Quero ouvir eu te amo escrita por Nara May


Capítulo 3
Essa é a minha insuficiência


Notas iniciais do capítulo

Mais um capítulo.
Falta pouco para acabar... Acho que no máximo duas atualizações



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Agora estou em casa. Com a blusa trocada. Pra ser mais exata, escrevendo no meu diário ecológico. Pronta para contar o que aconteceu na hora em que fazia um lanchinho costumeiro.

Esbarrei com homem. E mostrei um dos meus defeitos. Estresse fácil.

— Perdão, não foi minha intenção... — balbuciou o retardado que fez o favor de me sujar e ainda deixar o meu lanche cair no chão.

— Também não planejei ficar nesse estado — eu meio que interrompi o homem, porque ele parecia tímido e não quis completar a frase. Sei que fui rude.

Concentrei-me em reparar no abestalhado. Levei um choque imediatamente.

Não, não era o Michael ou o André numa versão crescida. Era um homem que tinha a aparência de estar na casa dos trinta, como eu. Não o conhecia. Seus traços físicos que abalaram meu sistema nervoso. Pele morena, olhos marrons. Características físicas de Michael. Rosto de traços finos e corte de cabelo levemente arrepiado e batido atrás. Características físicas de André. Físico aparentemente forte e a cor do cabelo do meu “relacionamento” anterior.

Ferdinando.

Primeiro, podem rir com o nome um tanto quanto... diferente. Segundo, permitam-me contar essa história.

Terceiro ano do segundo grau. Muita matéria para absorver, ou melhor: gravar.

Uma década de novas tecnologias (a internet iria se tornar popular alguns anos depois), década de aumento de doenças, a moda jovem do segundo furo da orelha, em breve a moeda que usamos hoje o real, perto da clonagem da pobre ovelhinha Dolly, ano da morte de Ayrton Senna, a ida de Michael Jackson ao Brasil, novos ritmos, filmes brasileiros evoluindo...

Andando pelo corredor da escola — atrasada e cheia de estresse. Odiava ver os casais agarradinhos despedindo-se para entrarem em suas respectivas salas. Odiava ver o grupo de patricinhas estúpidas rebolando freneticamente com o objetivo de chamar a atenção do sexo masculino. E principalmente, odiava e odeio lugares amplos demais. Pra mim, é como se fossem labirintos.

De repente, um “anjo que caiu do céu” e de expressão pacífica, salva o meu dia:

— Está perdida? — a voz dele era rouca, grossa. Assustei-me na hora.

— Er... Acho que sim — não me levem a mal, porém eu tinha certa timidez com pessoas do sexo oposto. Até hoje tenho.

Já com qualquer mulher, não apresento nenhum tipo de introversão. É tão estranho e comum ao mesmo tempo. Não sei explicar bem.

— Qual o número da turma? — olhei pra ele um tanto quanto raivosa.

Eu já sabia qual era. O patético é que a escola era tamanho gigante. Será que ele é cego? Pensei sarcasticamente na hora.

— 3004 — tentei mesmo assim.

A esperança era tão grande, eu não podia dispensar essa ajuda.

— Certo. Você tem sorte... Hmm, qual é o seu nome? — perguntou ele.

Não entendi a parte da sorte. Mais a do meu nome, sim. Dã.

— Vívian. E o seu? — eu estava tentando ser educada.

— Ferdinando.

Tentei conter o máximo que pude qualquer risada, mas não consegui. Não queria soar debochada, só que ele tinha que confessar que seu nome não era de se achar em qualquer esquina. Estou usando o eufemismo. Nome feio. Feio de doer.

— Do que está rindo? — ouvi chateação na sua voz. Logo parei de rir, não queria inimigos logo no primeiro dia de aula.

— Não é de você. — Menti. — É só uma piada que escutei hoje... — usei a desculpa mais óbvia do mundo. Muito estapafúrdio da minha parte.

— Como era? — já estava irritada com as perguntas constantes. Mais irritada ainda por ter de inventar qualquer lorotinha. E não pagar mico.

— Ah. É meio sem graça mais vou contar. É de uma mulher que vendia laranjas:

“Olha a laranja! Olha a laranja!”, ela ficava anunciando. Então chegou um homem e perguntou se a tal laranja era doce.

Essa parte é hilária:

“Não, se fosse doce eu não estaria gritando isso. Eu diria: Olha o doce! Olha o doce!”

Fim.

Ele riu bastante, e eu passei a imitá-lo.

E naqueles tempos, isso tinha graça. Contar uma piada dessas hoje em dia faria com que você fosse humilhada durante o ano inteiro.

— É engraçada. E eu queria dizer que você tem sorte porque vai estudar na mesma sala que eu. — concluiu.

Eu disfarcei a minha alegria. O primeiro motivo dela é a coincidência. Porém, logicamente o outro era pela pessoa em si. Nunca tinha sido tão bem recebida num ano escolar. Chegou a ser o ano em que tive popularidade.

Ferdinando não era o mais bonito. Ficava no meio da situação. Mas tinha um corpo malhada e apesar de ser branco, tinha os cabelos mais escuros que já vi na vida. Mais escuros até que o meu. Dessa vez, quase pude escutar as três palavrinhas mágicas. Nando — o apelido dele — era educado. E não me decepcionou como os anteriores.

A cidade em que ele iria morar. Essa sim me magoou.

Pois é. Nando iria se mudar para Resende. E como era longe de Duque de Caxias, sem chances de permanecer na mesma escola. Mal tivemos tempos de nos despedir. A partir desse “relacionamento” que eu perdi todo o resquício de ilusão que eu guardava. Foi o pior choro, foi a pior dor.

Ele fez um discurso detalhado dizendo que não tivemos a oportunidade de nos conhecermos totalmente. Disse que os nossos beijos e carícias desprovidas de maldade no banquinho de cimento da escola foram maravilhosos. Teoricamente perfeitos. Que a saída ao parque o fez ver que eu era muito especial para ele.

Não o suficiente.

Nunca o suficiente.

Ele completou relatando que a visita que fez em minha casa, foi espetacular. E no fim, todas as palavras doces e bonitas não significaram nada pra mim.

Eu pensei que o destino tinha cansado de tirar sarro com meus sentimentos.

Depois disso, eu comecei a ter minhas dúvidas sobre Deus e sobre o destino. Em menos de seis meses, tornei-me evangélica.

Encontrar uma religião salvou-me da tristeza. Sei que para muitos isso é cafona, mas cada um deve buscar o melhor remédio para si mesmo. Eu compreendi que só o tempo e Deus poderiam agir em mim. Que eu deveria aceitar isso, pois outras pessoas passam por coisas piores. Piores no sentido de não terem condições financeiras. Porque talvez agora, muitos estão usufruindo do amor de namorado, de marido, de companheiro.

O que eu posso afirmar do amor, é que já escutei “eu te amo” de meus pais. De meus parentes distantes... Mas pra mim isso não é o suficiente.

Nunca o suficiente.

Vocês podem me julgar, dizendo que sou ingrata. Mas é difícil ter “relacionamentos” e não ouvir essas palavrinhas uma vez sequer. Eu tenho 32 anos, e não 15.

Já tive bastantes oportunidades.

Isso não é justo.

Isso é insuficiente.

No meio de todas essas lembranças, esqueci de contar sobre o homem que esbarrou comigo mais cedo. O achei um idiota, um tremendo bestalhão. É certo que ele nem me conhecia, mas quer saber de uma coisa? Eu desisto...

Pronto, não aguento mais.

Eu, Vívian Nascimento Florença, digo com todas as letras que não vou passar por mais uma ilusão daquela. Não vou alimentar mais nenhuma esperança com homem nenhum. E nem considerei a hipótese de gostar desse homem. Alguém que chega esbarrando em você é um belo de um babaca.

Nada de nutrir sonhos, nada de ver filmes de romance, de ler livros onde o amor verdadeiro está presente enjoativamente em cada página, em cada parágrafo, em cada frase, em cada palavra, em cada sílaba ou em cada letra. Nada de absorver inveja dos meus conhecidos — que são poucos —, nada que me lembre do amor de um homem.

Não sou amarga. Só queria que alguém imaginasse a minha situação. Eu vivi desde a minha infância até hoje, há segundos antes, atrás do amor. Dediquei cada sonho, cada pedaço do meu corpo ao amor. O amor que é ingrato, o amor carnal que me esqueça logo de uma vez. Tenho minhas dúvidas de que algum dia ele pensou em mim.

Hora de editar a história. O homem não perdeu a oportunidade de querer saber meu nome. Homens. Argh.

— Peço desculpas novamente, senhorita... Oh, qual é o seu nome?

Retardado. Como ele tem a coragem de querer saber como me chamo se nem me conhece?

Tá, eu sei que disse meu nome a Ferdinando sem conhecê-lo interiormente. Mas tem uma diferença na história. Ele estava me fazendo um favor, enquanto este aqui sujou a minha blusa, o que significa gastar sabão em pó a mais!

Eu não posso negar que o jeito que ele falava era algo... doce. Não tinha malícia e foi tão estranho.

Quer saber? Foi ridículo, isso sim! Ele parecia ser do século XX, falando deste jeito!

— Vívian — respondi friamente. Sorte a dele que não inventei outro. Sorte a dele.

— Lindo nome. O meu é Ivan.

Eu achei o nome dele bonito. Assim como ele.

O quê? Nome bonito? Aparência bonita? Desde quando eu tinha perguntado de volta qual era o seu nome?

Pelo visto, preciso pensar duas vezes antes de falar... Quero dizer... Antes de escrever.

— Er... Legal — eu meio que fiz uma ironia.

Eu já contei anteriormente que tenho defeitos. No fundo o mais engraçado é que espero que alguém leia tudo que está aqui. É algo que não sei explicar. Isso soa doentio, mas sim, um dia alguém ainda lerá tudo o que escrevi.

O homem até se tocou de que eu estava impaciente. E as pessoas estavam reparando a mancha de refrigerante na minha blusa. Que ódio.

Ele sorriu. Isso mesmo, ele sorriu. Eu estava passando vergonha, ter uma mancha na roupa não é última moda. Quando pensei em lançar toda a minha raiva e frustração para ele, pude ver o significado do sorriso. E o seu jeito também. Ele parecia... tímido?

Ah, isso não existe, pensei.

Frustrada ou não, o seu sorriso não era largo. Daqueles que dizem “quero mostrar meus dentes”. Era uma linha pouco curvada e eu pude ver se formar covinhas. Sim! Elas me lembravam de Michael.

É idiota de minha parte, compará-lo a todos os meus relacionamentos escolares. É infantil. Porém, eu não consigo evitar. Vou tentar parar com isso, aos poucos.

Depois do sorriso, eu franzi o cenho. Ele colocou as mãos nos bolsos da calça.

— Então, eu vou indo. Preciso limpar isso aqui. — Apontei para minha blusa. Eu dei satisfação demais. Não precisava informá-lo que iria limpar a blusa. Era um fato óbvio.

— Claro. Até um dia — ele acenou com a cabeça.

E agora eu podia ver o veredicto da vergonha ali. Ivan ruborizou. Como pode? Eu sempre quis que minhas bochechas ficassem avermelhadas toda vez que eu sentisse vergonha. Sempre achei um charme. E me vêm esse... homem, que nem tinha pele esbranquiçada e... cora de repente?

Obviamente, eu não conseguia realizar essa proeza, pois sendo negra, aplacaria o avermelhado. O inédito é que ele era moreno. Eu nunca tinha visto isso na minha quase longa vida.

Conclusão: Ele era tímido. E isso é fofo. Muito fofo. Retiro o que disse, isso soou muito adolescente.

Oras! Eu já vivi muito, já avancei muito na gramática e na conversação pra dizer que as coisas são “bonitas”, “fofas” e “lindas”. Eu conheço outras formas de me expressar com adjetivos.

Uma coisa que ficou entalada na minha garganta foi o “até um dia”. Não poderíamos manter nenhum contato. Não temos nenhum contato. E aquele ditado de que o mundo é pequeno, pra mim é bobo. Ótimo, estou péssima com adjetivos hoje. Usando uma linguagem de adolescente. Virei bipolar.

— Filha, o jantar está pronto — é mamãe chamando-me. Perdi praticamente todo o meu dia escrevendo em folhas de papel ecológicas.

Pois é, mamãe até hoje costuma fazer tudo pra mim; sou mimada nesse ponto. Sei fazer qualquer tarefa de casa, mas ela não deixa. Não muito.

Sempre que eu a questionava sobre isso, ela logo respondia:

— Querida, há muito tempo que sou dona de casa. Se eu deixasse você fazer mais coisas, iria ficar com os braços cruzados sem nada pra fazer. Então fique calma e deixe-me cuidar daqui.

Eu sei, tenho uma mãe perfeita. Aquela que exige de você mais nada além de companhia e carinho. Que pouco se importa em ver seu filho assistindo televisão, enquanto está limpando a sala. Claro que eu não sou abusada desse jeito. Mas ela já me provou outras vezes que isso não a incomoda.

O tempo passou rapidamente depois do colegial, e todas as ilusões infantis que eu nutria se acabaram. Pouco me lembro da época que perdi a virgindade. Pouco me lembro dos meus breves “relacionamentos”. A vida foi me ensinando que as dificuldades existem em abundância; eu percebi que é difícil encontrar alguém que proporcione amor verdadeiro. Como se cada vaga para encontrar uma pessoa disposta a dar amor estivesse ocupada, preenchida. Uma vacância enorme dentro de mim.

Descobri que nada é pra sempre. É doloroso pensar em toda a minha ingenuidade na infância. No fundo, no fundo eu só quero ouvir as três palavrinhas, sempre quis.

E o afagamento materno que eu recebia era insuficiente.

— Filha, filha. Fique calma, as coisas vão melhorar.

Irônico. Essa é minha conclusão de um conselho que eu recebia toda vez que me decepcionava.

Alguns dizem que as coisas melhoram para quem vai à luta. Outros dizem que é questão de sorte. Eu digo que felicidade eu tenho, o que me falta é outro tipo de sentimento.

Sendo mais específica, uma pequena lista de sentimentos. Amor, compreensão e carinho. De um homem, é claro. Não ter um amor de um companheiro, não significa que eu não seja feliz. Até porque se eu estou junto da tal alma gêmea, eu suportaria os momentos ruins. Isso é amor. Estar ao lado do outro em qualquer situação, qualquer tragédia, qualquer infortúnio.

Não adiantaria de nada eu correr atrás de me satisfazer amorosamente, buscando um mundo perfeito. As falhas existem. Assim eu não retenho sorrisos. Assim eu guio minha profissão, minha vida.


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Notas finais do capítulo

A Vívian é muito diferente de mim. Eu nunca tive essa preocupação na vida. Temos religiões diferentes. Acho que escrevi essa pequena história na época com o intuito de mostrar que eu tinha a capacidade para inventar algo diferente de quem eu sou. Sabe, ir além das expectativas.
Eu rio um pouco revisando a história. Mas não sinto vergonha, só sinto que tive uma adolescência feliz, apesar dos pesares.

É isso.
Beijos.



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