1848 escrita por Brioche


Capítulo 3
III - Monsieur




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27 de março de 1837, Paris.

O céu cinza daquela manhã em nada denunciava o início da primavera parisiense. As árvores não haviam restituído nenhuma folha verde, muito menos demonstravam estar preparadas para exibirem, nos próximos dias, exuberantes flores que contrastavam com a palidez da vida dos trabalhadores transeuntes que percorriam as ruas sempre apressados, sempre temerosos, sempre sujos e mal alimentados.

A brisa gélida da manhã revigorante percorre minha face ainda preguiçosa e brinca com meus cabelos loiros que caem como cascatas de ouro sobre minha cabeça de domínios maliciosos. Aquela solidão única me deu inspiração para pensar na dona de meus passos, Katerine. Como tão jovem, tão frágil e tão pequena, mantinha, presas às suas doces mãos, as minhas vontades. Não me admirava que Katerine fosse filha da primavera. Seu cheiro acolhedor e floral mesclavam-se com o sorriso bobo de covinha perfeitas e me abriam o caminho para novas vidas.

Katerine era a primavera da minha vida.

Absorto em pensamentos, só fui capaz de perceber aonde meus pés me levaram no instante em que avistei as margens do rio Sena e a silhueta de dois guardas de ronda que pareciam desanimados dentro de seus casacos de bom tecido e armados das melhores armas presentes na capital.

Cuspi no chão. Não os suportava.

Já fora caçado e perseguido por diversos furtos. Já haviam colocado cartazes com meu rosto mal desenhado, mas eu, em toda juventude e energia de 19 anos, nunca fora sequer arrastado para uma delegacia ou apanhado em local público. A cidade é desconhecida demais para aqueles que vivem no luxo dos bons cargos.

Fitei por um instante as vestimentas dos meus alvos tentando localizar a espada, a arma de fogo e o punhal. Desde as revoltas de 1830, todos eram fortemente equipados a fim de “conter as insurreições populares”. Ri de escárnio. Todos sabiam o medo que era andar sob a vigília dos guardas, até os donos de tavernas preferiam a minha proteção como a imponente figura de ordem nas ruas do que a presença dos enviados do rei.

Como um dos meus muitos defeitos, eu odiava ser confundido como uma representação de autoridade e teria negado prontamente qualquer aliança com proprietários se não fosse a insistência de Katerine. Não poderia negar a ela o direito de perambular em locais públicos sem ser perseguida ou linchada em comércios sem ter o direito de comer uma refeição decente. Nada negaria a ela.

Cego por minha decisão de fazê-la feliz, segui nervosamente até a dupla de guardas que observavam tediosamente o movimento urbano.

Ao me aproximar seguramente simulei um esbarrão truculento o suficiente para conseguir entrar em contato com o corpo do meu alvo e remover sem muito problemas o punhal da bainha frouxa que lhe pendia da bota de couro preto.

Ambos me encararam com ódio. Como um mero mortal era capaz de cometer tal gafe contra figuras de autoridade. Desculpei-me vergonhosamente enquanto escondia o punhal sob as minhas vestes esfarrapadas, foi então que notei as feições de cada um.

O mais novo, o qual havia sido meu alvo, tinha um cabelo de tom cobreado e os olhos de um azul extremo. Sua postura consistia em inflar o largo peito para expor sua insígnia de guarda nacional de um modo arrogante e constrangedor para um rapaz pobre e magrelo como eu. O outro, no entanto, me era familiar. Tinha os cabelo grisalhos bem penteados para trás e um bigode preto que lhe tomava os lábios superiores. O rosto era comprido e pontiagudo lembrando um V bem afiado no queixo. Apesar da idade que aparentava, trazia nos olhos negros uma imposição de respeito e temor, como se estes já tivessem sido testemunha de todos os males da vida.

–O que pensa estar fazendo? – Disse o mais novo irritado enquanto me levantava do chão -

Não respondi. O olhar do mais velho parecia exercer uma hipnose que me paralisava.

–Além de atrapalhado é mudo também?- O de cabelos cor de cobre continuava berrando besteiras sobre meu acidente e eu permanecia calado a olhar para o verde das íris do seu parceiro.

Foi então que eu fui chacoalhado e voltei ao meu estado de espírito normal.

–Me perdoe, senhor, eu estava vindo perguntar onde é o bairro Montmartre, irei começar a trabalhar lá hoje, mas acabei me perdendo.

–Às margens opostas do rio Sena – dessa vez foi o velho que me respondeu enquanto o mais novo me soltava e se afastava de mim- Espera um instante, eu não te conheço?

Foi então que tudo veio à tona. Aquele era o inspetor da polícia. O homem que passara dois anos me perseguindo e colando cartazes com meu nome pela cidade de Paris. Sim, era Marius Bayard.

–Não, impossível, vim do campo há apenas 3 dias, senhor.

–Eu o conheço. Sei que o conheço, meu jovem. Já fora da guarda nacional? Já estivera no exército? De algum lugar eu o conheço.

Aquilo me aterrorizou. Fora desleixado por causa do meu desejo por agradar Katerine e, agora, havia me lançado às garras da polícia.

–Temo dizer o contrário, senhor. Acho que devo ir.

Apressei-me para me afastar dos guardas sem causar suspeitas, indo cautelosamente até a ponte que atravessava o rio. Foi então que Marius gritou.

–Jardel! Sim, você é Jardel.

Não havia o que fazer, não havia como mentir, só me restava fugir. Meu coração aflito disparado em meu peito estava descompassado com o ritmo de minhas pernas, mas era necessário despistar a dupla de guardas que seguiam ao meu encalço.

Apesar do meu bom preparo físico consequente de anos correndo pelas extensões de Paris. Marius seguia a uma distância cada vez menor e o que me guiava agora era o medo. Medo de ser pego, medo de ficar longe de Katerine.

Cruzando o rio de adentrando a região de Montmartre, fui seguindo em ritmo frenético pelas calçadas, fazendo vendedores e trabalhadores exaustos desviarem da minha rota de objetivo. Adentrei a Rue Lepic que abrigava cafés e tavernas para a elite econômica de Paris. Estava pouco movimentada aquela hora da manhã, levando em conta que muitas madames ainda permaneciam em suas casas, desfrutando do sono prolongado.

Correndo quase sem fôlego, esbarrei com um senhor bem vestido à porta de um Café de alta qualidade, e fui atirado pelo choque, contra os paralelepípedos duros. Foi assim que Marius me alcançou e me rendeu colocando toda sua ira e seu peso para me imobilizar.

–O que pensa estar fazendo?- Disse o senhor em tom de voz grave e autoritário para o inspetor.

–Prendendo o infrator, esse moleque maltrapilho que aterroriza os comércios na cidade.

Com a cara forçada contra as pedras rudes, nada pude falar em minha defesa. Não pude mentir que havia largado aquela vida, nem mesmo afirmar veridicamente que não aterroriza os comércios e sim os defendia contra a tirania da guarda nacional e sua corrupção desvairada.

–Acho que houve um engano. Esse moleque é meu empregado e não um infrator. – O senhor bem vestido disse tais afirmações com tamanha convicção que quase jurei que havia me confundido com outra pessoa, mas por medo de desmentir erroneamente, me calei.

Marius se levantou deixando-me livre para me erguer e encarar aquele homem que se arriscava para me salvar.

–O senhor tem certeza disso, Monsieur Fauchelevent? – Questionou aflito o inspetor que trazia a face ruborizada parte pela corrida e parte pela raiva de ter um criminoso fugindo-lhe pelos dedos da fina e ossuda mão.

Agora a mente se clareava. Jean Fauchelevent, o escritor parisiense de romances revolucionários. Katerine sempre me contava como adoraria ter um livro autografado, como seus enredos eram cheios de heróis invejados e honrados e como o talento daquele homem transformava a pobreza e a esperança na situação mais nobre possível. Sempre que ouvia ela exaltar as qualidades das protagonistas ou a perspicácia de seu autor, confesso que era tomado por um ciúmes incontrolado. Odiava como a mera existência de Fauchelevent humilhava e reduzia toda a minha devoção por Katerine, como se meus esforços diários fossem menosprezados diante da publicação de seu romance principal “Amour et Révolution”.

–Acho que reconheceria meu empregado, não acha, senhor inspetor? – Respondeu retoricamente o escritor com um ar de irritação na sua fala.

–Perdão, Monsieur. Não queríamos incomodar.- Marius fez um gesto de respeito levando a mão ao peito, sobre a insígnia, e me fuzilou com os olhos antes de se virar e voltar com o parceiro ofegante para o caminho de onde vieram.

Meu olhar atônito refletia os pensamentos confusos que me atormentavam naquela situação. Aquele homem, aquele cujo legado me era familiar pelos jornais ou pelo fanatismo de Katerine, havia, sem maiores explicações, me garantido a liberdade, me dado essa honrada confiança.

Não sabia o que dizer. Deveria correr com medo do que o poderoso senhor me faria? Deveria permanecer e agradecer? Se optasse pela segunda, como agradeceria? Deveria a ele minha vida ou apenas minha obediência?

A indecisão paralisou minha ações e eu mantive-me de pé, fixo ao rosto idoso e bem apessoado de Monsieur Fauchelevent. O que este homem pretendia com tudo aquilo.

–Senhor... – Tomei iniciativa a fim de improvisar um agradecimento ou tentar, ao mínimo, explicar minha situação. As palavras, contudo, se enrolaram em minha mente e o silêncio tomou conta da situação.

Curvei a cabeça e passei a mirar meus sapatos gastos e com alguns pequenos furos, havia-os adquirido havia 3 anos, depois de um furto bem sucedido à um sapateiro. Depois das alianças travadas com os comerciantes, muitos pares me foram oferecidos, mas preferi continuar com o antigo par, me dava recordação da vida livre de outras épocas.

–Não precisa agradecer. Encaremos isso como um pagamento de uma dívida que tinha com você, certo, Jardel?

Levantei meu olhar e fixei-o na face descorada do escritor. Como diabos ele sabia meu nome?


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