1848 escrita por Brioche


Capítulo 6
VI - Vitrais




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28 de março de 1837, Paris.

A casa não parecia ter nada de extraordinário por fora.

O Sol matutino invadia as ruas já despertas da cidade e esquentavam o paralelepípedo gélido em frente à porta de madeira escura e detalhada da residência de Fauchelevent.

Não era uma mansão, muito menos parecia abrigar tamanha ilustre personalidade na arrogância das paredes de um bege sujo pelos anos sem lavagem. Não havia esculturas no pequeno jardim abandonado com mato alto e as maçanetas não eram mais requintadas do que a de uma taberna barata. Se não fossem as janelas, aquele lugar poderia ser confundido com qualquer habitação de classe média que sitiava a periferia de Paris.

Sim, as magníficas janelas.

Pareciam emergir de um sonho infantil com suas colorações berrantes e seus formatos incomuns. As janelas que encurralavam redondas as laterais da porta tom ébano diminuíam-na tornando-a insignificante. Já as outras três iguais no piso superior proporcionavam a autoridade de uma divindade multicolor. A textura irregular do vidro impediam a observação do mundo interior ao recinto, deixavam o espetáculo alegre emoldurado gentilmente pelo negro suave da madeira protagonizar a beleza daquela residência.

“Os portais pelos quais o artista enxerga o mundo”. – Pensei em meio a um sorriso de ternura que Katerine me lançava.

Seus olhos acastanhados refletiam as cores pitorescas dos vitrais e se transformavam na extensão do domínio daquela arte.

Katerine se figurava na obra-prima do universo.

Minha devoção fora interrompida pela voz tímida da menina que questionou-me quase num sussurro.

–Devemos bater?

Seus olhos se enchiam de um brilho incomum, um misto de ansiedade e expectativas. Eufemismo do terror que se estampava no meu rosto grave e temeroso.

–Acho que sim. –Sorri-lhe fraco tentando fugir dos demônios que me atormentavam.

Seus dedos se entrelaçaram nos meus inconscientemente buscando uma paz de espírito que não existia em meu corpo. A calmaria característica do meu peito ardia em chama com o toque macio e tímido de Katerine.

Agarrei com força o batedor desgastado que deveria ter feito par com as maçanetas um dia, mas agora se encontravam enferrujados e sem esmero. Apoiei minha alma fugida nos grilhões do batedor na falha tentativa de tentar me recompor. Dei três batidas rápidas não recebendo uma resposta imediata do interior da moradia.

A mão de Katerine apertou a minha com toda insegurança daquela frágil criatura e eu acariciei sua pele branca e macia com movimentos circulares. Não podia fraquejar agora e desapontá-la.

Um súbito espasmo de ira tomou-me o corpo e virei-me raivoso para agarrar o batedor novamente. Antes, no entanto, que pudesse alcançar a massa enferrujada, a porta foi aberta lentamente e um senhor de olhos verdes penetrantes e um sorriso acalentador apareceu na soleira.

–8h05, estão atrasados. – Disse com tom gélido que contrastava a acolhedora aparência.

–Desculpe-nos, Monsieur Fauchelevent... Nós nos perdemos no caminh...

–Não importa agora- Minha justificativa fora interrompida bruscamente pelas palavras firmes do escritor. - entrem antes que os vizinhos comecem a bisbilhotar e inventar asneiras ao meu respeito.

Eu caminhei lentamente atravessando a passagem de ébano lançando um olhar e um aceno convidativo para Katerine que permaneceu estática desde a aparição do Monsieur. Seus olhos se encontravam em um transe profundo, submersos nas apreensões que lhe percorriam o corpo.

Sentindo uma maior firmeza em suas convicções, virei-me para observar o ambiente que começava a surgir diante da minha vista.

As negras paredes pontilhadas de estantes e permeadas pelas magníficas colorações dos vitrais ardiam ferozes com a luz fraca dos candelabros depositados simetricamente no cômodo da grande sala se abrigava a mesa de leitura, a biblioteca pessoal e a recepção da casa.

“Catatônico”, pensei ao observar a arrumação precária e as folhas espalhadas por todo o cômodo, “Porém, belo”, concluí ao me deparar com a mixagem poética do vitrais com as capas grossas dos livros que dominavam o ambiente.

A menina soltou um suspiro extasiada e uma interjeição que prenunciava algum enunciado de admiração que, por medo ou timidez, foi abandonado ao silêncio perpétuo.

–Vejo que a mocinha gosta de livros, ou de bagunça? –Jean brincou sorridente enquanto analisava os movimentos inocentes de minha companheira.

–É-É tudo muito... – As palavras foram absorvidas pelo meio, assim como a dona da bela voz que as pronunciou com um nervosismo inspirador.

–Muito? O que, minha jovem?

–É muito poético. – A garota olhava fixamente para Fauchelevent, desviando, vez ou outra, seu olhar para os cantos da grande sala- Quero dizer, não há versos ou estrofes espalhados pelo chão, mas sinto como se a estrutura desse lugar se apoiasse no literário... Como se convidasse para que lessem seus dizeres e debruçassem sobre a solidez seus pilares. Eu conheço muitas casas, Monsieur, por dentro e por fora, mas todas sempre foram construídas com alvenaria ou madeira, nunca com rimas, a pintura de cal, mesmo sendo coloridamente alegre, não tinha o fatalismo das suas estantes. Até mesmo as janelas, que sempre demonstravam o poder aquisitivo dos moradores, não exprimiam a riqueza de conteúdo de seus vitrais... – Katerine agora fitava as cores do vidro tentando enxergar além de seus desenhos e seus formatos harmônicos, além das casas das redondezas, era como se ela estivesse observando o Sena que corria pacífico longínquo e mergulhasse de cabeça no discurso que me afogava em seu percurso tortuoso. – É... muito poético.

Lancei um apaixonado sorriso de orelha a orelha e fui retribuído com um olhar penetrante que exibia duas íris castanho-mel acima de uma adorável covinha.

Desvencilhei os olhos das amarras apaixonantes de Katerine e encarei Jean que vislumbrava, atônito, minha amada.

As orbes esmeralda brilhavam de excitação com as palavras da minha pequena protegida e seus lábios se abriam involuntariamente tentando conter o impulso de exclamar algo que parecesse admirado demais ou devoto demais.

–Belo discurso- Fauchelevent cedeu-se ao encanto da menina- Vejo que você parece ter um tipo de educação diferenciada. – Comentou recompondo a pose de seriedade que a idade lhe proporcionava.

– A educação é uma dádiva dos afortunados. Gosto de pensar que eu tenho uma curiosidade insaciável que me impulsiona a buscar, às vezes uma poesia, às vezes um romance, às vezes uma enciclopédia. – Katerine retrucou com auto controle impressionado, mais uma vezes, o monsieur que, diferentemente de mim, não estava acostumado às maravilhas e surpresas que caracterizam-na.

–Enciclopédia? – Jean questionou irrequieto enquanto levava o dedo indicador direito à têmpora. – Parece então que está familiarizada com os frutos das revoluções.

Katerine gelou. Sua pele pálida estava quase transparente e sua respiração era imperceptível. Temi que estivesse tendo um ataque de pânico ou, na pior das hipóteses, seu coração tivesse parado.

Encarei raivosamente o escritor que me lançou um sorriso malicioso fazendo me lembrar da minha do meu comentário sobre nosso encontro na revolta de 1830. Ele lembrava, lógico que ele lembrava. Queria desestabilizar minha companheira, testar seus limites. Eu não permitiria isso, não com ela.

Caminhei os poucos passos que distanciava o corpo inocente da menina e segurei em sua mão. Sua cabeça abaixada ergueu-se até seu olhar encontrar o meu. As poucas lágrimas que tentavam escapar desapareceram e a força de seu espírito pareceu emanar pela íris castanha.

–Talvez seja herança, monsieur. – Katerine respondeu com sua língua ferina. – Esses assuntos me são comuns desde minha meninice, já não posso fugir deles, mas posso escolher me abster.

–Hum... – Jean tinha agora os dois indicadores massageando as têmporas suavemente e os olhos pareciam semicerrados. – Acho que esses assuntos são parte da cultura francesa, minha jovem, é importante conhece-los.

–Para quem vive nas ruas, sem essas grossas paredes literárias para proteção – Confesso que o comentário me deixou envergonhado quanto a minha origem maltrapilha.- É importante ignorar esses assuntos.

O olhar desafiador da menina não estremeceu perante a experiência do mais velho, do seu ídolo. Impressionante como sua devoção e seu gênio colidiam dentro de sua mente sem deixar que a pose de superioridade tombasse.

–Você tem razão. –Fauchelevent interrompeu a massagem e encarou com firmeza os olhos castanhos-mel que se sustentavam. – Pensar lá fora é perigo. Por sorte, Katerine, tenho uma vaga de pupila. Gostaria de ocupá-la.

Meu mundo desabou.


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