Cartas para Haymitch

Era um fim de tarde quando todos voltaram ao Distrito 12. Katniss nunca sentira tanta ansiedade em voltar para casa como desta vez. Peeta, assim como ela, esbanjava alívio por finalmente ter certeza de que suas vidas, dali para frente, mudariam por completo. Nada de Jogos Vorazes. Nada de guerra. Eles viveriam normalmente, sem medo do que poderiam enfrentar. Sem medo de um dia ter um filho que tivesse que enfrentar a colheita na sua adolescência, assim como eles.

Agora tudo iria mudar.

Haymitch, por outro lado, não mostrava o mesmo entusiasmo. Pelo contrário: seus olhos carregavam um lamento inigualável. Uma dor que nem ele mesmo poderia medir. Assim como Katniss e Peeta, Haymitch também notou a ausência de Effie desde que chegaram a Capital. Mas até então tudo parecia dentro dos conformes, já que ela adorava deixar claro que aquele era o lugar certo para ela. Mas toda a desconfiança sobre seu paradeiro veio quando eles estavam na estação, prestes a pegar o trem, e ela não estava lá para se despedir, nem para dizer que estavam atrasados ou que a roupa estava amarrotada.

Ela não estava lá.

Após despedir-se dos garotos, Haymitch rumou para a sua casa, onde deixou sua bolsa cair no chão da sala e, automaticamente, foi até a cozinha, em busca de uma garrafa de whisky. Apesar de ter prometido a Effie, enquanto estavam do Distrito 13, que não mais beberia, ele sentia que sua promessa precisava ser quebrada. Aliás, onde estava ela agora para censurá-lo?

E lá se foram uma, duas, três, muitas doses até sobrar um quarto do líquido da garrafa de vidro. Haymitch lutou para ficar em pé novamente, com a visão um pouco embasada, apoiou-se na mesa e olhou ao seu redor. Algo o dizia que havia uma diferença naquele ambiente, mas ele não estava encontrando o que era. Franzindo o cenho, ele voltou a olhar para os lados, até que finalmente encontrou alguns papéis soltos na mesinha no canto da cozinha.

Cambaleando até ela, Haymitch pegou os papéis e começou a analisá-los um a um, reconhecendo de imediato a caligrafia leve e delicada de Effie Trinket. Mas de todas, apenas uma prendeu totalmente a sua atenção. A letra estava torta, como se estivesse com pressa de terminar. E no final da folha havia a marca de uma lágrima solitária.

Haymitch,

Talvez seja tarde demais quando estiver lendo esta carta. Snow mandou me prender logo após chegarmos a Capital. Ele queria informações sobre o verdadeiro paradeiro de Katniss, mas neguei tudo. A última coisa que eu quero é vê-los colocados em risco mais uma vez. Então acho que dessa vez eu devo fazer a minha parte.

Espero que não demore a chegar. Se a sorte estiver a meu favor, nos veremos quando voltar. Só quero que saiba o quão importante você é e como sou agradecida por tudo que tem feito por mim.

Eu amo você. Por favor, não demore para chegar. Preciso de você.

Effie Trinket.

Haymitch continuou encarando a carta por mais alguns minutos, com o olhar preso na lágrima que havia no final. Quase que imperceptivelmente, uma lágrima acaba escorrendo pelo seu rosto e caindo próxima a que havia no papel, fazendo-lhe companhia.

Fungando após desprender-se da carta que continuava em sua mão, Haymitch suspendeu o olhar, tentando encontrar algum sinal dela. "Espero que não demore para chegar" ela disse. Então não havia outro lugar a não ser a sua casa onde ela poderia estar.

- Effie! - ele chamou, mas não teve resposta. Caminhando até o corredor, ainda com a carta na mão, ele tentou novamente: - Effie!

Mas ninguém respondeu. O único som naquela casa vinha dele.

Haymitch ainda tinha lágrimas nos olhos. Sua respiração começou a ficar descompassada por causa da aflição. Onde ela poderia estar?

Continuou a caminhar pelo corredor, até que começou a olhar para baixo. E foi então que sentiu seu estômago despencar: havia sangue ali. E prestando atenção no rastro que formara, levava ate a ultima porta do corredor, que estava entreaberta.

Caminhando a passos hesitantes, tentando controlar sua vontade imensa de chorar, com medo de acabar vendo o que mais temia, Haymitch alcançou a maçaneta e empurrou a porta aos poucos. Ele ainda segurava a carta e a garrafa na mesma mão, firmemente. Ele, então, empurrou a porta devagar e deu um passo para dentro do quarto, sentindo um cheiro forte que ele não sabia identificar qual era exatamente. E foi ali mesmo que ele viu seu mundo desabar. Ao olhar para o chão do quarto, deu de cara com o corpo de Effie jogado em meio ao próprio sangue. Ela havia sido torturada até a morte, negando dar qualquer informação que fosse. Da sua boca saía um filete de sangue seco e no resto do seu corpo haviam hematomas e cortes profundos, aos quais ninguém resistiria por mais de dez minutos.

Ao ver a cena a sua frente, Haymitch caiu de joelhos e começou a soluçar. Não queria acreditar no que estava vendo. Poderia ser qualquer pessoa, menos ela. Effie, que sempre lhe dava broncas quando bebia demais, que sempre insistia em chegar na hora certa seja lá onde fosse, que aturou suas noites cheias de pesadelos. Agora estava morta. Seu corpo estava deixado para apodrecer.

Segurando-a em seus braços, sem se importar com o cheiro e o sangue seco, ele a abraçou com todas as forças, lamentando-se por tudo que deixara de fazer por medo. E agora estava tudo perdido. Nada mais valia a pena. Então Haymitch gritou. Gritou com todas as forças que ainda lhe restavam. Gritou sem se importar quem pudesse se incomodar com isso. Ele estava sofrendo e não havia ninguém que pudesse ajudá-lo.

Na casa ao lado, Katniss e Peeta ouviram os gritos seguidos de vidro se quebrando. Sem pensar duas vezes, saíram em disparada para a casa de Haymitch, entrando sem se anunciar. Começaram a chamar por ele, mas ninguém respondia. Foram até a cozinha, mas nada encontraram, até Peeta chegar ao corredor e se deparar com o rastro de sangue.

- Katniss, vem ver isso aqui - ele disse e a garota não hesitou em ir olhar. Colocando imediatamente a mão na boca, já com os olhos úmidos por imaginar o que poderia ter acontecido, Katniss acaba indo na frente, seguindo ate a última porta, que agora já estava aberta.

Ao deparar-se com a cena, sufocou um grito e virou-se para abraçar Peeta, que a retribuiu olhando para o que agora eram dois corpos jazidos no chão. Haymitch abraçava Effie com um braço enquanto o outro continha a metade da garrafa, que agora estava quebrada, e a carta dela. Seu braço livre estava coberto de sangue fresco, com cortes por toda a sua extensão, sendo o mais profundo deles no pulso.

Peeta largou Katniss e foi até a outra mão de Haymitch, pegando a carta para ler.

"Não demore para chegar. Preciso de você" ela disse. Ela o estava chamando e ele a seguiu. Não conseguiria mais viver sozinho, apenas com a sua bebida.

- A árvore forca - sussurrou Peeta ao ler a carta. Ela o chamara para a morte e ele a atendeu sem pensar duas vezes.

Naquela noite eles se encontraram novamente, em algum lugar onde ninguém sabe onde fica. Assim como as lágrimas no papel, eternizadas pelo amor que, agora, seria infinito.