1848 escrita por Brioche


Capítulo 5
V - Punhalada




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O caminho pelas entranhas de Paris fora tortuoso. A ansiedade e o desejo de ver Katerine tilintava em meu peito à medida que sentia o punhal sob meus trajes, o medo, contudo, de ser abordado por uma nova dupla de policiais obrigava-me a calcular meus passos e percorrer todo trajeto lentamente.

Meus olhos se iluminaram e minha boca se contorceu em um esboço de felicidade quando avistei a figura pálida e encolhida, abraçada ao seu corpo, no mesmo local em que a deixara.

–Katerine? – sussurrei em sigilo enquanto aconchegava-me ao seu lado.

De sobressalto, a menina soltou uma leve interjeição amedrontada e estremeceu diminuindo-se mais ainda.

–Jardel... Voc...? – A pergunta permaneceu vazia na pequena atmosfera entre nossos corpos, que logo fora preenchida inteiramente com um gesto rápido de Katerine de se mergulhar em meus braços e me trazer para os dela.

–Achei que tinha ido embora. – Suspirou em tom abafado contra o meu peito.

Garota tola. Como iria embora se além dela o mundo já não existia? Como sobreviveria no vácuo da sua ausência?

O abraço de Katerine fora ficando mais sufocante e úmido. Conseguia sentir as lágrimas teimosas que escapavam de seus olhos e encontravam conforto em minha camisa surrada. A força de seus braços tentava inutilmente conter o sentimento que se apossava dela como uma maldição.

Confesso sem orgulho algum que apesar de sempre lutar de mil modos para que aquelas poucas e significantes lágrimas nunca ousassem embaçar a visão da minha amada, eu quis, naquele momento, que ela se acabasse em prantos, que inundasse todo o Sena com suas emoções. Eu queria sentir-me dono daquele sentimento. Queria também ser amado.

Quando seu corpo abandonou o meu, sua face imaculada não apresentava nenhum sinal de choro ou de solidão. Era como se aquele abraço nunca existira.

Suas mãos ainda seguravam, tímidas, a base do meu rosto e me fitava paralisada com suas íris castanho-mel.

Um anjo, pensei tentando não me julgar por ser clichê. Katerine, no entanto, possuía toda delicadeza e determinação que um guerreiro dos céus deveria ter.

Seus dedos deslizaram suavemente até meu trapézio, sem que a dona deles ousasse olhar em outra direção. A proximidade entre nossas bocas pareceu diminuir por uma atração que não havia de ser terrena.

Eu já sentia sua respiração bater contra minha pele arrepiada quando Katerine tomou meus lábios em um fugaz e harmonioso beijo.

Aquele singelo e valioso ato me deram a epifania que inconscientemente já sabia. Se o paraíso ou Deus próprio existissem não eram onipresentes, pois não habitavam nenhum lugar que não os macios lábios da santidade que se figurava na minha frente.

–Não fuja mais assim. – A garota sussurrou contra minha boca essa ordem que não pude objetar.

Concordei com um leve aceno de cabeça enquanto rompia com qualquer contato entre nossos corpos.

–Afinal, o que você estava fazendo? – Suas palavras me pareciam distantes, longe do nirvana em seu beijo me havia colocado. Eu não conseguia responder naquele estado de êxtase.

–Jardel? – Seu tom havia aumentado e se tornado mais sério.

Balancei a cabeça assimilando as palavras antes que pudesse me desprender daquele vislumbre do paraíso e voltar para minha realidade.

–Eu... Isso... Quer dizer –As letras se enroscavam e formavam sentenças que não atendiam aos meus anseios.- Hoje é seu aniversário.

Ela deu uma leve risada do meu embaraço tapando a boca meigamente com as mãos.

–Sim, Jardel, é meu aniversário. – A frase fora dita no meio de um belo sorriso que apresentou seus dentes ainda brancos e alinhados.

–Eu queria te dar algo.

Enfiei as mão sob meu manto tentando encontrar o presente que jazia esquecido por meus pensamentos não lineares.

Os movimentos de Katerine sempre me supreenderam e antes que eu conseguisse mostrar-lhe o punhal, ela já o tinha em mãos sob um olhar de admiração e devoção.

O brilho usual do castanho-mel transformou-se em um dourado caramelizado no reflexo da lâmina, o que a deixara com aspecto de boneca de ouro de madame.

–Feliz aniversário, Katerine. – Depositei um cuidadoso beijo em sua testa sem que ela desviasse os olhos do punhal.

–Isso é lindo. – O seu exuberante sorriso voltara a acender todo seu rosto pálido de uma felicidade genuína. – Mas, onde...? – Antes que a frase fora terminada, a garota dedilhou temerosa o selo que adornava o cabo.

–Jardel, isso... isso é da Guarda Nacional! – Sua respiração parecia ofegante e seus olhos saltados de pavor. –Como...?

–Não se pergunta o preço que se pagou por um presente. É falta de educação. – Interrompi-a antes que sua preocupação a pudesse acabar com sua alegria.

–Mas, você teve problemas? – Ela perguntou tímida tentando desviar o olhar.

De súbito, prendi-a em meus braços enchendo-a de beijos e carinhos respondia alegre enquanto ela gargalhava.

–Se você gostou, então não há problema algum.

–É sério, Jardel. – Disse à medida que se desvencilhava de minhas carícias e fitava-me seriamente. – Eu gostei, mas não quero que faça algo que te meta em confusão.

Sorri de leve, ela estava preocupada comigo e isso já me bastava como agradecimento.

–Não, não estou com problemas, graças a um homem... um homem que parecia nos conhecer.

Seu olhar de repente pareceu encarar o vazio e o pavor tomou-a por completo.

–Nos...conhecia? – Katerine continha o grito de terror que se formava em sua garganta. Ela não suportaria o fato de alguém ser capaz de conhecer-nos e, talvez, no entregar às autoridades.

–Katerine, por favor, se acalme, não é isso. – Retirei o cartão que havia guardado em um bolso e depositei em suas finas mãos que agora tremiam como nunca.

Seus olhos castanho-mel demoraram uma eternidade até assimilarem o nome que jazia gravado em letras góticas.

–Fauchelevent? Jean Fauchelevent? – A perplexidade deu lugar a uma excitação e surpresa tamanha. -Como ele nos conhece? – Suas mãos agarravam-se com força aos meus braços me balançando e seus olhos vivos e arregalados pareciam me devorar para obter todas as informações que sua curiosidade ansiava.

–Ele pesquisa sobre os acontecimentos da cidade – Nessa hora a menina comprimia seus lábios com tanta empolgação que o rosado atraente se transformava em um esbranquiçado cadavérico. – Ele usa os dados para inspirar personagens ou algo do tipo. Eu realmente não tenho certeza, Katerine.

A empolgação da minha companheira contrastava com minha falta de ânimo e meu pouco caso. Por que a simples existência daquele homem era o bastante para rebaixar a minha? Todo o interrogatório estava se tornando demasiado deprimente para mim e, por um segundo, eu desejei ter sido preso por Marius Bayard e nunca ter visto Monsieur Fauchelevent.

–Há um endereço nesse cartão! Nós o veremos, Jardel? Poderemos falar com ele?

Eu queria ter dito que não. Queria ter negado tudo o que já lhe havia contado. Queria ter suplicado perdão e dito que era uma brincadeira, que havia encontrado o cartão na rua, que inventei toda história. Eu hesitei em responder, mas olhei para aquelas orbes que tanto me eram preciosas, aquela expressão que me conquistava. Katerine merecia o melhor e se aquele escritor poderia lhe dar isso, então ela merecia vê-lo.

–Sim, querida. –Disse por fim derrotado. – Veremos amanhã às 8h.

Sua face se tingiu com a cor da felicidade. Como ela era linda.

Seus braços me envolveram agradecidos e seus lábios roçaram delicadamente nos meus. “Era gratidão”, pensei enquanto a abraçava fortemente. Seu rosto afundou-se na curva do meu pescoço que arrepiou-se quando o seu hálito quente o permeou em sussurro.

–É da desgraça que surge a esperança.

–Bonito... Onde ouviu isso? – Questionei enquanto me levantava da viela e ajudava-a a se erguer.

–Meu pai me disse isso uma vez. – Katerine nunca falava do passado com o pai. Era como se tudo antes de 1830 não existisse. Conclui que o assunto deveria se encerrar ali.

–Bem – disse me espreguiçando- Acho que poderíamos arranjar alguma coisa para comer.

O rosto vazio, fruto das lembranças trazidas pela citação antiga, aderiu a uma cor mais reluzente com minhas palavras. Ela assentiu e passou a seguir levemente pelas ruas de Paris, saltitando de alegria com as novas possibilidades que agora lhe surgiam.

Katerine dava piruetas com a possibilidade de conhecer Jean Fauchelevent. Eu sorria apenas por poder tê-la comigo. Era amargo o gosto da certeza de que aquele beijo não significava para ela o que era para mim, mas eu sorria dolorido. Há quem goste do amargo.

Sorria pra mim mesmo tentando reprimir o ciúmes e a pergunta que gritava em meu consciente. “Será que o punhal não fora o agradecimento cravado em minhas costas?”


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