Infected by Our Hope escrita por Linda Mannacen


Capítulo 3
Nenhuma criança merecia isso


Notas iniciais do capítulo

As partes em itálico são pensamentos e/ou sonhos



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17/03/2032

Os olhos, ainda fechados, mexiam-se frenéticos. Já o suor que escorria pela testa milésimos atrás, agora estava descendo pelo rosto delicado de Jane. Suas mãos agarravam os lençóis com força e seu corpo continuava se contorcendo suavemente. Jane engolia seco enquanto dormia.

Ali mesmo, deitada, ela conseguia ouvir e ver o mar californiano bem na sua frente. Ela conseguia ver o seu rosto, o rosto da criança que ela era há dezenove anos passados, o rosto que estava em prantos com os olhos fixos na balsa incendiada que se distanciava da praia. Logo, sentiu o cheiro de queimado entrando em suas narinas forçadas, e as lágrimas escorriam sem fim pelo rosto pequeno de Jane.

– Os infectados que conseguimos executar já estão sendo carbonizados. – Um dos soldados respondeu pelo rádio, Jane se sentia mal vendo o sorriso cínico do rapaz que segurava sua mão trêmula.

Num piscar de olhos, a menina soltou um grito apavorado, simultaneamente com o soldado que urrava de dor assim que os dentes famintos de outro soldado tocavam seu pescoço. Esfomeado puxava sua carne e o sangue espirrava pela areia. A mão do homem se soltou da mão de Jane, e a única coisa que ela conseguiu fazer foi se afastar e continuar gritando enquanto chorava desesperada.

Jane só tinha quatro anos.

A menina só conseguiu reagir novamente quando o infectado largou o soldado morto, deixando-o cair sobre a areia, e soltando um berro de fúria para a garota. Crianças não sabem correr direito, mas por instinto ela o fez... Ou tentou correr. Por muita sorte, o infectado cambaleava e não corria tão rápido como ela mesma já tinha visto. “Nenhuma criança merecia isso” uma voz sublime sussurrou em sua cabeça, enquanto Jane tropeça e a areia entrava em seus olhos. O pânico, a tristeza e a solidão reinavam sobre sua alma e seus gritos de medo reinavam sobre seu corpo.

O corpo que foi abraçado e carregado num susto, por mãos quentes e braços acolhedores no meio daquele caos. Por pouco, a própria criança estava a ponto de dar seu último suspiro. Assim como naquela cama, a “menina” havia dado um dos seus mais longos e sufocantes suspiros ao longo de um pulo que a deixara sentada em sua cama.

– Não vou ficar aqui. – Disse para si mesma, com os olhos marejando lágrimas. – Não vou conseguir dormir. Não agora.

A jovem se levantou e aprontou-se logo, se vestindo com a tralha que usava todos os dias. Prendeu os cabelos castanhos num rabo-de-cavalo desleixado . Por fim, equipando-se com as armas de sempre; arco, suas flechas, o revolver, mas dessa vez pegando “emprestado” o canivete de Morgan.

– Vai me perdoar, não vai? – Perguntou para Morgan dormindo na cama ao lado, mesmo sabendo que ele não podia a ouvir. - O coelho precisa sair da toca, Morgan.

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As botinas sujas contornavam as calçadas quebradas de Lincoln. Jane havia saído pra se acalmar, e esquecer com o que havia sonhado há pouco tempo atrás. Mas não é tão fácil quando se lembra até dos mínimos detalhes, dos sons e até mesmo do cheiro. Naquela noite, em que Jane esteve entre a vida e a morte, seus pais haviam sido jogados na balsa junto com os outros infectados que queimavam sob a luz tênue da lua coberta pelas nuvens.

– Desculpa, mãe. Me desculpa, pai. Eu não fiz nada, mas ás vezes eu sinto que tudo o que aconteceu com vocês foi culpa minha... – Ela continuava andando, falando com o nada. -... Vocês fizeram de tudo pra me proteger até os últimos segundos da vida de vocês. E por pouco, eu quase fiz com que isso fosse em vão. Eu quase morri.

Seus passos foram ficando mais lentos á medida que a mesma ia chegando em frente a uma igreja local. Até que ela fez o quê há muito tempo queria fazer desde que acordara: Cair em prantos. Jane ficou de joelhos chão, e afligiu-se chorando por algumas frações de segundos sentindo a dor ir embora junto com suas lágrimas.

– Eu era só uma criança... – Disse entre seus soluços. – Desculpa, eu queria que não fosse minha culpa, eu queria que... – Antes mesmo de Jane completar sua frase, um som confuso chamou sua atenção.

Tiroteios, alguns gritos, explosões. O melhor a fazer era voltar para a Toca naquele exato momento, ela sabia disso. Jane deu alguns passos na direção que havia voltado, contudo parou confusa e voltou-se para onde vinha o barulho.

Não demorou pra que Jane se encontrasse no caminho, dobrando as esquinas e casas de Lincoln. Mas sua corrida foi curta até chegar numa parte escura da cidade, ela mesma não conseguia diferenciar uma rua de um beco, trabalho para sua lanterna, no entanto Jane continuou seguindo o som. Confessando, ela estava com medo do que podia encontrar naquele fundo do desconhecido. Por que eu não fui ter esse sonho de dia?, pensou aflita, aprofundando-se ainda mais no escuro. Jane prendeu a lanterna na mochila, apontando pra frente, e agora tendo as mãos livres para manusear seu arco e suas flechas. Ela começou um trote lento, ainda perseguindo o som e enfrentando seu medo. Quem tem medo não vence, Jane... Quem tem medo não vence.

Assim que virou uma das milhares de esquinas, pode ver através da grade de ferro arrebentada a zona de quarentena de Lincoln em chamas. Os tiroteios estavam muito perto agora, sem sombra de dúvida era lá. Não foi difícil pra que a jovem se infiltrasse lá dentro, afinal alguém já tinha facilitado o trabalho. Um corte na grade - trabalho de mãos humanas - e de cada lado pequenas caixas de som, enfim desligadas, haviam sido colocadas ali. Jane não entendeu a conexão daquilo, mas não hesitou em pisar lá dentro.

Mesmo distante, ela podia ver os militares atirando contra algumas casas. Logo, pode enxergar alguns infectados correndo por uma parte mais iluminada da zona de quarentena.

– Esse lugar foi à ruína. – Comentou consigo.

Jane esqueceu que estava lá por pura curiosidade, e que podia morrer por causa disso. Como dizia o velho ditado: A curiosidade matou o gato... Mas gato não mora em toca, seu comentário mais que sem graça fez Jane sentir a adrenalina correndo de seu pescoço até suas mãos geladas que seguravam o arco.

Um infectado correu reto por ela antes da mesma cruzar a rua, logo em seguida outra explosão aconteceu. Jane seguiu em direção a ela, que estava mais perto do que o esperado, a jovem se abaixou atrás de um muro baixo e desligou a lanterna. Ali, alguns soldados marchavam na direção contrária dos infectados, e Jane correu sob as sombras para os seguir, mas quando tentou já era tarde demais, eles haviam sumido no completo escuro de novo, enquanto a outra parte da zona de quarentena era acesa pelo fogo que incendiava as casas e prédios.

– Ah, onde eu fui me meter? – Perguntou conformada, caminhando num desleixo até o final da rua, na procura de uma saída. – Bom, pelo menos me distraiu um pouco... – Seu comentário lhe valeu um breve riso infeliz.

No caminhar, Jane percebeu um som diferente vindo de uma janela acesa num prédio de tijolos á vista, no primeiro andar. Um som familiar, e suave. Tem alguém chorando, concluiu. Apressou o passo e pulou a janela.

Era um quartinho vazio, com apenas uma lâmpada e uma grande caixa de papelão virada pra parede. A jovem, novamente se encontrou seguindo o som. Seus passos eram calmos e lentos justamente pra não assustar ninguém.

E então, o choro a levou até a caixa. Jane riu baixinho, entendendo toda a situação. Ela fez questão de bater três vezes lá, simpaticamente.

– Ô de casa... – Esperou alguma resposta.

Demoraram um, dois, três ou mais segundos, até que a voz abafada e amedrontada de um garotinho respondesse.

– Vai embora! – Resmungou soluçando dentro da caixa.

– Não vou não. – Jane respondeu, conseguindo ser ainda mais infantil. Sentou no chão esperando que ele saísse. – Qual é, não sou nenhum dos caras maus.

– Não caio nessa, Hunter. Vai embora!

– Sério? Se eu fosse um dos caras maus, já teria forçado você a sair daí. - Jane provocou, apesar de ter ficado um tanto indignada pela “ofensa”.

– Não vou sair daqui! Não adianta tentar, eu não vou sair daqui! – E o menino voltou a chorar dentro da caixa.

– Tudo bem então... Vamos começar com calma, amigo. Mas é melhor parar de chorar porquê se não, pode atrair os caras maus de verdade. – Jane havia inventado aquilo, de fato, mas acabou funcionando. Quando o garoto se acalmara, ela tomou a frente pra falar. – Meu nome é Jane, e o seu?

– Não é da sua conta, vai embora!

– Olha se quiser que eu vá embora, vai ter que me tirar daqui você mesmo, tampinha. – Brincou. – Hein, qual é o seu nome?

– ... Gavin.

– Ah. Gostei do nome, pequeno Gavin.

– Agora vai embora!

– Você só sabe falar isso, moleque? Olha tudo bem, eu vou embora. – Jane já se levantava dali.

– Finalmente. – Disse Gavin, indiferente.

– Bem que você podia ser mais gentil, tampinha... – Com calma, ela se aproximou da caixa. – Vem, vamos embora daqui. Eu não posso te deixar num lugar assim.

– Pode sim, é só ir embora sem olhar pra trás e sem se arrepender! – O menino voltou a choramingar.

– Eu não faço isso, Gavin. Se eu te deixar aqui, nunca vou me perdoar por deixar uma pessoa sozinha pra morrer. – Ela agachou-se em frente à caixa, esperando uma resposta, mas o menino ficou quieto. – Vamos, nenhuma... Nenhuma criança merece isso.

Aos poucos Jane observou a caixa se mexer, a cada segundo um pouco mais do que o esperado. O menino saía apreensivo de lá, então mostrando o rosto arrependido para Jane, que esboçou um sorriso sincero em resposta. Gavin tinha cabelos ruivos, uma pele pálida com algumas sardas, os olhos tinham um contorno mel pela íris e ele vestia uma blusa velha de frio com uma calça jeans surrada.

– Olá, Gavin. - Disse Jane, ainda com o mesmo sorriso para ele. A jovem estendeu a mão para o menino, na espera que ele colocasse a mão sobre a dela, até que ele fez. – Agora eu vou embora.


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