Na Harpa de Um Anjo escrita por Murilo Wendler


Capítulo 2
Boa tarde, gostaria de lhe oferecer uma assistência




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Pausa 20, hora do meu almoço.

Trabalho em uma empresa de telemarketing, porém considero mais como um engenho onde os operadores são os escravos. Acho que todo mundo deveria ao menos um dia trabalhar com telemarketing para ver o quanto nós sofremos.

Meu horário é das 9 às 15 hrs, o que é obrigado trabalhar apenas 6 horas sendo que tiro uma pausa de 40 minutos, onde é dividida em 10, 20 e 10 minutos. Chego na empresa e já tenho que me ”logar” na minha PA, que é o ponto de atendimento ou mesa onde fica o computador e o telefone, para 9 em ponto começar a ligar para os clientes. E logo de manhã já tenho que ouvir os xingos, pois trabalho na área de vendas de assistências para os clientes do banco.

A minha operação tem meta de assistências por dia e por semana, se não alcançarmos não ganhamos “benefícios”, como folga, um aumento de pausa, um chocolate e às vezes um Cinemark. Caso não conseguimos temos que ouvir muito da minha supervisora.

Outra coisa ruim é o salário, que é praticamente um salário mínimo. O bom que tem a comissão por venda de assistências, mas têm pontuação por cada ligação de venda e não venda. Assim, tem a parte da Qualidade, que é a monitoria de ligações e eles têm um check list para ver se estamos seguindo o script para os clientes e se não falamos bobagens, abaixo de 85% da nota a nossa comissão começa a ser diminuída e chegando até a nada. Acho isso um absurdo, porque nos matamos para vender e quando chega no dia do pagamento não recebemos quase nada de comissão.

Tem supervisores aqui das operações que não servem para ser líder, não possuem postura e só sabem gritar e expor os operadores.

Saio da operação e pego minha bolsinha térmica com minha marmita que estava dentro do armário. Dentro da operação, que o andar com alas diferentes dos produtos de telemarketing, é proibido qualquer aparelho eletrônico, bolsas, comidas, menos é claro para os altos cargos, como de supervisor para cima. Embora qualquer coisa de comer seja proibida a todos, mas quase ninguém respeita isso.

Desço para o break, espaço reservado para descansar, tomar café e almoçar, para esquentar minha marmita e comer, tenho que ser rápida já que se passar de 20 min entra como “atraso”. Mas ele está lotado, então coloco em um micro-ondas enquanto arrumo um lugar. Sento em uma parecida com aquelas altas do Mc Donald’s de quatro lugares, praticamente de frente para a televisão.

— Posso sentar? – Perguntou uma senhora com seus quase 50 anos.

— Pode sim. – Sorri e continuei cortando o filé de frango.

Fiquei prestando atenção na televisão, mas meus olhos desceram até encontrar com a marmita da senhora. Se é que aquilo era mesmo uma marmita. Era um pote de margarina com um pouco de arroz. Só arroz. Então ela desenrolou uma pequena banana do papel toalha e a colocou na comida.

Tentei ignorar desviando meus olhares, mas era praticamente impossível. Eu olhava para minha comida e não sentia mais vontade de comer. A cada garfada eu mastigava umas 200 vezes, porque ela praticamente não descia. Percebia os tímidos olhares da mulher para a minha marmita. Eu fiquei sem saber o que fazer, na verdade estava pensando em algo e fiquei com medo da reação da mulher à minha frente.

Comecei a cortar pequenos pedaços de frango e comia em grandes garfadas de arroz e feijão, tentei empurrar pela garganta até que consegui deixar mais da metade da mistura.

— Pegue o frango. – Disse sorrindo para a senhora que nem ao menos olhou em meu rosto.

— Não quero não, menina. Muito obrigada.

— Eu insisto. Eu não estou com muita fome e não quero jogar fora.

Ainda de cabeça baixa ela assentiu. Perfurei o filé de frango com o garfo e depositei na tampa do pote dela.

— Muito obrigada.

— Não tem de quê.

Arrumei minhas coisas e levantei da mesa.

— Com licença. – Tive a impressão de ver o brilho de uma lágrima no rosto da senhora.

Meu coração estava disparado e um sentimento de satisfação me inundava. Algo que nunca havia sentido antes. Dei um tímido sorriso enquanto subia pelas escadas até a operação e vi uma luz esverdeada e trepidante na minha frente, parei de repente e esfreguei o olho e ela sumiu. Ela se assemelhava a uma aurora boreal.

Entrei na operação e tirei da pausa, quase havia estourado.

— Olá, boa tarde, por gentileza a senhora Lucimar Marinho? – E tenho mais duas horas até ir embora.

Depois de conseguir fazer duas vendas no dia, finalmente chegou meu horário. Desloguei e minha supervisora chamou a equipe para um feedback.

— Bom pessoal, hoje fizemos 30 vendas e faltaram 15 para a meta diária, com o esforço de cada um sei que até o Natal iremos conseguir e vocês serão liberados. Como já estamos a poucas semanas para o Natal então se vocês fizerem durante 10 dias 5 vendas no dia ganharão a primeira semana de janeiro em casa.

— Mas 5 é muito, Super. – Disse Nelson, um estranho de quase 30 anos. Ele fala muito em linha e seu contato chega a ser cansativo.

— Não é, Nelson! Só cada um se esforçar. Outra coisa, a cesta já está disponível. – Ela então distribuiu o comprovante da Cesta de Natal para a equipe. – Dá para pegar até o dia 20. Até amanhã, pessoal.

Patrícia é minha supervisora, muito linda, corpo perfeito e uma bunda bem redondinha. Sempre que ela passa meus olhos são atraídos para aquela abundância. E agora ela está mais linda, já que está grávida de 3 meses, mas nem parece de tão magrinha que é.

Desci até o estacionamento e a fila para a cesta estava gigante. Olhei o horário e não era nem 15:30 ainda, decidi esperar, porque pelo menos já pegava e me livrava de uma vez.

Enquanto esperava via as mulheres e alguns homens sorridentes saindo com a cesta, todos felizes. Foi então que um zumbido invadiu meu ouvido, tentei não demonstrar o incômodo, mas ele aumentava gradativamente até se tornar impossível. Achei que meus tímpanos iriam estourar, coloquei a mão tampando as orelhas e comecei a tremer. Minhas vistas ficaram embaçadas.

— Moça, você está bem?

— Sim, estou.

— Não parece.

— Eu já disse que estou!!

— Calma, não precisa gritar. Só me preocupei.

— Mas eu não... gritei. – Olhei para a pessoa que estava falando comigo e era uma gordinha de social que usava óculos, acho que era uma supervisora. – Desculpa, meu ouvido estava doendo muito.

— Não acha melhor ir a ala hospitalar?

— Já está melhor, muito obrigada. – Respondi forçando um sorriso e ela me encarou com ar de desconfiança.

Chegando minha vez peguei a cesta, ainda meio tonta com o zumbido que, apesar de bem baixo, ainda me incomodava. Abri a caixa e nem consegui olhar direito o que tinha dentro, apenas peguei a sacola retornável que vinha nela para guardar a cesta.

Sai da empresa meio cambaleando e então ele veio falar comigo.

— Ei, garota bonita.

— Ah, oi, Wesley.

— Parabéns pelas vendas hoje.

— Obrigada.

— Quer ajuda?

— Já que você insiste tanto né.

Ele riu e pegou a cesta da minha mão. Ele pegava o mesmo ônibus que eu para ir embora. Ele era tão bonito, quase um modelo. Um mulato com quase 1,90 m de altura, boca bem definida e olhos verdes. Que olhos! Sempre que falava com ele não deixava de notar seu grande sorriso, inclusive era impossível de se notar, além de seu perfume que praticamente me hipnotizava. Sempre esquecia de Ciella, desculpa garota.

Fizemos treinamento do produto juntos há 4 meses, nunca tive muito contato com ele e sempre achei que era gay devido a esse jeito dele. Começamos a conversar quando fomos 100% de qualidade nas ligações no mês de novembro, quando tem a entrega de certificados e brindes. Brindes? Um certificado, um bis, um parabéns e uma foto para mostrar pro cliente banco, que é aquele que contrata os serviços da empresa.

Entramos no ônibus e ele ficou de pé na minha frente, enquanto eu consegui um lugar.

— Dá a cesta que eu seguro.

— Que nada, Se. Pode deixar, não me incomodo. – Disse sorrindo com aquela boca. Que boca!

— Por que não pegou sua cesta hoje?

— Pegarei outro dia. Se, acho que vou fazer um escalada. – Escalada era uma prova que as pessoas da empresa podiam fazer para mudar de cargo, por exemplo, operador só podia fazer depois de 4 meses na empresa e se tivesse notas boas de qualidade e absenteísmo.

— Eba! Vai fazer para o quê? – Perguntei toda feliz.

— Monitoria. O bom que sairei da PA, mas o salário só aumenta em 200 reais, não é muito, mas dá para crescer na empresa.

— É uma pena que paga tão pouco né?

— É. Mas fazer o que né? Telemarketing é mais para quem precisa de uma renda para sobreviver, eu pelo menos só estou lá porque queria ter um pouco de independência financeira e não queria trabalhar como vendedor em shopping. – Ele apertou o sinal para descer no próximo ponto.

— Realmente, mas não sei o que é pior né.

— Verdade, os dois são muito cansativos, mas como operador não precisamos trabalhar mais. Tchau, Se. – Ele se curvou e me deu um beijo na bochecha. Peguei a cesta e coloquei no meu colo.

— Até amanhã.

— Amanha nada, consegui bater minha meta na semana e não vou amanhã.

— Que vida boa não precisar ir no sábado hein.

— Fazer o que né, gata. – E piscou para mim antes de descer.

Acho que tenho um crush por ele.

Na verdade não é crush, porque não gosto dele, assim como não gosto da Ciella. É estranho isso. Pensar que sinto apenas atração por eles e nada mais. Via casais juntos e não sentia inveja, admiração e nem vontade, apenas colocava na minha cabeça que precisava encontrar alguém, um homem ou uma mulher, tanto faz. Talvez eu seja bi e não gay, como imaginava. Ciella por exemplo é bi, antes de me conhecer já havia namorado vários garotos e fui sua primeira namorada.

Meu Deus, estou confusa demais. Eu não gosto de garotos, gosto? Porque essas coisas na minha cabeça agora? Preciso de um remédio antes que ela exploda. Eu gosto da Ciella e de mulher, eu acho.

Desci no meu ponto e tive que andar um pouco até minha casa. Aquele calor excruciante sobre minha cabeça, onde é que estava a chuva? Meu nariz sempre sangrava com esse tempo seco.

Cheguei em casa e dei um grito de alívio. Frazão saiu correndo.

— Para de ser cagão, bebê.

Coloquei a cesta em cima da mesa e fui tirando as coisas de lá de dentro. Decepção, era tudo sem marca. Um panetone e chocotone, maionese, frutas secas, massa para bolo, azeitonas, champanhe, e outras coisas, tudo de marca desconhecida.

— Que coisa boa. – Coloquei tudo de volta na caixa e fui tomar meu banho.

Pensei ter visto de novo aquela luz que se assemelhava a aurora boreal, mas quando voltei a olhar para a janela havia sumido.

Entrei no banheiro e me despi. Liguei o chuveiro para a água esquentar e fiquei olhando para meu corpo magro no espelho, quase não tinha peitos e meus mamilos eram rosados. Meu cabelo castanho ondulado estava oleoso e meu rosto com expressão cansada, minhas olheiras cada dia se acentuavam mais.

Aproveitei que estava sozinha em casa e gritei. Isso foi a última coisa que eu lembro.


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