1848 escrita por Brioche


Capítulo 1
I - Castanho-Mel




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16 de Julho de 1848, Paris.

E ela me lançava sempre aquele olhar superior, aquela gana por me humilhar. Sempre. Não que já me importasse muito. Sua órbitas castanho-mel me transbordavam cólera e impiedosidade todos os dias naquele casebre mal-amado que chamávamos de lar havia quase cinco meses.

As paredes de tijolo deteriorado e o telhado esburacado não conseguiam conter a fúria que Katerine alentava em seu peito. Ela era grande demais para se esconder em escombros. Grande demais para se contentar com a miséria que o mundo havia nos imposto. Sua grandiosidade só não superava as dimensões de minha culpa.

Katerine me culpava. Pela desgraça de todos os feridos, pela ausência de todos os mortos, pela inexistência de seu próprio alento. E era naquele cubículo. Naqueles metros quadrados de desgosto e sobrevivência que ela descontava toda sua infelicidade. Se seus olhos falassem, já não mais conseguiriam me sussurrar todo o apoio que tivera deles no início da empreitada. Eram vazios, ocos, apagados, o próprio reflexo da bela Katerine... Ah... aqueles olhos...

29 de Julho de 1830, Paris.

A vida de um filho de uma meretriz nunca fora a mais tediosa. Havia sempre um soldado da guarda nacional de quem correr. Um mercador de quem roubar e até meninas, filhas de outras quaisquer conseguiam deixar a vida de um menino de 12 anos, criado à base da fuga e do medo, mais emocionante.

Se passava as madrugadas no solo frio de uma ruela qualquer, ao amanhecer, ganhava as ruas, imperava em meio às carroças e carruagens. Eu era o dono daquela terra miserável, rei dos banquetes de caldo noturno, servidos em meio aos cochichos revolucionários e o cansaço evidente daqueles que eram amaldiçoados com a sina do trabalho.

Nunca fui um interessado nos acontecimentos nacionais. Poderia dizer exatamente quem iria estar com a venda aberta em qualquer horário do dia, conhecia todos os guardas e conseguiria facilmente encontrar qualquer pertence roubado em toda extensão de Paris. Nunca fui, no entanto, capaz de responder quem era nosso príncipe, qual a situação da tensão civil, nem a quantas andavam as relações internacionais. Meu mundo inteiro era Paris e a autocracia se resumia a mim, Jardel, sem qualquer sobrenome que me identificasse ou rotulasse. Livre das amarras dos bem-nascidos.

Aquele dia, entretanto, era uma exceção a toda vida que me cercava. Revolução. Era isso que uivavam os miseráveis, os trabalhadores, os sofredores. Sim, revolução. Clamavam que Paris era a terra libertadora, o berço da inovação, da força popular.

Ingênuos. Não era preciso que mais de uma década vagando solitário pelas desgraças daquela cidade para saber que em nada ela representava a figura romantizada da plebe. Revolução era privilégio dos que morreram em 1789, pobres almas, tudo em vão. Aqui imperava a lei da sobrevivência, da rapidez, do mais forte.

O quão triste era ver aqueles rostos esqueléticos, quase cadavéricos, que gritavam fracamente seus hinos de libertação, que escalavam barricadas, jogavam seus poucos e magros pertences aos ares na esperança de não sofrerem em vão para, então, serem apunhalados ou atingidos por um tiro estrondoso vindo das armas carregadas de chumbo e pólvora.

Foi em meio a esse cenário que eu a encontrei.

Talvez, fosse ela que primeiro me mirou com aqueles olhos infernais chorosos com qualquer criança perdida e assustada que tentava frustrantemente proteger o frágil corpinho de porcelana de menos de uma década de maus tratos.

Era Katerine, que em meio aos tiros, aos uivos, as quedas das barricadas, alcançou meus ouvidos com o grito mais perturbador e inocente que já ouvira. O grito de quem acaba de tomar consciência da morte.

Sua silhueta infantil pareceu-me surgir junto ao grito entre os escombros das barricadas. Seus pálidos braços agarravam com força uma cabeça ensanguentada de um homem que julguei ser seu pai. As lágrimas vertiam convulsionais salientando o brilho incomum dos olhos castanho-mel. Não deveria ter mais do que sete anos, mas expressava toda dor de uma viúva ou de uma mãe que acaba de escutar o último suspiro do filho em seu colo. Vestia um vestido simples que mais parecia uma infinidade de panos costurados e amarrados no seu corpo. Metade de suas pernas estavam à mostra devido ao rasgo que consumia um largo comprimento que iniciava próximo ao tornozelo esquerdo e seguia até o joelho direito. Seus pés descalços e sujos conseguiam ostentar uma palidez exuberante que só não se equiparava com a brancura esplêndida de seu rosto escondido pela fuligem que castigava a pele dos que inteiravam-se ao tumulto.

Naquela confusão de gritos e correrias que arrastei a menina desamparada para uma das ruelas afastadas, protegida de todo caos e toda carnificina, mantendo-a sobre um pano surrado que carregava para conforto nas noites de inverno. E foi ali, envolvendo-a na coberta em meus braços e enxugando a água salobra que brotava dos grandes olhos hipnotizantes da menina que eu jurei em segredo, dividir toda minha existência medíocre a fim de tornar a dela um pouco melhor.


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