1848 escrita por Brioche


Capítulo 2
II - Decisão




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Diferentemente da primeira impressão que tive de Katerine, sua força e independência era admiráveis até mesmo para mim, um garoto criado por conta própria nas ruas inóspitas de Paris.

Katerine havia perdido da mãe durante o parto de seu irmão mais novo. As complicações e a incompetência da parteira acabaram custando a vida da parturiente e do feto. Seu pai encarou de bom grado o encargo de cuidar da menina sozinho. Afeto. Ela com certeza conhecia o amor melhor do que eu jamais imaginava conhecer. Katerine relatou brevemente como o artesão carinhoso acabou baleado e morto em seus braços. Supriu detalhes, apenas descreveu como os altos impostos e a perda de clientela obrigaram o dono da oficina de seu pai a fechá-la e largar todos empregados à própria sorte. Fora assim que ele se aliou aos movimentos revoltosos dos parisienses. O resto acabou como já sabia.

Com o passar dos anos, Katerine tornou-se não só minha parceira de pequenos furtos e das noites mal dormidas nas ruelas, como o objeto de todos meus mimos e agrados. Se a comida era pouca, ela tinha o direito à maior parte, se o frio invernal maltratava as ruas catacumbicas, ela que ficava enrolada na coberta e adormecia em meus braços. Tudo para que a alegria de mirar os belos olhos e rir com a gargalhada mais sonora não me abandonasse, não me atirasse contra o solitário reinado de garoto maltrapilho.

A formosura de Katerine, contudo, não se limitou ao rosto angelical e aos trejeitos de menina brincalhona. Seu corpo tornara-se alvo das transformações mais sedutoras da puberdade. A cintura fina, as curvas acentuadas e a harmonia de formas que prevalecia no frágil e desejado corpo pálido não eram escondidas nem sob os panos mais grossos e os cuidados mais finos.

A face pura era emoldurada pelos sedosos cachos louro escuros e a boca era de um rosa queimado tão tentador que faria qualquer santo tremer diante daquela imagem canonizada que se fixava na figura de Katerine.

Se algum defeito traia a perfeição imaculada era, talvez, uma cicatriz profunda que trazia no antebraço escondida sempre sob a manga de um longo casaco. Uma queimadura que tingia de vermelho a tez singelamente branca resgatava os tempos infantis quando, segundo ela, costumava ferver a água para limpar os instrumentos de trabalho de seu pai.

Aquela marca insuflava-lhe o ódio e doía-lhe o ego como a eterna lembrança de um passado longínquo e cheio de ternura, uma vida que eu não conseguia lhe proporcionar. Aquilo manchava de ressentimentos a brancura da nossa existência, nossa relação.

Aqueles laços sem nós que nos constituíam...

Nossa fraternidade furtiva perpetuou-se até 1837. Naquele ano, Katerine comemorava seu décimo quarto aniversário e, como de costume, resolvi tomar de algum infeliz, algo que lhe fosse útil, bonito e minimamente significativo.

O sonho da minha jovem parceira sempre fora poder se comparar com uma heroína, uma defensora dos fracos, a inspiração dos grandes romances. Sempre lhe ria de suas ambições, oras, uma menina abandonada, tanto valia sua existência quanto a de um vira-lata. Pessoas como nós não eram feitas para serem lembradas. Era ridículo pensar em uma mulher comandando um exército ou salvando pobres inocentes, era ridículo imaginar toda sua feminilidade e delicadeza que atraiam olhares descarados nas ruas sendo substituída pela insígnia de revolucionária, heroína.

Mas, à Katerine, nada parecia mais natural e possível. Oras, ela havia se criado, se protegido quando nem eu era capaz de fazer. Katerine era o herói de sua própria vida. Não cabia a mim desiludi-la com minhas visões realistas de meus argumentos agarrados aos valores parisienses.

Se ela queria poder ser a salvadora, cabia a mim deixar que fosse, e cabia a mim o fardo de demonstrar como ela, na grandeza de seus 14 anos, poderia sim ser o imperador de minha liberdade. Ah... enganos adolescentes...

Decidido a provar sua importância para o mundo, despertei-me em uma manhã de sexta-feira da deserta e imunda viela que nos servira de cama e abrigo naquela noite certo do que iria fazer. Iria roubar o punhal de um dos guardas civis e dar à Katerine na esperança de que aquilo servisse como prova de seu poder e de minha devoção. Na esperança de que conseguisse sanar um de seus desejos e me tornar, por um instante, o seu guardião.


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