Convivência Inevitável escrita por Els


Capítulo 1
Capítulo Único




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Eles se aturavam mutuamente desde... Bom, desde sempre. Exatamente isso. Sempre foi assim. Provavelmente por conta deste fato, não existia casamento mais conturbado do que o daqueles dois. A convivência era pacífica na maior parte do tempo, mas quando teimavam em discordar, ai daquele que estivesse no caminho! Todos os amigos mais antigos de Victor estavam cientes de que, quando o cara aparecia no trabalho com uma carranca, após afundar o pé na jaca no happy hour do dia anterior, ou ficava ranzinza nas noites de pelada com o pessoal, certamente ocorrera uma discussão íntima com ela, a megera indomável.

Não que ambos não tivessem pensado em divórcio. Acredite, eles já estiveram até a ponto de esganar um ou outro. Mas, felizmente ou infelizmente, não conseguiam viver separados, desenvolveram essa co-dependência bizarra, típica dos casais de longa data. Sendo assim, rotineiramente precisavam engolir alguns sapos e fazer concessões, principalmente ao se lembrarem de que, para tudo nessa vida, haviam os pontos bons e muitos lados ruins. Normal.

Apesar de se sentir desanimada depois de tantas tentativas, ela insistia em colocar um pouco de juízo naquele cabeça de vento. No entanto, tal missão era extremamente exaustiva. Mesmo implorando a fim de ser ouvida e atendida, Victor sempre a desafiava. Ele possuía essa atração por tudo o que era mais difícil e tinha o prazer de agir da forma mais imprudente, deixando-a prestes a arrancar o próprio cabelo, fio por fio. De acordo com suas teorias, seu companheiro fazia isso de propósito, só para irritá-la. Entretanto, verdade seja dita, ele não era rebelde o tempo todo. Vez ou outra, seguia os bons conselhos dela. Dedicou-se aos estudos o suficiente para se formar cedo na faculdade, arranjou um bom emprego, evitava confusões e brigas desnecessárias, e cuidava bem de sua própria saúde, nunca foi dado a vícios. Pelo menos resguardava o bom senso de autopreservação.

"Graças a Deus!"

Às vezes, ela chegava à margem de se considerar orgulhosa pelos feitos do cônjuge. Contudo, logo em seguida, Victor realizava alguma façanha bem estúpida, desestimulando-a de tal deferência. Desta última vez, por exemplo, ele decidiu que seria uma ótima ideia participar da comemoração de aniversário dum colega do escritório, que se sucedeu num conhecido bar da região. E bebeu como se o mundo fosse acabar dali a algumas horas! Ela o acompanhou ao local, como sempre fazia, e pediu encarecidamente, por diversas vezes, para que Victor desse uma pausa na bebedeira. Em resposta, ele franziu o cenho, repreendendo-a, e mandou mais uma dose de tequila pra dentro.

Na manhã seguinte, ela despertou bem cedo, antes mesmo do alarme tocar. Na verdade, a noite foi conturbada, mal conseguiu pregar os olhos. Aliás, nem sequer pôde relaxar, em vista do tempo em que passou divagando por lugares horríveis, em pesadelos que lhe causavam arrepios à mera lembrança. Tudo isso por causa da imprudência de seu companheiro. A culpa de uma noite mal dormida, como sempre, era dele.

Em virtude da sua raiva emergente, agitou-se de um lado para o outro de propósito até senti-lo dar os primeiros sinais de que estava acordando. Definitivamente, Vitor a tirava do sério. Com vinte e sete anos, se comportava do mesmo modo que uma criança de seis. Insatisfeita por tamanha procrastinação do preguiçoso, bufou e cruzou os braços, esperando-o abrir os olhos. Se ele podia ser um birrento imaturo, ela também seria. Não muito tempo depois, o rapaz levantou momentaneamente a cabeça do travesseiro, mas logo voltou à posição anterior, deixando um gemido escapar.

— Bem feito! — ela bradou, induzindo-o a cerrar as pálpebras com firmeza em decorrência da dor de cabeça aguda que o acometera — Quem mandou se embebedar? Eu bem que te avisei!

— Cala a boca! — ele murmurou, enraivecido.

— Você é um idiota. Não adianta ficar nervosinho comigo, não tenho culpa dessas burradas que você comete. Anda, levante-se! Você tem que trabalhar.

— Já disse para se calar, porra! — ele espremeu o travesseiro contra o rosto, buscando controlar tanto seus ânimos alterados já àquela hora da manhã, quanto a cefaleia horrível, fruto da ressaca.

Ela cruzou os braços novamente e resmungou baixinho. Odiava ser chamada à atenção. Qual é? Ela era a parte sensata daquele relacionamento.

"Quem ele pensa que é? Queria vê-lo sobreviver sem mim."

No momento em que o rádio relógio sintonizou as primeiras notícias matutinas da CBN, anunciando o horário das sete horas em ponto, relutantemente, Victor arrastou o corpo para fora da cama e seguiu até o banheiro. Os olhos castanhos arregalaram-se, por pouco não saltando das órbitas, ao passo que o rapaz encarava sua imagem deplorável refletida no grande espelho retangular.

Ela, que viera em seu encalço, se divertiu com a reação dele. Quis se sentir bem e vingada, porém, para sua infelicidade, tudo o que Victor sofria, acarretava efeito semelhante nela. Sem dúvida, esta era a pior parte da convivência. Portanto, só lhe restava sentir raiva até porque tal sensação já recendia por todos os seus poros. Mirou-se no espelho e fez uma careta, também odiando sua imagem. Olhou-se mais uma vez. Retorceu o canto direito da boca, não se sentia nada bem consigo mesma. Não mesmo! Contudo, não teria tempo de consertar a situação.

O dia começou tão ruim quanto o humor dos dois. De repente, o vento raivoso açoitou o vidro da janela do quarto, provocando um estardalhaço. O barulho sobressaltou o casal. Era uma péssima manhã para sair de casa.

— Merda de segunda-feira — Victor cochichou, azedo.

— Não seria tão ruim, caso não estivesse de ressaca — ela comentou em tom ácido, sabendo que iria irritá-lo.

Victor não respondeu. Dando as costas para a companheira, despiu-se e entrou no box, torcendo para que a água quente revigorasse suas forças e melhorasse seu humor raso.

Poucos minutos após às oito e meia, ele transpunha as portas do elevador, desembarcando em seu andar destinado, acompanhando os passos dos outros funcionários do escritório de advocacia. Avistou a secretária pessoal do superior, o poderoso chefão de tudo ali, caminhando em sua direção, e educadamente a cumprimentou. A mulher sorriu de modo lascivo ao retribuir a saudação, não deixando dúvida do quanto estava propensa a aceitar um convite para uma saída depois do expediente. Logo que ela passou pelo rapaz, gingando o quadril de maneira provocativa, ele prendeu o lábio inferior entre os dentes, acompanhando aqueles movimentos sincronizados até a moça virar no corredor, desaparecendo de vista.

"Que gostosa!", pensou enquanto abria a porta da sala.

Havia um bilhete em cima da mesa. Leu-o rapidamente.

"Reunião à essa hora? Que merda de dia!"

Encaminhou-se para a sala de conferências, onde quase toda a equipe estava reunida.

— Bom dia, parceiro — André cumprimentou-o, muito bem humorado. Bem até demais para uma segunda-feira tempestuosa — Que cara de ressaca é essa? — zombou, arqueando a sobrancelha.

— Por favor, não torra a minha paciência. Já basta a minha cabeça quase estourando de tanta dor.

— Se você tivesse me ouvido... — a vozinha feminina provocou mais uma vez.

— Chata — Victor resmungou para si mesmo, rangendo os dentes em descontentamento. — Filha da puta chata!

— Ei, cara, eu só estava brincando — André defendeu-se, meio ressentido em decorrência da resposta rude supostamente dirigida a ele.

Victor se incomodou com o confronto criado contra o colega de trabalho e resolveu esclarecer o mal entendido.

— Não, me desculpe — seu tom abrandou. — Não estava te xingando.

O outro olhou à volta da sala por um momento, constatando que não existia uma terceira pessoa na interação, os demais achavam-se alheios à conversa decorrida entre eles.

— Então, estava falando com quem? — ergueu novamente uma das sobrancelhas, dessa vez, incrédulo.

— Por acaso, já ouviu falar em dor na consciência? No meu caso, a dor que ela me provoca é pior do que os efeitos da ressaca. Ela é a criatura mais chata que existe e fica buzinando bem aqui — apontou em direção à têmpora —, dentro da minha mente.

André olhou-o, atordoado, tentando compreendê-lo e, ao mesmo tempo, avaliando sua sanidade. A Consciência sorriu, satisfeita com o desfecho da história. Na próxima circunstância, esperava que Victor agisse com sensatez ou pelo menos com um pouco mais de prudência e então ambos poderiam desfrutar de alguns momentos de lua de mel, no oásis da convivência inevitável.


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