Retrato das coisas que se acham na minha cabeça escrita por Ped5ro


Capítulo 12
Superlua


Notas iniciais do capítulo

Bom, antes de começar, acho que devo certas explicações. Isso inicialmente era pra ser uma curta história, até passou à classificação de conto, que posteriormente eu abandonei por "n" motivos. E sendo assim, estava incompleta até decidir postar nesse conjunto, por isso, vocês irão talvez notar um certa falta de coerência entre os parágrafos (nada que vá afetar a compreensão), mas são lacunas que não consegui preencher. Adicionei bastante coisa para que ficasse o mais próximo possível de um "rascunho legível". Eu só quero deixar aqui essa presença, essa marca que eu senti dessa "história-além-túmulo".



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São sempre destas coisas que me dizes. Elas são terríveis. Então se quer me matar de verdade, se quer me conduzir à loucura de alguma coisa que ouso chamar fielmente, prematuramente e inadequadamente de fascínio, venha aos meus olhos. Meus olhos. Não te vejo como os outros te veem, e também não sei como tu me vê. Nada sei do que se passa por detrais dos teus olhos, que sempre me enganam. Você sempre brinca comigo, esquece que a vida é um dom terrível e que sou um tolo. Não tenho nada que perder. Só tua visão, todos os dias.

As casas eram iguais. Enfileiradas numa rua com uma leve descida. Os muros que as separavam feito de tijolos crus, as cercas brancas, ocasionalmente verdes e azuis. A manhã perfeitamente agradável e desconfortavelmente jovem, era bonita demais para que qualquer pessoa que não conheceu os dias ruins viesse aprecia-la como, talvez, a manhã mais esplendida.

Tinham anunciado no jornal a última superlua da década.

Eu sempre quis a Lua. Não ir na Lua, mas pegar a Lua, sentir cada centímetro nos meus dedos, talvez usar a gravidade pra flutuar onde não dava pra sair do chão. Era impossível manipular a Lua, eu sabia, mas não era como se eu me importasse. Eu só queria.

A professora apontava várias coisas no quadro que mostrava um desenho torto do sistema solar que ela mesma tinha feito. Ly estava duas cadeiras na frente, distraído, como quase sempre, o único jeito que havia achado de existir. A maneira como ele não ligava em afetar os outros, como arrastava suas mãos sujas pela roupa, como se machucava, não se ligando no que fazia e nas outras pessoas feridas. Ele tinha um vazio esquisito nos olhos, o jeito de se mover rápido demais, a fluência anormal do corpo pequeno nos saltos e corridas. Imune aos riscos que eu sempre sofri.

Ele continuou distraído enquanto eu me distraia olhando pra ele.

...

Nossas bicicletas estavam encostadas numa árvore ali do lado. A noite cada vez mais forte, tirando os últimos pequenos riscos mais claros do céu. As coisas deixando de ser com certeza, a luz da lua ganhando, enquanto tudo em volta perdia. Sentamos no banco bem no alto do morro. O parque de noite era tão bonito quanto de dia, lá embaixo os carros passavam num intervalo espaçado, as luzes de algumas casas apagando e acendendo feito natal.

Ele estava encolhido no banco, abraçando as pernas, olhando pra cima. Sempre parecendo vazio. Olhei para o céu quase sem nenhuma estrela, só a Lua imensa e brilhante como nunca foi antes de eu prestar atenção nela. Nossas duas vidas apreciando cada segundo do presente, sem medo de perder, sem medo de ser ou deixar, tudo tão cheio que quase explodia. Tudo tão permanente e forte, uma insensibilidade para tudo, um tato debilitado, porém jovem. Éramos muito jovens, por isso nada carecia, nada.

— Porque isso acontece com a Lua? – Ly questionou apontando, medindo o tamanho do dedão com ela.

— Não sei exatamente, no jornal dizia que a Lua fica mais perto da Terra, porque essas voltas que ela dá não são exatamente redondas.

— Você lê jornal. – era mais uma afirmativa do que pergunta.

— É, de vez em quando. Meu pai faz isso, acho que peguei dele.

— Meu pai tentou me ensinar xadrez uma vez.

— Você podia me ensinar então. Nunca aprendi.

— É. – ele fez como quem realmente não pensava num depois muito distante, nada muito longe de alguns segundos além daquele instante.

Os olhos deles eram zigues e zagues em todas as estrelas, como se as estivesse contando para ter certeza que mais não desapareceriam. Mas elas todas somem, eu queria dizer. E um dia, tudo vai ficar escuro, tão escuro que nenhum olho vai ver, tão escuro que vai ser inexplicável. As pessoas têm medo do escuro, tem medo de morrer, medo de serem infelizes, medo de se perder, medo de não serem nada. Pra que medo de todas essas coisas se na escuridão nada importa? Nada realmente faz sentido.

Não nos falávamos na escola. Eu não conseguia. Não tinha as coisas certas para dizer, só esses tremores, o coração rápido, uma calma tão grande que tudo evaporava da superfície da minha mente. Eu vivia sonhando acordado por isso. Eu só podia olhar pra ele, cada segundo que encontrava perdido. A influência que ele tinha sobre todos os outros e sobre mim... Tentar fugir disso era como matar-se aos poucos e levar a ignorância dele junto. Uma importância vazia, uma influência que não era exercida, somente sentida. Sempre o olhar vazio no sorriso sem porquê, de vez em quando uma mão ou, com sorte o bastante, um abraço. Era assim que ele alimentava quem não sabia que criava. Todos eram escravos das migalhas que ele soltava, se matando por um pouco de atenção que ele não dava.

De início achei que fosse só por puro capricho, que ele sabia tudo que fazia, mas com o tempo desconfiei dos sinais de lucidez aguda. Uma visão muito funda, um olhar que eu não conseguia encontrar e que eu não sabia se estava perdido porque preferia estar ou então se estava num nível de realidade tão alto que não via o mundo como eu.

Então quando nos encontrávamos por aí sozinhos, passávamos mais tempo juntos quanto podíamos. Eu nunca soube se aquilo era realmente satisfatório pra ele, talvez só fizesse por simpatia, quem sabe por falta de uma companhia melhor ou ainda que só por fazer. As vezes eu fazia coisas só por fazer, coisas que nem eu gostava, mas fazia mesmo assim.

Sempre tentava ligar as coisas que ele fazia com o que eu pensava que ele pensava e o “porquê” que eu achava que ele teria pensado antes de fazer. Isso me fazia inadvertidamente mais próximo a ele, acho. Diversas vezes eu teria lhe perguntado tudo de mais ridículo sobre ele mesmo, se não fosse tão covarde e tão apegado a minha boa educação. De qualquer forma, como poderia eu saber se ele realmente responderia? E se viesse a responder, o que seria? Como? Tudo isso me assaltava mil vezes, cutucadas da minha própria cabeça, tudo latejando.

E sempre que eu lembrava dele, por qualquer razão, conseguia ver. VER. Eu podia ouvir o som da vida dele, de todo mundo, todas as vozes familiares. Quando eu piscava, sentia ele piscar, se estendesse um pouco mais as mãos, podia tocar as linhas finas que tinha debaixo dos olhos, recolher um cílio que tinha caído no lado do nariz. Tocar a voltinha saliente dos lábios. EU VIA.

— Quanto tempo a gente ainda tem? – Ly perguntou para mim e a noite.

— A noite inteira.

— E depois nunca mais.

— É. Nunca mais por uma década.

O que era bastante tempo. Ele tinha relaxado no banco, com as pernas esticadas pra frente e a cabeça apoiada nas costas do banco, os braços estendidos. De vez em quando soprava um vento leve e gelado, trazendo o cheiro dele pra mim, o que era mil vezes mais forte naquele momento do que qualquer outro odor. O cheiro dele era mais forte do que o da grama, da cidade, dos carros, da humidade no ar e parecia estranhamente mesclado com o aroma noturno das flores. E aos poucos meus sentidos foram desligando, até só restar vagas sensações do mundo exterior, enquanto eu retomava todos os meus sonhos malucos.

Engraçado que ele nunca se importava quando isso acontecia. Ele nunca me acordava. E algumas vezes, quando minha mente finalmente voltava a realidade por qualquer coisa que fosse, eu via ele olhando pra mim. Aquilo me deixava embaraçado, depois disso comecei a achar que ele podia ler meus pensamentos, podia sonhar os mesmos sonhos que os meus, e que por isso nunca me fazia perguntas a respeito do que eu tanto vivia me distraindo.

...

As coisas tinham um fundo pueril de branco, e eu estava sendo assistindo a “vida dos sonhos”. Imaginando as coisas como deveriam ter sido. Até que senti uma mão entrelaçando meus dedos.

— Com o que você sonha? – Ly perguntou de repente. Ele ainda estava na mesma posição. Meus olhos lentamente percorrendo a extensão do braço dele até encontrar, no fim, os dedos dele na palma da minha mão. – O que você tanto pensa?

Toda minha mente estava só naquela mão. Cada mexida no polegar que ele dava sobre a palma caída da minha mão no banco. A pele dele estava quente demais, era macia, os dedos estranhamente certos demais, as unhas curtas. E vendo ali, a mão dele sobre a minha, percebi o quanto eu era torto, o quanto tínhamos de diferente. Então me perguntei, como sempre, o que eu estava fazendo, porque continuar a falar com ele? “falar”. Nossa comunicação era precária, eu sempre ficava desconfortável na presença dele, salvo raras ocasiões, o sorriso dele me incomodava, o jeito sério de conversar olhando nos olhos, a maneira como mastigava cada palavra antes de falar, como se premeditasse cada reação que quisesse causar.

— Nada... Só coisas. E você?

— Coisas também. Na vida. Nas coisas que não fazem sentido. – ele olhou pra mim, por algum tempo meu foco viajava da voltinha que ele tinha nos lábios aos nossos dedos. Ele também fazia o mesmo.

— O que não faz sentido?

— Tudo, nada. Você, eu, meus pais. Escola, amigos, provas. Nada disso tem um objetivo.

— Como assim? O que você tá dizendo?

— Deixa pra lá. – aquele olhar de suspiro, uma leve desistência, uma parte que deixar pra lá.

A noite era definitiva. O sol brilhava noutra parte do mundo, pra outras bilhões de pessoas, dando vida a outros seres, enquanto a Superlua aqui ressuscitava os mortos, movia as marés, puxava lágrimas, derramava o brilho anormal pelas janelas abertas, uivando para os lobos.

— Eu sei o que é falta de propósito, mas porque isso agora? Além disso, eu tô cansado, não sei porque eu continuo falando com você. O que éramos pra ser? Amigos? A gente não tá nem perto disso.

— Você não tem ninguém. Eu também não. Somos dois vazios. A gente nunca vai ser amigo, você não tem o que eu preciso, nem eu tenho o que você quer.

— O que? Como? Você por acaso sabe o que eu quero?

— Eu sei o que você acha que quer. – ele olhou de novo nossas mãos meio juntas e ficou assim parado por mais algum tempo. Até que ele entrelaçou os dedos dele com os meus. — Com o tempo acho que você vai perceber, todo mundo é um substituto. Ninguém realmente fica. A gente só tá aqui agora porque deve estar, nada mais.

— Porquê você faz essas coisas?

— Eu não sei. Eu realmente não sei.

Os dedos dele realmente estavam pressionando minhas mãos. Ele estava sorrindo um pouco quando disse:

— Eu sei que não dá pra perceber agora. Algum dia você vai lembrar dessa noite e notar coisas que pareceram nunca existir antes, mas que estiveram sempre aqui. E infelizmente, vai ser nesse dia que os fantasmas vão sumir, vão ganhar sua redenção. Aí você vai ver... VER. Esse vai ser o dia que você vai descobrir o que eu fiz...

Era um caos que ele montava na minha cabeça. Cada palavra que ele dizia me deixava mais e mais triste. Triste de um jeito que eu nunca mais queria estar, fiquei pensando se ele se sentia assim o tempo todo.

— Um dia você pode encontrar a ordem do caos.

É tão estranho falar do fascínio que alguém mais velho, algumas vezes, exerce sobre nós. Aquela coisa de querer extrair cada sinal, cada mínima informação que possa nos dizer o que vem por aí. E nisso tudo se formar a mais estranha sensação de dependência; uma que não existe de fato pelas leis naturais do “contrato social implícito”, mas que é íntima e secreta até pra quem sente e pra quem faz sentir, as vezes afetando ambas as partes. Claro que sempre de forma diferente, pois temos olhares distintos, ninguém vê igual, ninguém sente igual. E agora, aqui, eu só cumpro a lei dos insones, das lembranças despertas, do que ainda sobrou, tentando justificar coisas que na verdade podem ser enganos. Só quero explicar, pra que talvez aja algum alívio na minha alma, assim o sono, quem sabe, venha mais tranquilo, mais acolhedor.


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