1848 escrita por Brioche


Capítulo 4
IV - Anonimato




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15 de julho de 1848, Paris.

Katerine ainda me tratava com escárnio. Não me admirava, seu luto já durava mais de 100 dias. 100 dias que eu sofria com aquele tratamento gélido, aquela fala entrecortada de medo e lágrimas, aquele soluçar no começo da madrugada que vinha do outro lado do casebre.

Eu a amava tanto e sofria tanto por ela, mesmo sabendo que as lágrimas não eram por mim, mesmo sabendo de toda dor que eu sentira no último ano.

Estúpido. Eu era um estúpido por não a ter abandonado quando soube. Por tentar entender a situação, por deseja-la tão fortemente. Agora, eu não podia ir embora, não no estado que ela estava, mas permanecer ao seu lado também era uma tarefa impossível.

A única tentativa de me aproximar de Katerine nos último meses fora um abraço, tímido, durante a madrugada de abril. Ela dormia profundamente envolta por uma coberta azul escuro que desfiara em uma das pontas. Aproximei-me sorrateiro e pousei meu braço esquerdo e minha face sobre seu abdome. Katerine, de sobressalto, agarrou meu braço e posicionou uma navalha no meu pescoço enquanto tentava tomar consciência da situação.

Ela me olhou apavorada e começou a lacrimejar. Seus braços fraquejaram e seu coração parecia bater em um ritmo acelerado. Katerine comprimiu seus lábios como sempre fazia quando tinha de tomar alguma decisão difícil e conteve o impulso corporal de lançar-se sobre mim e me envolver em seu frágil corpo.

Ela apenas me fitou deprimida com seus olhos marinados e silabou.

–Volte a dormir, Jardel.

Eu, derrotado, segui seu conselho. Sem ao menos pregar os olhos naquela noite. Sem conseguir evitar me odiar por tudo o que fiz. Sem culpa-la por não mais me amar.

27 de março de 1837, Paris.

–Você deve estar confuso, entendo. – Disse Jean Fauchelevent como um sussurro para si mesmo.

Em meio ao balburdio que se perpetuava em minha mente, uma ideia clara iluminava a sandice da manhã primaveril. Eu havia conseguido o punhal de presente para minha Katerine. Eu conclui com primazia meu plano e iria ser o seu herói.

Meus olhos coloridos de alegria ainda fitavam as orbes verdes esmeralda de Jean, hipnotizadas pelas situação surreal que se figurava diante de mim.

–C-Como sabe meu nome?

–Oras, eu sou um escritor, sei de muitas coisas, muitos lugares, muitas pessoas. – Respondia isso enquanto me encarava em tom de curiosidade. A menção à sua sabedoria me recordou de uma notícia que Katerine me mostrara havia anos, algo sobre uma noite de autógrafos de Fauchelevent em Viena.

Nunca soubera ler antes de Katerine e, apesar de ainda me confundir com algumas regras e normalmente ocasionar diversos erros de pronúncia, devia a ela essa nova perspectiva cultural.

–E que dívida o senhor tem para comigo? – Perguntei ainda mais aflito.

–Tinha, meu caro Jardel. Tinha. Já a paguei, de certo. Mas, acho que lhe devo uma explicação para minha introdução um tanto quanto inesperada.

Assenti firmemente enquanto Jean tossia fraco para limpar a sua garganta.

–Eu o observo há tempos, meu jovem. Não pense você que sua vida vadia lhe confere anonimato. –Suas palavras eram ditas em tom de troça, todavia, conseguiam bambear minha pernas e me deixar apavorado. –Os rostos nos cartazes, os cochichos nas tavernas e nas bocas da elite parisiense. Oras, uma personalidade dessas deveria ser estudada por mim.

–Não entendo o que isso...

–Não atrapalhe meu raciocínio, rapaz. – Fui cortado bruscamente por suas palavras irritadiças e sua expressão de desgosto acompanhada pelo dedo indicador direito levado à têmpora, como se minha audácia lhe desse dor de cabeça. – Minhas pesquisas começaram por descobrir quem você era, onde vivia, qual o seu nome. Não me surpreende que depois de 4 meses todas as informações recolhidas cabiam em meia página. Era frustrante, Jardel. Mas, era completamente interessante, oras, por que não haveria de fazer um personagem fantasma como você?

–Fantasma, senhor? – Questionei temeroso de sua reação que não se mostrou desgostosa com minha dúvida.

–Sim, Jardel, fantasma. Quer algo mais poético que a idealização de uma personagem que não tem história, não tem passado, que some em meio à multidão, mas que consegue, mesmo assim, ser a protagonista de todo um romance?

–E o senhor realmente criou essa personagem? – Minha felicidade beirava o limiar entre o orgulho próprio e o medo do que suas pesquisas poderiam revelar ao grande público leitor.

–Ora, rapaz... – Fauchelevent levou o dedo indicador à têmpora novamente como se minha pergunta soasse como as asneiras de um ignorante. – Esses manuscritos são a prova disso. – Respondeu mostrando timidamente o bloco grosso de folhas que trazia sob o braço branco de pele de pergaminho.

Meus olhos se iluminaram de uma alegria estonteante. Aquilo era um universo maravilhoso que nunca ousara visitar.

–Só uma coisa eu não consegui concluir, Jardel. – Seus olhos verdes me lançaram uma hipnose amedrontadora. – A menina. Quem é ela?

Minha sanidade se esvaiu por meus olhos marinados. Menina, a minha Katerine, óbvio, quem mais seria? Como Jean saberia dela? O que ele queria dela?

Por um instante, pensei em mentir, em dizer que não sabia do que se tratava, proteger seu anonimato. Repensei a ideia. Não daria certo. Monsieur Fauchelevent com certeza saberia como me achar e se eu tentasse fugir dali naquele momento, em breve teria dezenas de guardas atrás de mim.

Era um beco sem saída.

Até onde eu poderia confiar no sigilo de Jean? E se ele se mostrasse indigno de tal informação? Como iria proteger Katerine?

Muitas questões, minha cabeça parecia que explodiria em dúvidas, mas eu precisava agir. Precisa dizer.

–Ela... – Hesitei continuar. Comprimi os lábios em uma linha a fim de forçar as palavras ficarem dentro da boca, mas o olhar esverdeado de Monsieur eram mais forte. – Ela é minha protegida. Salvei-a do caos da Revolta de 1830, desde então ela vive sob meus cuidados. Seu nome é Katerine.

Ao confessar, minhas pernas bambearam e minha alma quase desvencilhou de meu corpo. Monsieur Fauchelevent trazia agora as pontas de todos os dedos junto à têmpora e massageava-a com expressão pensativa.

–Entendo... protegida. –Suas conclusões pareciam fruto de conversas com sua própria consciência. – É realmente uma história bem interessante, Jardel. Será que eu poderia conversar com essa jovem dama também?

Eu não deixaria, sob hipótese alguma, que Katerine fosse colocada em uma situação que eu não a pudesse proteger. Sabia que não poderia negar tal pedido, seria negar um momento de felicidade à minha querida, mesmo que esse instante ferisse brutalmente meu orgulho.

–S-Sim, pode. Mas, eu a acompanharei. – Afirmei no fim de um longo intervalo de reflexões.

Monsieur Fauchelevent contorceu seus lábios finos e esbranquiçados em um sorriso maquiavélico e mirou com firmeza meu rosto medroso enquanto erguia um cartão tão branco quanto seus dedos ossudos. Havia um pequeno endereço grafado abaixo das enormes letras em caligrafia gótica “Fauchelevent”.

–Não esperava nada diferente. Me encontrem amanhã às 8h nesse endereço, sem atrasos.

Jean fez um leve aceno com a cabeça ao perceber que eu entendera o recado e girou sobre seus calcanhares tomando o caminho oposto ao meu percurso de fuga do inspetor Bayard, me deixando abandonado nas ruas de Paris. Sozinho, como haveria de sempre estar.


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