchelevent hoje. – Comentei na tentativa de puxar um assunto.

–Aposto que ele não te recebeu. –Katerine deu de ombros sem tirar os olhos da leitura.

O seu senso mórbido era quase engraçado se não fosse peculiarmente aterrorizante.

–Não se diz tal coisa de quem morreu. Pelo amor de Deus, Katerine.

–E também não se faz visitas para essa gente, não é mesmo? – Seu tom de voz era mais grave, como se ela quisesse acabar com a conversa de uma vez por todas, coisa que eu não deixaria tão fácil.

–Eu me lembro quando fomos lá a primeira vez... Você tinha o gênio forte, era com certeza a protagonista que ele buscava e...

–Acabou com o momento nostalgia – Interrompeu-me olhando de canto de olho com ódio.

–Eu não deveria ter deixado você ficar lá... Isso tudo não teria acontecido se eu impedisse. – Disse impaciente enquanto caminhava de um lado para o outro do pequeno cômodo.

–Jean não tem culpa dos seus crimes, Jardel – Ela respondia em friamente sem parar seus afazeres.

–Se não fosse ele, nada disso teria acontecido. Eu pequei quando deixei que fosse. – Retruquei quase aos berros enquanto encurtava a distância que nos separava.

Katerine permaneceu calma entretida com o livro, apenas olhou-me no fundo da alma e disse firmemente sem hesitar nas palavras.

–Esse não foi o seu pecado.

28 de março de 1837, Paris.

–Você tem certeza que é isso que você quer? – Eu perguntava apreensivamente enquanto caminhávamos lado a lado, eu e a jovem menina de 14 anos, de volta às ruas de Paris. – Quero dizer, talvez ele queira se aproveitar de você. Meu Deus, e se ele te fizer algo, Katerine?

–Jardel... – Ela diminuiu o ritmo dos passos e me lançou um sorriso acalentador à medida que depositou a mão em meu ombro de deu um leve aperto para me transferir um pouco de sua calma. – Nós dois sabemos o que eu quero. Então, por que você continua tão relutante?

Segurei seu rosto entre minhas mãos e controlei-me para não ceder a dar-lhe um beijo da mesma maneira que ela me dera no dia anterior. – Porque eu me preocupo com você. Porque eu não quero ficar sozinho novamente. Porque sua presença é boa demais para eu simplesmente entregar de bandeja a qualquer um. Porque eu... eu te...

A frase ficou vaga pelo vento e antes que eu pudesse pensar em termina-la, Katerine avançou rapidamente e selou nossos lábios de uma maneira suave e extremamente possessiva.

–Eu não vou te deixar, Jardel, estamos juntos pelo destino. Mas, eu preciso buscar minha vida, preciso encontrar meu sentido e se isso significa ser pupila de Jean Fauchelevent, então, amanhã, às 9h, eu estarei em sua casa pronta para começar uma nova experiência. – Sua face se comprimiu conta a minha mão esquerda que ainda a segurava e seu olhos castanhos-mel semicerrados pareciam buscar qualquer expressão em meu rosto que demonstrasse aceitação.

–Katerine, eu sei que você tem todo direito de ser feliz, mas eu me preocupo com sua segurança. – Disse por fim retirando minhas mãos da palidez e quentura de sua pele.

A menina entrelaçou seus braços em volta do meu pescoço ficando nas pontas dos pés e usando seu peso para me trazer um pouco para baixo a fim de nivelar a direção dos nossos olhares. A proximidade de nossas faces fazia com que sua respiração batesse diretamente sobre meu queixo.

–Você me faz feliz. – Disse roçando levemente seus lábios avermelhados sobre os meus. – E tente não se preocupar tanto comigo. – Dito isso ela retirou debaixo do longo casaco o punhal que estava preso em um cinto improvisado com pedaço de pano grosso amarrado em volta da cintura.- Você já me deixou protegida.

Em um rápido movimento, girou sobre os calcanhares e seguiu o caminho entre as vielas de Paris, serpenteando pelas esquinas e becos.

Fiquei a olhar perplexo a menina dos belos olhos se afastar tranquilamente de meus braços, pressentindo algum mal eminente.

–Você não vem? – Ela virou a cabeça e gritou em minha direção sorrindo largamente.

E eu a segui. Como sempre havia de ser.


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